Censos demográficos e o uso de registros administrativos. Por que não um sistema integrado de estatísticas demográficas?
Nos últimos meses, uma discussão sobre o questionário a ser aplicado no Censo Demográfico e Domiciliar de 2020 tem se arrastado. A polêmica gira, essencialmente, em torno de uma redução no número de quesitos nos seus questionários, com diversas justificativas. Os prós e contras já foram exaustivamente discutidos através de entrevistas, artigos nos jornais (método não muito aconselhável) e alguns debates. Não é minha intenção discutir os quesitos que entram e saem e seus impactos. Gostaria de me ater a um ponto que é apresentado como justificativa para essa redução e me parece muito pouco aprofundado.
Um dos argumentos apresentados como justificativa para a diminuição do questionário é a possibilidade de se usar registros administrativos (RA) como complemento (futuro) às variáveis desconsideradas. Outro argumento frequente é que existe uma tendência mundial em reduzir os questionários.
O uso de RA como complemento aos métodos clássicos (censos e pesquisas amostrais) de obtenção de dados é muito antigo e disseminado na produção de estatísticas oficiais. A discussão sobre o uso de RA para a produção de estatísticas oficiais está ultrapassada, é método adotado e aprovado. O desafio atual é o uso de “big data” para a produção de estatísticas oficiais, mas discutir o que seria isto é tema para outros textos.
O uso de RA para a produção de estatísticas pode ser visto de várias maneiras: substituto de pesquisas realizadas (ou parte delas), complemento de pesquisas ajudando a cobertura de determinado fenômeno ou, simplesmente, elemento de análise auxiliar. Com isso, traz redução dos custos, evitando esforços duplicados, aumenta o conhecimento pelo uso de toda a informação disponível, integra bases de dados, reduz a carga dos informantes e, consequentemente, diminui seus custos com a prestação de informação. Finalmente, permite a construção de cadastros atualizados mais frequentemente e a disseminação mais rápida de estatísticas.
O que seria então um censo demográfico[1] obtido apenas em operação de campo ou operação de campo e RA? O que seria o avanço na direção de um Sistema Integrado de Estatísticas Demográficas?
Existem três modelos básicos de coleta de informação para um censo, no sentido de que se terá uma enumeração completa e individual de uma população. O clássico, com a obtenção dos dados apenas com trabalho de campo (modelo brasileiro até hoje); conjugando-se trabalho de campo, com questionário reduzido, complementado por RA; e apenas com RA.
O desafio é planejar qual o modelo mais adequado ao país em que se vive.
A chamadas “register-based statistics” desenvolvidas nos países nórdicos se iniciaram nos anos setenta e se caracterizaram pela implementação de cadastros populacionais antes de qualquer alteração nos censos até então realizados. Esse é o ponto chave no desenvolvimento de qualquer modelo que vá implementar RA para demografia.
Todo RA administrativo é, por definição, um cadastro que descreve exaustivamente determinado fenômeno, sejam as importações de um país, o registro de crimes ou nascimentos e mortes. No entanto, o que se deseja com um censo demográfico é ter a enumeração da população. Portanto, os RA a serem adotados para complementar ou substituir a operação de campo têm que ser exaustivos, com informações completas sobre o “fenômeno” que desejamos descrever. No caso, a população completa.
Um cadastro para ser usado para censo demográfico deve ter como características: enumeração individual, simultaneidade entre as datas da operação de campo dos registros no cadastro, universalidade, cobertura de pequenas áreas e pequenos grupos populacionais e periodicidade definida.
Os países que passaram para modelos de censo demográfico com apoio, completo ou parcial, de RA iniciaram seus projetos com o desenvolvimento de cadastros com dados da população, dos domicílios e das empresas.
Um longo e planejado processo deve ser implantado antes que, efetivamente, se iniciem modificações no modelo até então adotado. A tabela abaixo, retirada de UNECE (2007) ,mostra o tempo de desenvolvimento dos cadastros nos países nórdicos para que tivessem um censo demográfico completamente baseado em cadastros.
Ano de início da construção do cadastro e ano de seu primeiro uso como estatística censitária por tipo de cadastro e país
Fonte: UNECE (2007)
A experiência internacional mostra que se deve ter muito cuidado com reduzir questionários contando que RA possam ser complementos. A recomendação é que, como primeira etapa, defina-se qual modelo se pretende atingir. Obviamente, no Brasil o modelo de censo obtido completamente por registros é impensável no momento.
Em seguida, estabelecer um grande acordo nacional para ter uma política de construção de cadastros – não necessariamente esta responsabilidade é do instituto nacional de estatística. A política de implantar cadastros deve vir com caráter de responsabilidade nacional, é política de informação não apenas de estatísticas.
O uso de cadastros sem cobertura da população residente não é adequado por não atender à exigência de enumeração completa. O cadastro do registro civil, por exemplo, seria um RA para atualizar um cadastro de população; o registro de imigração nas fronteiras cobriria apenas a parte legal, não identificando a parcela não declarada.
A redução do questionário do Censo de 2020 não pode ser justificada pelo uso futuro de RA. Atualmente não temos os RA com cobertura populacional. Há um esforço do IBGE na direção de um cadastro nacional de endereços para fins estatísticos (CNEFE) e nada mais. Cadastros desse tipo levam muitos anos a serem desenvolvidos e terem qualidade para seu uso estatístico.
Obviamente, em um país com as características do Brasil não há como se pensar em não mais realizar coleta de campo. Por outro lado, não será possível manter operações muito custosas. Porém, qual o modelo que gostaríamos de implantar no futuro?
Para que o Brasil possa avançar na direção de ter um sistema de informações demográficas, censitárias ou não, como parte de um Sistema Nacional de Estatísticas Demográficas, deve estabelecer um plano de governo, não apenas do IBGE (coordenador do sistema estatístico nacional), mas de todos órgãos oficiais ou não que trabalhem com informação de forma que se possa encontrar o modelo adequado à realidade nacional. Cadastros populacionais têm que ser pensados; pesquisas amostrais integradas, conceitos, classificações e padrões devem ser unificados; e as bases devem ser mais que compartilhadas, devendo permitir seu pareamento etc.
Referências
UNECE (2007), Register-based statistics in the Nordic Countries. Review of best practices with focus on population and social statistics, United Nations, New York and Geneva,
UNECE (2018), Guidelines on the Use of Registers and Administrative Data for Population and Housing Censuses, United Nations, New York and Geneva.
Nordholt, E. Schulte (2018), The usability of administrative data for regsiter-based censuses. Statistical Journal of the IAOS 34 487-498, IOS Press. https://content.iospress.com/articles/statistical-journal-of-the-iaos/sji180425
[1] Considera-se como definição de “censo demográfico” uma base de dados exaustiva com informações sobre a população residente. Independente desta base ter sido obtida por coleta direta ou outras formas de obtenção dos dados.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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