Macroeconomia

Regulação das Ferrovias

28 dez 2017

É difícil evitar uma certa nostalgia quando se pensa no setor ferroviário. Primeiro grande setor de infraestrutura, chave do desenvolvimento econômico no século XIX e início do século XX, o modal ferroviário foi também a origem de muito das regulações que hoje se adotam na infraestrutura em geral. Não obstante, essa visão das ferrovias como algo do passado é totalmente inconsistente com a realidade do setor: este tem passado por transformações significativas mundo afora, em muitos países ganhando participação no transporte de carga e gerando debates academicamente acalorados sobre que modelo regulatório é mais condizente com a tecnologia e a institucionalidade modernas.

Foi esse quadro de efervescência regulatória que Leonardo Coelho e eu tentamos capturar no livro que lançamos novembro passado, que leva o mesmo título deste post. O livro busca conciliar a discussão dos fundamentos acadêmicos com a análise da experiência internacional e das próprias transformações que o setor passou no Brasil. Ele também faz um esforço para mesclar o exame desse processo de mudanças pela ótica econômica e do direito.

A revolução regulatória das ferrovias, iniciada no Canadá e nos EUA no final dos anos 1970, foi originalmente uma reação à franca decadência do setor, que em quase toda parte perdia participação para outros modais. Havia um reconhecimento que isso era pelo menos em parte causado por regulação em excesso e de má qualidade, basicamente ignorando a competição intermodal. O Brasil também participou dessa primeira onda de reformas no setor, com a separação horizontal e posterior privatização da RFFSA e da Fepasa em meados dos anos 1990.

Ao longo desse processo, o que começou com uma combinação de desregulamentação com privatização tomou o rumo de buscar implantar no setor a competição intramodal, sem dúvida como reflexo de processo semelhante que vinha ocorrendo em outros setores de infraestrutura, como o de energia e o de telecomunicações. O elemento essencial comum a todos esses casos era a separação vertical das atividades do setor, reconhecendo-se que apenas um segmento seria de fato um monopólio natural – no caso das ferrovias, a operação da malha, estações, sinalização e outras infraestruturas --, enquanto em outros poderia haver competição – nas ferrovias, em especial, a operação do transporte em si.

De forma algo surpreendente para uma administração que favoreceu a concentração de mercados e o fechamento da economia, o governo Dilma abraçou com tudo essa proposta de estimular a competição intramodal nas ferrovias. Essa decisão refletia uma certa insatisfação do governo com, de um lado, o que considerava serem tarifas ferroviárias muito altas, e, de outro, a falta de investimentos pelos concessionários privados em projetos de expansão da malha, em particular para o Centro-Oeste, o que permitiria o escoamento de produtos minerais e agrícolas da região a preços mais baixos.

Em seus dez capítulos, o livro, em certo sentido, faz o debate econômico que não aconteceu em torno das medidas adotadas pelo governo Dilma, que, talvez não surpreendentemente, acabaram tendo pouca eficácia. Ele está estruturado em três grandes partes.

O livro começa apresentando, por assim dizer, os fundamentos do setor. O capítulo 1 faz um histórico do setor no Brasil. O capítulo 2 foca no presente e busca contextualizar o setor ferroviário em termos dos principais atores institucionais que com ele interagem e as regulações do setor, além de mostrar como ele saiu do processo de privatização e separação horizontal nos anos 1990 e sua evolução posterior. O capítulo 3 apresenta alguns instrumentos básicos de regulação econômica relevantes para compreender por que e para que regular os setores de infraestrutura. O capítulo 4, por sua vez, introduz com mais detalhe o tema da concorrência nas ferrovias, por meio de uma análise dos tipos de reforma ferroviária implantadas internacionalmente desde o final dos anos 1970, e discute o tema da precificação, tanto dos serviços de transporte como, em mercados verticalmente separados, do acesso à infraestrutura. Por fim, o capítulo 5 faz a contrapartida jurídica nacional dos dois anteriores, apresentando o substrato legal das concessões ferroviárias no Brasil.

Na segunda parte, cobrindo os capítulos 6 e 7, se analisam as experiências internacionais de reforma do setor ferroviário do final do século XX e início deste, que foram várias e variadas em seu escopo. No primeiro examinamos as experiências fora da Europa e no segundo focamos exclusivamente nos países europeus, que aparentemente foram o caso que mais estimulou a tentativa de ampla reforma regulatória do setor no Brasil, junto com o da Austrália, também examinado no livro.

A terceira e última parte do livro foca nas reformas regulatórias adotadas pelo governo Dilma para o setor ferroviário. O Capítulo 8 abre essa parte com uma análise das alterações regulatórias voltadas para promover o unbundling dos serviços oferecidos pelo setor, em especial buscando facilitar o tráfego de trens de terceiros nas malhas das atuais concessionárias, o que seria fundamental para promover novos investimentos privados em projetos greenfield no interior do país. O Capítulo 9 versa sobre a ampla revisão tarifária promovida pela ANTT em 2012. Foi a primeira vez desde a privatização que os tetos tarifários com que operam as empresas ferroviárias foram revistos sem ser para corrigir pela inflação. Por fim, o capítulo 10 lida com a tentativa de implantar um sistema de ferrovias verticalmente separadas, nas linhas do modelo europeu, nos novos projetos do setor. O pulo do gato estaria na transformação da Valec em um mercado administrado de capacidade de tráfego ferroviário, por meio do qual o governo subsidiaria o investimento em infraestrutura.

Como se vê nos diversos planos e programas de investimento anunciados por este e pelos governos anteriores para a área de infraestrutura, as ferrovias continuam sendo um alicerce importante para equacionar o desafio logístico brasileiro. Sem entender os prós e os contras das várias alternativas regulatórias para o setor, porém, vamos continuar falhando em desenvolver modelos que sejam atraentes para os investidores e úteis para os usuários. Com o livro, Leonardo Coelho e eu tentamos fazer uma modesta contribuição para que o Brasil consiga avançar nessa questão.

Mais informações sobre como adquirir "Regulação das ferrovias" no site da Editora FGV.

 

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.