Macroeconomia

Carta do IBRE: As lições dos ajustes fiscais drásticos na Argentina de hoje e no Brasil de 1998-1999

9 jan 2019

Carta do Ibre da Conjuntura Econômica de janeiro/2019

O Brasil precisa passar por um importante ajuste fiscal para recuperar a estabilidade macroeconômica de forma sustentável, e é grande a expectativa de que medidas nesta direção estejam na ordem do dia neste início de governo de Jair Bolsonaro. Uma grande dificuldade, porém, é que o novo presidente parece ecoar certo consenso entre os analistas de que o novo ajuste possa ser feito quase que exclusivamente pelo lado da despesa.

Nesta Carta do IBRE, nossos pesquisadores analisam dois episódios de ajustes fiscais drásticos e de grande dimensão comparáveis ao que o Brasil terá pela frente: Argentina desde 2015; e, Brasil, em 1998/1999. Em ambos os casos, os ajustes pouco se deram pelo corte de gastos correntes, e implicaram fortes recuos do investimento público. Os dois episódios revelam um padrão semelhante: gastos previdenciários e sociais incompressíveis e ajustamento via alternativas como corte de investimentos, alguma compressão de custeio e salários e aumentos de tributos.

Na Argentina, houve o importante fator adicional do corte dos subsídios econômicos, pelos quais o governo bancava serviços de infraestrutura e transportes baratos para a população, prática recorrente do período kirchnerista. Essa é uma característica bastante atípica do caso argentino, mas cujo espaço para contribuir com o processo do ajustamento (que ainda tem que se aprofundar) parece próximo do esgotamento, como se verá adiante.

O ajuste fiscal argentino, analisado em detalhe por Livio Ribeiro, pesquisador do FGV IBRE, ainda está em andamento. O atual acordo entre o país e o Fundo Monetário Internacional (FMI), vinculado a créditos de até US$ 57,1 bilhões, tem como uma das principais contrapartidas um intenso ajuste fiscal, saindo-se de um déficit primário projetado em 2,7% do PIB em 2018 para estabilidade em 2019 e superávit primário de 1% do PIB em 2020. Mas o resultado primário da Argentina, na verdade, já passou por uma melhora de 3,06 p.p. do PIB entre 2015 e 2018, vindo de -5,4% do PIB para -2,3% (no acumulado em 12 meses até outubro de 2018).

Quando se analisa o esforço fiscal empreendido pela Argentina de 2015 a 2018, nota-se que, pelo lado da despesa, quase toda a economia correspondeu ao corte dos subsídios econômicos e de investimentos públicos. Assim, da queda do gasto primário naquele período, de 3,72 pontos porcentuais (p.p.) do PIB (de 24,2% do PIB para 20,5%), 3,45 p.p. (ou 93%) são provenientes da redução dos subsídios (2,14 p.p.) e do investimento público (1,31 p.p.). Os gastos sociais (incluindo previdência) subiram 0,65 p.p. do PIB de 2015 a 2018, de 11% para 11,6%, enquanto as despesas com o funcionalismo e a máquina pública recuaram 0,55 p.p., de 4,2% para 3,7% do PIB. Em termos das receitas primárias, entretanto, houve recuo de 2,24 p.p. como proporção do PIB entre 2015 e 2018, de 20,4% para 18,2%, ligado à forte recessão no país.

O grande problema é que o corte dos subsídios, importante arma do esforço fiscal argentino, dá mostras de estar se esgotando. Os maiores subsídios, ligados à energia, já caíram de um pico de 3,7% do PIB em 2014 para 1,1% em 2017, e os de transporte recuaram de 1% para 0,8% do PIB no mesmo intervalo de tempo. Os subsídios como proporção do PIB têm oscilado em torno de 2% do PIB nos últimos dois anos, fato que deve se manter em 2019 (a expectativa oficial é de que recuem marginalmente para 1,8% do PIB).

O segundo item mais relevante do ajuste fiscal já realizado, o investimento público, já caiu do pico recente de 2,9% do PIB em 2014 para 1,4% em 2018, nível extremamente baixo para padrões internacionais. Na verdade, o ponto que resta a ser abordado são os gastos de pessoal e de custeio da máquina pública, que caíram de um pico de 6,7% do PIB em 2016 para 5,5% em 2018, mas ainda estão bem acima dos níveis de dez anos atrás.

Dos 2,7 p.p. do PIB de melhora no resultado primário argentino de 2018 para 2019, projetado no acordo com o FMI, o principal item deve ser um aumento de carga tributária de 1,2 p.p. do PIB, obtido especialmente por elevação da taxação das exportações (as retenciones, com destaque para as incidentes sobre produtos agrícolas). A parcela de 1,5 p.p. do PIB restante deve vir de corte de despesas distribuído em diversas rubricas, inclusive com transferência de atribuições ou corte de transferências para as problemáticas províncias.

O que chama atenção na Argentina, e lembra o caso brasileiro, é a dificuldade de conter os gastos previdenciários e sociais. Estes subiram de 7,8% do PIB em 2007 para 11,6% em 2018, com pequena queda em relação ao pico de 12,4% do PIB em 2017. Desse recuo de 0,8 p.p. do PIB em um ano, 0,5 p.p. vem de aposentadorias e pensões contributivas, que saíram de 8,7% do PIB em 2017 para 8,2% em 2018. Pela nova regra de reajuste dos benefícios previdenciários na Argentina, aprovada em dezembro de 2017, os valores passaram a ser ajustados trimestralmente por uma combinação de 70% de inflação passada e 30% pela evolução de um índice que mede os ganhos salariais do funcionalismo público. Em março de 2018, por exemplo, essa mudança fez com que o reajuste concedido caísse de aproximadamente 12% para 5,7%. Ainda que isso dê alguma ajuda ao esforço fiscal no curto prazo, resta a questão do forte crescimento de outros programas distributivos não contributivos.

O ajuste argentino acontece contra o pano de fundo de uma recessão que ainda pode ser mais profunda que o previsto. Pelas projeções do acordo com o FMI, a economia terá recuado 2,8% em 2018 e cairá mais 1,7% em 2019, mas Livio Ribeiro considera que os números têm potencial para ser ainda bem piores, especialmente no ano que se inicia. Adicionalmente, a Argentina tem uma situação de contas externas muito delicada, com forte exposição ao dólar americano. O risco evidente é que cenários externos de maior aversão ao risco levem a disparadas do dólar, que podem agravar a situação fiscal e inflacionária, provocar fortes aumentos de juros, que, por sua vez, tornam pior a trajetória da arrecadação e ampliam a pressão política que impede o enxugamento das transferências sociais – ainda mais tendo em vista as eleições presidenciais argentinas de 2019.

No exemplo brasileiro, a pesquisadora Vilma Pinto, do FGV IBRE, analisou o ajuste fiscal de 1998/1999, quando o superávit primário do governo central saiu de 0,5% do PIB para 2,1% em apenas um ano, num avanço de 1,6 ponto porcentual (p.p.) do PIB. Ela nota que, apesar de grande, é um ajuste menor do que aquele que se impõe agora à economia nacional. De 1998 para 1999, houve expansão de 0,84 p.p. do PIB das receitas primárias, e uma contração de 0,25 p.p. das despesas. O restante do ajuste ficou por conta de questões metodológicas e discrepância estatística.

A principal medida do ajuste de 1998/1999 foi o aumento da Cofins de 2% para 3%, com a inclusão das empresas financeiras no campo de incisão do tributo. Com isso, a arrecadação da Cofins saltou de R$ 17,6 bilhões em 1998 para R$ 30,8 bilhões em 1999, ou 1,08 p.p. do PIB à época. Adicionalmente, a não incidência da CPMF no período de 23 de janeiro a 17 de junho de 1999 foi parcialmente compensada por sua reintrodução, no segundo semestre, com alíquota de 0,38% (superior à alíquota de 0,20% cobrada em 1998). Finalmente, passou-se legislação que incentivava os contribuintes a desistirem de ações judiciais e a promoverem o recolhimento espontâneo dos valores sub judice, e foi tomada medida administrativa para converter depósitos judiciais em renda da União.

Pelo lado da despesa, o principal item do ajuste de 1998/1999 foi a redução dos investimentos do governo central de 0,83% do PIB para 0,49%, um recuo de 0,33 p.p. do PIB, maior que o corte total das despesas (indicando que o conjunto restante subiu).

O que fica evidente nos dois casos de ajustes fiscais drásticos e profundos, no contexto de democracias sul-americanas, é que é ilusão achar que estes podem ser feitos exclusivamente pelo corte de despesas. O problema é que as crises econômicas por trás da necessidade imperiosa de ajustamentos fiscais têm componentes estruturais e conjunturais. Os primeiros estão ligados a despesas rígidas e cujo aumento é difícil de conter dentro do jogo político democrático, já que abrangem gastos previdenciários e sociais.

Não se quer dizer, evidentemente, que o componente estrutural não deva ser atacado, mas sim que esta é uma agenda de médio e longo prazo, que não traz as economias fiscais imediatas que muitas vezes se fazem necessárias em crises macroeconômicas em países com histórico de problemas de solvência pública. No curto prazo, como se pôde ver nos dois casos analisados nesta Carta, os cortes de despesas tendem a ser de qualidade muito ruim, comprimindo ainda mais o investimento público em economias emergentes de baixo crescimento ou promovendo apertos emergenciais e naturalmente mal planejados na folha e custeio do setor público, que não contribuem para a essencial melhora da qualidade do Estado.

Nesse contexto, não parece nada insensato incluir no necessário ajuste algum aumento de receita, que pode vir inclusive no bojo de racionalização tributária. No Brasil, por exemplo, há evidente espaço para cortar subsídios e incentivos. Privilegiar o lado dos gastos em ajustes fiscais é uma boa regra geral, mas que não deve ser convertida em tabu, sob pena de se tornar irrealista e contraprodutiva.

Luiz Guilherme Schymura

Doutor em Economia pela FGV EPGE 


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.   

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.   

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