Macroeconomia

A informalidade do mercado de trabalho: “Economia GIG” ou precarização do trabalho? (Parte I)

7 nov 2019

A lenta recuperação da economia brasileira tem sido acompanhada de forma persistente por níveis recordes de trabalhadores informais na economia. A população ocupada, que soma mais de 90 milhões de pessoas, tem quase metade dos seus trabalhadores empregados sem carteira assinada ou como trabalhadores por conta própria sem CNPJ. Segundo os dados da PNAD contínua para setembro de 2019, esse contingente representa 41,8% da população ocupada (mais que 39 milhões de trabalhadores).

A Figura 1 mostra que esse contingente de trabalhadores informais cresceu quase 11% desde 2016. De fato, no último mês, quase 90% dos novos ocupados entraram no mercado de trabalho pela via informal. O aumento da informalidade é liderado pelo aumento do trabalhador por conta própria (sem CNPJ), trabalhador do setor privado sem carteira assinada (exclusive trabalho doméstico) e por conta própria com CNPJ.

Mas o que a retomada do emprego baseada na informalidade significa? Para algumas vertentes, essa tendência pode refletir as mudanças estruturais ocorridas no mercado de trabalho no Brasil e no restante do mundo que têm feito surgir a chamada “Gig Economy”, uma economia com relações de trabalho mais flexíveis e autônomas potencializadas pelo surgimento de tecnologias para conectar diretamente vendedores e compradores. Um exemplo dessas tecnologias são os aplicativos para transporte e entregas, novas modalidades de trabalho que acabam gerando empregos sem vínculos empregatícios convencionais.

Por outro lado, outras evidências sugerem que esse aumento da informalidade está potencialmente associado à precarização do trabalho. O avanço da contratação de “freelancers” por plataformas digitais, como Uber, Ifood e Rappi, também é frequentemente descrito como um avanço da “economia dos bicos”. De fato, o crescente número de trabalhadores informais na economia brasileira parece ser exatamente ao surgimento de “bicos”: o crescimento da informalidade parece ser mais explicado pela inserção no mercado informal ser a única opção e não a “melhor” opção para os trabalhadores.

Como destacado no meu último post (em trabalho conjunto com o pesquisador Tiago Martins), a informalidade está associada à baixa produtividade e menores rendimentos do trabalho. Os trabalhadores informais compõem quase a totalidade dos trabalhadores nos grupos de baixa renda. Adicionalmente, os desempregados que conseguiriam um trabalho no setor informal no último ano recebem rendimentos menores que os desempregados que transitaram para trabalhos formais ou pessoas que já estavam inseridos no mercado de trabalho informal. Em resumo, o que os dados de renda e composição do emprego indicam é que a recessão e o aumento do desemprego fazem com que cresçam os subempregos: trabalhos sem vínculo empregatício cujas principais características são a baixa produtividade e piores remunerações.  

Em trabalho em andamento com Bernardo Wanderley (FGV IBRE), analisamos os indicadores de emprego e renda do setor que contém a atividade de motoristas de aplicativos - a atividade denominada “transporte rodoviário de passageiros”. Nosso objetivo nesse estudo é entender como o surgimento de plataformas digitais, como a Uber, se relaciona com o crescimento geral da informalidade e com a precarização do emprego. A Figura 2 apresenta o número de pessoas ocupadas nesse setor de 2012. O número de pessoas trabalhando nessa atividade era estável até setembro de 2015. Depois desse período, verifica-se um aumento de 30% no número de pessoas ocupadas nessa atividade, chegando à marca de 2,2 milhões de trabalhadores em junho de 2019. Vale ressaltar que esse agrupamento também descreve as atividades de táxis e motoristas em geral. Contudo, a estabilidade desse indicador antes da entrada da Uber, principal empresa no segmento de transporte por aplicativo, sugere que boa parte da variação observada se deve aos motoristas de aplicativos.

Boa parte do crescimento do número de trabalhadores do setor de transportes de passageiros ocorrido desde setembro de 2015 é decorrente do crescimento do número de trabalhadores informais. A Figura 3 mostra tanto que o aumento da população ocupada nesse setor se deve principalmente ao crescimento do trabalho por conta própria quanto que o descolamento do número de trabalhadores formais e informais nesse setor ocorre exatamente no período que segue a entrada dos aplicativos de transporte no Brasil.   

O aumento do número de trabalhadores no setor foi acompanhado de queda dos rendimentos. A renda do trabalho nessas atividades caiu aproximadamente 6% desde o início da série histórica. O rendimento médio do setor observado para a última média móvel (setembro de 2019) é de R$ 1876, abaixo do observado para a economia nesse mesmo período (R$ 2298).

Quando avaliamos as características demográficas, vemos que o setor é composto majoritariamente por negros (quase 60% da população ocupada), por homens (89%) e pessoas acima de 40 a 64 anos (que compõem 50% da população ocupada). Essas tendências persistem ao longo da série histórica. Já a distribuição educacional indica que a maior parte dos trabalhadores tem ensino médio completo (51%) ou trabalhadores sem escolaridade (24%). Os trabalhadores com ensino médio e ensino superior aumentaram sua participação relativa enquanto os menos educados diminuíram sua importância ao longo do tempo.

Por fim, a Figura 5 mostra a média de renda real habitual para esta atividade por faixas de escolaridade. Vemos que a renda do setor caiu exatamente no grupo de maior escolaridade -  ao longo do período a renda reduz de R$ 4100 no primeiro trimestre de 2012 para R$ 2820 no segundo trimestre de 2019.

À primeira vista, os indicadores gerais de informalidade e os indicadores do setor de transporte rodoviário, em particular, sugerem que a entrada de aplicativos ao aumentar a informalidade e reduzir salários está correlacionada a precarização das condições de trabalho. Contudo, não é possível inferir uma relação causal entre os aplicativos e a precarização das condições de trabalho dos trabalhadores a partir das estatísticas descritivas apresentadas acima.

Em primeiro lugar, é possível que os trabalhadores que entram no setor já eram trabalhadores informais e com salários mais baixos nos seus setores de origem. Também é possível que os trabalhadores que continuaram no setor não perderam renda ou pioraram suas condições de trabalho. Para analisar esses pontos, é possível explorar os microdados da PNAD contínua para analisar as transições ocupacionais de trabalhadores de diferentes grupos demográficos entre outros setores e o setor de transportes. Em segundo lugar, é possível que a queda de salários e o aumento da informalidade nas atividades de transporte decorra simplesmente de mudanças estruturais na economia brasileira. Estudos causais são necessários para que seja possível concluir quais são os efeitos da entrada dos aplicativos de transporte sobre as condições de trabalho no setor de transportes. Em dois trabalhos em curso, avaliamos essas conjecturas de forma a avançar nessa discussão.

De qualquer forma, os indicadores agregados apresentados nesse blog sugerem a importância da realização de análises cuidadosas sobre os impactos da “Gig Economy” sobre o mercado de trabalho que possam subsidiar discussões sobre a regulamentação dessas novas formas de trabalho. De forma geral, os trabalhadores entrantes em uma das atividades mais influenciadas pelo surgimento de novas tecnologias e formas de trabalho não estão sujeitos a nenhuma regulamentação e proteção legal. Eles também deixam de contribuir para a previdência e recolher FGTS, com potenciais impactos sobre o orçamento público. Na medida que o setor de transporte rodoviário é um laboratório do que pode ocorrer em outras atividades com a expansão da “Gig Economy”, isso traz à tona todo um debate regulatório de como preservar os ganhos das tecnologias sem permitir que elas promovam aumento da vulnerabilidade social. Esse é um debate mundial que parece particularmente relevante no Brasil devido ao alto grau de informalidade da nossa economia e ao atrelamento de grande parte das políticas de seguro para os trabalhadores à existência de vínculos empregatícios formais.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

 

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