Os BRICS no mundo de incertezas de Trump

Estratégia bilateral descoordenada de Trump é um “poder cego”. Brasil, na Cúpula dos Brics, terá que mostrar o “pragmatismo da sua neutralidade”, optando pela governança com regras numa possível nova arquitetura multilateral.
Em artigo para a Revista Pensamiento Iberoamericano (3ª Época/02/2019), Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, cita Noberto Bobbio, filósofo político italiano, que chamou atenção de que Direito e Poder são duas faces da uma mesma moeda: “poder sem direito é cego, mas o direito sem poder é vazio”. Segundo Lafer, essa seria uma das facetas da atual crise do multilateralismo. Desde que escreveu esse artigo em 2019, esse distanciamento tendeu a piorar, em especial, após a eleição do segundo governo Trump. As medidas de Trump no campo internacional, na área de comércio e sanções, ignoram quaisquer regras acordadas no sistema multilateral.
Trump usa o poder de mercado dos Estados Unidos para impor o desenho que acha correto para atender os interesses do próprio país. É um poder que não contribui para a estabilidade do comércio e das finanças internacionais. É uma estratégia bilateral sem nenhum esforço de coordenação e, sob esse aspecto, é um “poder cego”, em que as regras e normas vigentes são ignoradas. É difícil vislumbrar “uma nova ordem” em que não há nenhum esforço de cooperação.
Nesse contexto, qual a importância da 17ª Reunião da Cúpula dos BRICS a ser realizada nos dias 6 e 7 de julho no Rio de Janeiro, sob a presidência do Brasil? Nesse grupo agora ampliado estão presentes – além da China, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul – os seguintes países: Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Emirados Árabes, Indonésia e Irã. Em adição, irá comparecer à Cúpula o grupo dos Parceiros dos BRICS.[1]
O tema da Cúpula será “Fortalecendo a cooperação Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável”. O tema da cúpula de 2024, sob a presidência da Rússia, foi “Fortalecendo o multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais justos".
Há expectativas otimistas na avaliação da importância dos BRICS por parte do governo e de alguns think tanks, como o Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), como seria esperado. O Cebri, em sua carta de “Análise de Conjuntura Internacional” de abril, escreve: “Ao consolidar-se como fórum de cooperação entre potências emergentes, o BRICS torna-se uma das portas de entrada do Brasil para a Ásia, ao mesmo tempo em que amplia sua influência na reforma da governança global, na construção de um mundo multipolar e na defesa do multilateralismo”.
As Cúpulas dos BRICS abrangem temas variados e criam grupos técnicos. Podem ser entendidas como guarda-chuvas institucionais que permitem trocas de ideias e de mecanismos de cooperação, em geral no âmbito bilateral. Debatem-se temas de comércio, por exemplo, mas não se propõem acordos amplos de comércio e sobre temas regulatórios que contemplem todos os membros dos BRICS.
A ampliação do grupo liderada pela China, a guerra na Ucrânia e a política do governo Trump trouxeram novos desafios para o Brasil. O Brasil resistiu, num primeiro momento, a ampliar o grupo e tentou então agregar países da América do Sul, como a Argentina, o que foi rejeitado pelo governo de Milei. BRICS passaram a ser identificados como um grupo antiocidental por alguns críticos, pela presença do Irã, embora vários países, como a Indonésia, Egito e os países árabes produtores de petróleo, tenham laços – o motivados por questões de segurança estratégica – com os Estados Unidos, entre outras motivações.
A invasão da Rússia pela Ucrânia, clara violação do direito internacional de soberania dos territórios, o conflito entre os Estados Unidos e a China e as sanções dos Estados Unidos contra a Rússia levam o Brasil a tomar posições de neutralidade que muitas vezes são entendidas como favoráveis à Rússia e/ou à China. Sob esse prisma, a Cúpula presidida pelo Brasil irá exigir defesa forte do tema da cooperação e governança e demandas para reformar as instituições multilaterais que estão numa situação de fragilidade. Isso tende a exigir propostas substantivas, o que é difícil num grupo com interesses específicos nem sempre convergentes. Em adição, ao eleger os BRICS como inimigo que “quer acabar com o dólar”, o governo Trump estimula posições mais “anti-ocidentais” de alguns membros dos BRICS.
É preciso esclarecer que, em nenhum documento dos BRICS, encontra-se qualquer proposta de criação de uma moeda única no grupo para substituir o dólar. O que se encontra, desde Cúpulas mais antigas, é a proposta de facilitar o comércio com uso de moeda locais ou outros mecanismos de créditos. Uma questão que se coloca, por exemplo, é se seria uma moeda contábil ou digital.
Não é uma proposta de fácil implementação. Em 2024, o dólar respondia por 57,8% das reservas internacionais e o yuan renmimbi por 2,18%. Além disso, os países dos BRICS não comercializam somente no grupo. O que é comum é a importância da China no comércio de alguns deles, mas não o suficiente para todos quererem guardar suas reservas totalmente em moeda chinesa.
No caso do Brasil, o percentual de transações com os outros membros dos BRICS fora a China é muito reduzido (8% das exportações brasileiras e 9,5% das importações, considerando os nove países). E não é por falta de divisas que os países árabes não compram mais produtos do Brasil. Por outro lado, medidas que incrementem e estimulem o comércio, com possíveis facilitações nas trocas comerciais, poderão ser trazido para a agenda. Além disso, fortalecimento do Banco do BRICS, criação de mecanismos de garantias de créditos, criação de sistema de pagamentos para o grupo, entre outros objetivos, podem ser pensados.
A agenda de prioridades da 17ª Cúpula é extensa: saúde global; comércio, investimento e finanças; Clima; inteligência artificial; e arquitetura multilateral para paz e segurança. Com essa agenda, o Brasil poderá tentar influenciar os rumos das resoluções no sentido de optar sempre pela governança com regras numa possível nova arquitetura multilateral num mundo multipolar. Se antes se criticava a captura pelos Estados Unidos de temas da governança global, uma contribuição dos BRICS é mostrar que o grupo, mesmo que tenha poucos consensos, não reflete os interesses específicos de alguns países-membros. É nesse jogo que o Brasil terá que mostrar o “pragmatismo da sua neutralidade”.
Para finalizar e citando novamente o Ministro Celso Lafer ao invés de uma diplomacia de combate à la Trump, o que é necessário é uma diplomacia de cooperação, em que se identificam “interesses comuns e compartilháveis, administram-se as desigualdades de poder; e se lida construtivamente com a Torre de Babel do mundo, vale dizer, com a sua heterogeneidade ideológica, diversidade cultural e conflito de valores”
Parte desse artigo foi publicado na Revista Conjuntura Econômica, na edição de maio de 2025.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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