Nota sobre a mensuração pela SPE dos PIBs público e privado
A Secretaria de Política Econômica do Ministério da Economia (SPE) divulgou recentemente nota metodológica sobre a medida dos PIBs público e privado, seguida de uma estimativa da evolução dessas magnitudes em 2019[1].
Nas estimativas da SPE, o pífio desempenho do PIB em 2019 – crescimento de 1,1% – deveu-se à contração do PIB público – decréscimo de 1,1% nas contas da SPE –, pois o PIB do setor do setor privado teria crescido 1,8%.
Acreditamos que a metodologia da SPE para o cálculo dos PIBs público e privado está equivocada. Pois, em lugar de medir a evolução dos bens e serviços ofertados pelos respectivos setores, o que a SPE mede é a evolução das demandas por bens e serviços destes setores – e ainda assim com problemas metodológicos que apontaremos.
A SPE faz o argumento de que um deslocamento da composição do PIB do setor público para o setor privado aumenta a produtividade da economia, o que parece razoável. Porém, nesse caso, o que queremos ver é se a oferta de bens e serviços se desloca do setor público para o setor privado. Pois, por exemplo, de nada adiantaria, para aumentar a produtividade da economia, que uma maior demanda de bens e serviços do setor privado fosse atendida por uma maior oferta de bens e serviços do setor público – para arguir com um caso limite.
Infelizmente, não é contabilmente simples obter estimativas para as ofertas de bens e serviços do setor público e do setor privado, como mostraremos a seguir. Por isso, talvez, a SPE tenha optado por medidas do lado da demanda. Mas tal procedimento desfigura seu objetivo básico que é arguir que mudanças recentes na composição do PIB teriam contribuído para aumentar a produtividade da economia.
Para arguir nossos pontos, teremos que caminhar de forma algo tediosa por conceitos básicos de contabilidade nacional e de sua configuração nas contas nacionais do IBGE. Conforta-nos a recordação que tem um de nós (Bacha) das aulas de Mario Henrique Simonsen no curso de aperfeiçoamento de economistas da Fundação Getúlio Vargas, no longínquo 1964. Dizia o saudoso mestre, ao iniciar o curso de macroeconomia com diversas aulas de contabilidade nacional, que contabilidade era 50% da macroeconomia que os alunos iriam precisar em sua vida profissional. E mais, que os outros 50% provavelmente estariam errados se não se baseassem nesses primeiros 50%. Vale-nos essa lição.
Partimos da identidade básica das contas nacionais:
Y = A (1)
Onde:
Y = PIB pela ótica da produção ou oferta
A = PIB pela ótica do dispêndio ou demanda
Para nossos propósitos, podemos decompor Y da seguinte forma:
Y = Yp+ Ye+ Yg + ImS (2)
Onde:
Yp = valor adicionado (VA) do setor privado
Ye = VA das empresas públicas (estatais)
Yg = VA do governo geral ou APU (administração pública, defesa, saúde, educação pública, seguridade social)[2],
ImS = impostos sobre produtos menos subsídios a produtos
A equação (2) ilustra que, em princípio, não é possível decompor o PIB entre setores, mas somente o VA. Entretanto, como os impostos menos subsídios são apropriados pela APU, podemos com alguma liberdade de expressão adicioná-los ao VA da APU, assim compondo um PIB do governo. Se a esse PIB do governo adicionarmos o VA das estatais, chegaremos a um conceito possível de PIB do setor público, cuja evolução poderia então ser comparada, também com liberdade de expressão, com a evolução do PIB do setor privado obtido pela diferença entre o PIB total e o PIB do setor público. Vale notar que o PIB do setor privado assim obtido é tão somente o valor adicionado do setor privado constante da equação (2).
As dificuldades de decompor o PIB em público e privado pelo lado da oferta não param por aí. É que, nas contas nacionais do IBGE, o VA das estatais está distribuído pelas atividades mercantis, junto com o setor privado, como por exemplo, a produção da Petrobrás, que está distribuída entre a indústria extrativa e a da transformação, além de alguns serviços.
Entretanto, o IBGE publicou uma série de 2010 a 2017 pela ótica da produção, definindo um VA do setor público, pela soma das empresas estatais à APU.[3] Para se obter o PIB do setor público ,pode-se somar ao VA do setor público os impostos sobre produtos líquidos de subsídios, já que estes são apropriados pela APU. O PIB do setor privado pode então ser obtido pela diferença entre o PIB total e o PIB do setor público.
O Gráfico 1 ilustra o resultado desse procedimento, indicando as participações no PIB total do PIB do setor público (APU + Estatais + I(mpostos) – S(ubsídios)) e do PIB do setor privado (este sendo calculado por diferença entre o PIB total e o PIB do setor público). As informações para 2018 e 2019 referentes às empresas estatais foram obtidas em séries divulgadas pelo Ministério do Desenvolvimento e da Secretaria do Tesouro Nacional.[4]
Há, entretanto, uma nova dificuldade. É que, com os dados disponíveis, não é factível calcular essas informações em preços constantes e, portanto, elas são apresentadas no gráfico em preços correntes. A razão pela qual não é possível fazer os cálculos em preços constantes, como seria correto, é que o valor adicionado pelas empresas estatais está distribuído entre as atividades que produzem bens e serviços mercantis. Dado esse procedimento de incluir as estatais nas contas nacionais, é-nos impossível calcular com alguma precisão o PIB do setor público em preços constantes, já que as empresas estatais estão espalhadas em diversas atividades econômicas que produzem produtos mercantis com diferentes deflatores. Trata-se de tarefa para futuras pesquisas, para as quais serão necessárias novas séries por parte do IBGE.
Em preços correntes, observa-se no Gráfico 1 que, de 2010 a 2017, a participação média do setor privado no PIB foi de 65,7%, com pouca variação; em 2018 essa participação cai para 62,3%, voltando a crescer para 65% em 2019. Ou seja, nesses conceitos, embora haja um aumento em 2019 da participação do setor privado no PIB, ele foi insuficiente para repor a média observada entre 2010 e 2017.
Constata-se, assim, pouca alteração na composição do PIB na direção do setor privado. No entanto, como não temos os respectivos deflatores e estamos, por isto, trabalhando no Gráfico 1 com valores nominais, não podemos dizer se as variações de composição do PIB se devem aos volumes (que nos interessam mais) ou aos preços (que nos interessam menos). Passemos, pois, para uma medida alternativa.
Uma possível alternativa seria redefinir os conceitos relevantes, retirando as estatais do setor público e as colocando no setor privado, ondem residem as atividades mercantis que caracterizam esse setor. Com essa mudança, podemos calcular todos os conceitos em preços constantes usando os dados disponibilizados pelo IBGE.
Chamaremos então, na equação 2, a soma Yg + ImS de PIB do setor governo e a soma Yp+ Ye de PIB do setor empresarial. Trata-se de uma alternativa pobre, pois, mais do que uma substituição de serviços públicos por atividades privadas, o que nos interessaria ver é se a atividade empresarial se desloca do setor público para o setor privado. Mas essa decomposição é a que podemos fazer com os dados disponibilizados pelo IBGE.
O Gráfico 2 mostra a evolução de 2010 a 2019 do PIB do governo, acima definido, e do PIB empresarial, definido como a diferença entre o PIB total e o PIB do governo, em R$1.000 de 1995. Note-se que as estatais estão incluídas no PIB empresarial. O PIB do governo cresce um pouco mais do que o PIB empresarial de 2010 a 2014, cai em 2015 e 2016 e daí em diante o PIB empresarial cresce sistematicamente mais do que o PIB do governo, inclusive em 2019.
Parece-nos que esse último movimento é mais uma retomada cíclica do que propriamente uma substituição do governo pelas empresas, pois o que se espera numa retomada é que as atividades empresariais cresçam mais do que os serviços prestados pelo governo – e ainda assim, em 2019, o PIB empresarial não alcança o nível que teve em 2014. É possível que isso se deva a que as empresas estatais não se tenham recuperado na mesma medida que as empresas privadas.
Concretamente, dos dados ilustrados no Gráfico 2, concluímos que o PIB empresarial cresceu 1,3% em 2019, enquanto o PIB do governo cresceu 0,8%.
Ou seja, aplicando os conceitos possíveis com os dados existentes, não observamos substituição recente relevante do “público” pelo “privado”. Mas, como explicamos anteriormente, os dados disponíveis são insuficientes para uma conclusão definitiva. É até aí infelizmente onde podemos chegar neste texto. Passemos agora a examinar a metodologia a nosso ver equivocada que foi utilizada pela SPE.
*
A SPE, em vez de usar o PIB pela ótica da produção, Y, como fizemos acima, considera o PIB pela ótima do dispêndio, A. Para melhor explicar o que se passa, podemos decompor A da seguinte forma:
A = Ad + N (3)
Onde:
Ad = dispêndio doméstico
N = exportações líquidas (de importações)
O dispêndio doméstico, por sua vez, pode ser decomposto assim:
Ad = Ap + Ag (4)
Onde:
Ap = dispêndio do setor privado em consumo e investimento
Ag = dispêndio do setor público em consumo, investimento do governo geral e investimento das empresas estatais[5]
O dispêndio do setor público, Ag, é o que a SPE chama de “PIB público”.
A diferença entre A e Ag (igual à soma Ap + N) é o que a SPE chama de “PIB privado”. Note-se que esse inapropriado conceito não é nem o VA do setor privado e nem mesmo o dispêndio do setor privado, pois este inclui apenas o consumo e o investimento privados, excluindo as exportações líquidas.
Que relação tem esse “PIB privado” da SPE com o valor adicionado do setor privado, Yp, constante da equação (2)? Basta substituir (2)-(4) em (1) e simplificar para encontrar:
“PIB privado” = Ap + N = Yp + (PIBg – Ag) (5)
Onde:
PIBg = Ye + Yg + ImS (6)
Ou seja, PIBg é o PIB do setor público, antes definido.
Como se vê em (5), o “PIB privado” da SPE é igual ao VA do setor privado mais a diferença entre o PIB do setor público e o dispêndio do setor público. Como explicamos anteriormente, não temos como calcular o PIB do setor público em preços constantes. Por isso, não conseguimos determinar numericamente se é um aumento da diferença entre o PIB do setor público e a absorção do setor público que gera o superdimensionamento pela SPE do crescimento do “PIB privado” em 2019. Logicamente, é isso que deve ter acontecido. De qualquer modo, o conceito de “PIB privado” utilizado pela SPE não parece fazer sentido e deveria ser descartado.
Esforços de pesquisa no futuro deveriam, portanto, com a ajuda do IBGE, concentrar-se no cálculo em preços constantes dos PIBs público e privado, conforme os definimos anteriormente.
*
Abertura - E já que estamos falamos de aumento da produtividade, não podemos deixar de concluir sem apontar que, além da questão público v. privado, também muito interessa saber em que medida a economia se está abrindo para o exterior. Pois daí derivariam pelo menos duas boas consequências para a produtividade: aumento da escala de produção das empresas nacionais mais eficientes, por aumento de suas exportações, e maior utilização por elas de bens de capital e insumos modernos importados.
Nos termos das equações anteriores, podemos substituir (3) em (1) e, após expansão das exportações líquidas (N = X – M), escrever:
Y + M = Ad + X (7)
Então, contabilmente, um processo de abertura da economia seria indicado, na oferta, por um aumento de M relativamente a Y; e na demanda, por um aumento de X relativamente a Ad. Exercícios futuros sobre a alteração da composição do PIB na direção do aumento da produtividade deveriam a nosso ver também completar essa dimensão da abertura, além daquela da privatização contemplada pela SPE.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Cf. http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-economica/estudos-economicos/2019/2019_4t-resultados-pib-v3.pdf e http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-e....
[2] A APU produz em sua quase totalidade serviços não mercantis (administração pública, mais educação, saúde e defesa), cujo valor é medido pelos salários dos funcionários civis e militares; produz ainda valores ínfimos de venda de produtos mercantis (livros do IBGE, por exemplo) ou serviços mercantis (ingresso a museus, por exemplo), cujo VA é obtido pela receita menos os gastos na produção.
[3] As tabelas de número 16 das Contas Sinóticas do sistema de Contas Nacionais do IBGE disponibilizam estas informações.
[4] Informações obtidas no site do Ministério da Economia. Como a série antes de 2018 não apresenta exatamente os mesmos valores publicados pelo IBGE até 2017, estimaram-se os anos de 2018 e 2019 da série do IBGE pela variação apresentada pela série do Ministério da Economia em 2018 e 2019.
[5] As contas nacionais do IBGE não decompõem o investimento total em investimento do setor privado e investimento das empresas estatais em preços constantes, mas a SPE faz um exercício para construir as respectivas séries, estimando os valores das empresas estatais em preços constantes, para o período de 2017 a 2019. Ainda assim seria necessário se ter um deflator adequado para os investimentos do Governo Geral.
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