A dificuldade de o auxílio emergencial chegar em quem precisa
O Senado Federal aprovou em 30 de março um benefício social temporário de R$ 600. O objetivo é ajudar trabalhadores informais que perderão renda com a paralisação de diversos tipos de atividade econômica devido à quarentena imposta para reduzir o contágio da Covid-19. Um dia depois, o Senado estendeu a abrangência do auxílio emergencial, incluindo nominalmente 19 categorias, como diaristas, caminhoneiros, pescadores, baianas de acarajés e entregadores de aplicativos, e dando direito a duas cotas do benefício não só a mulheres que chefiam famílias sozinhas, mas também a homens na mesma situação.
Prevista inicialmente para durar três meses, com possibilidade de extensão por mais três, o auxílio emergencial deve representar um gasto adicional do governo federal de R$ 98 bilhões, alcançando cerca de 54 milhões de beneficiários, segundo o presidente Jair Bolsonaro.
Em função da pandemia, há inquestionável necessidade de se transferir renda para os trabalhadores informais neste momento. O que se observa é a disposição política para abrir os cofres públicos para mitigar os efeitos da epidemia na vida de parte expressiva das principais vítimas da tragédia. O difícil, como se verá à diante, é entender como fazê-lo. O Brasil dispõe de um sistema de benefícios para cobrir os indivíduos sem renda e os trabalhadores informais que não contribuem para o sistema estatal. Por serem menos visíveis à máquina pública, o esforço para localizá-los é grande. Por isso, muitos acabam não tendo acesso a programas do Estado brasileiro. Na verdade, a listagem mais abrangente dessa população está no Cadastro Único para Programas Sociais, conhecido como CadÚnico.
Ao conceber o modelo de transferência, terão direito ao novo auxílio emergencial os microempreendedores individuais (MEI), os contribuintes individuais do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e os trabalhadores informais de baixa renda. Os beneficiários devem ser maiores de 18 anos, não podem ter emprego formal ativo e nem receber benefício previdenciário ou assistencial, com exceção do Bolsa Família. Para ser considerado de baixa renda, a pessoa precisa pertencer a uma família que esteja cadastrada no CadÚnico ou que atenda ao critério de elegibilidade ao CadÚnico na data de 20 de março de 2020: renda per capita igual ou inferior a R$ 522,50 (meio salário mínimo); ou renda total familiar inferior a R$ 3.135 (três salários mínimos).
O programa, portanto, é muito ambicioso, mas como colocá-lo de pé em altíssima velocidade, chegando a quem de fato precisa? Muitas vezes o debate público erroneamente ignora dificuldades operacionais reais e relevantes na implantação de novos benefícios sociais.
Uma parte desse desafio será vencida com instrumentos que o governo já tem em mãos. Para começar, durante o trimestre de ação do programa, haverá majoração para R$ 600 do benefício daqueles que recebem o Bolsa-Família. Naturalmente, a própria estrutura de pagamento do programa será utilizada para pagar o auxílio. No caso, serão 14 milhões de famílias cobertas, que englobam aproximadamente 44 milhões de pessoas. Dados da PNAD Contínua sugerem que aproximadamente 90% dos brasileiros entre os 40% mais pobres recebem o Bolsa-Família, universo que inclui uma fatia muito grande dos trabalhadores informais mais pobres. Segundo declarações do ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, a transferência será iniciada com os beneficiários do Bolsa-Família.
Em outra frente, há as famílias do CadÚnico que não estão no Bolsa-Família. O Cadastro tem um total de 29 milhões de famílias, ou 76 milhões de pessoas. O CadÚnico é a base para a inclusão de participantes em 26 programas sociais federais, entre eles o Bolsa-Família. Mas também inclui grupos que não seriam contemplados com o auxílio emergencial, como os beneficiários de programas sociais como o BPC, o Benefício de Prestação Continuada, que paga um salário mínimo mensal a idosos e deficientes pobres.
De acordo com o ministro, na sequência ao Bolsa-Família devem ser contempladas as demais famílias elegíveis que integram o CadÚnico. Uma forma fácil de incluir os informais do CadÚnico, que fariam jus ao auxílio emergencial e que não estejam no Bolsa-Família, seria simplesmente escalar a estrutura de pagamento do próprio Bolsa Família. Afinal, os integrantes do CadÚnico já têm sua renda, endereço e características familiares, sociais e profissionais acessíveis ao governo.
Em seguida, segundo o ministro Onyx, virão os MEI e os trabalhadores por conta própria que contribuem para o INSS e, por fim, os demais trabalhadores informais. Atingir este último grupo é o maior desafio!
Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, há a ideia de utilizar cadastros de trabalhadores autônomos das prefeituras, como registros de ambulantes e taxistas, no esforço de chegar ao público alvo do novo benefício. Entretanto, quando se sai do universo do CadÚnico, o novo programa ingressa em terreno mais pantanoso. A montagem e operacionalização de uma nova plataforma de programa social é tarefa complexa. Quem lida com programas sociais sabe da dificuldade e do tempo necessário para criar registros da população de renda modesta e educação deficiente. Em se tratando da construção de um cadastro totalmente online voltado para esse público, é imprescindível pensar em estruturas robustas de prevenção a fraudes. De posse de dados e documentos das famílias de baixa renda, estelionatários podem, em tese, se cadastrar como terceiras pessoas e indicar contas bancárias em seu controle para receber os benefícios. Problemas como esse poderiam dificultar que o dinheiro chegasse às famílias mais necessitadas.
Uma das muitas ideias aventadas pelo governo, segundo matérias da imprensa, seria um credenciamento feito pelas próprias comunidades. Contudo, tal estratégia passa pelo risco de que a escolha dos beneficiários seja capturada pelas elites locais, como tratado pela literatura acadêmica sobre este tipo de experiência. No caso brasileiro, isso pode frequentemente significar milícias e traficantes. É difícil antecipar o que acontecerá. Seria um tiro no escuro. Adicionalmente, a descentralização desse trabalho para as comunidades requer alguma padronização dos conceitos de rendimento e família, similarmente ao que já existe no arcabouço do CadÚnico. Este cadastro padroniza conceitos de rendimento e de família em todo o país e capacita todos os municípios brasileiros para garantir que os critérios usados sejam os mesmos. Qualquer estrutura nova de cadastramento precisa prever esforço semelhante. Haveria tempo para isso? Certamente não.
Outro problema é que criar estruturas de auditoria e fiscalização para operar um benefício previsto para durar três meses é ineficaz. Com benefícios de tão curta duração, os valores individuais de eventuais fraudes tendem a ser muito baixos para entrarem no raio de ações de cobrança de valores pagos indevidamente. Esse fato, entretanto, não passará despercebido pelas quadrilhas de hackers e estelionatários especializadas em fraudar programas sociais.
A dificuldade, entretanto, como já mencionado acima, é que uma parcela considerável do público alvo de trabalhadores informais a ser alcançada não está no CadÚnico. Estimativas de técnicos da área social apontam em cerca de 20 milhões de pessoas, ou algo entre 15 milhões a 30 milhões, o grupo populacional fora do CadÚnico e do mercado de trabalho formal. Esse é o contingente que precisa “ser encontrado” pelo auxílio informal, o que significa um enorme desafio para um programa urgente e de curtíssimo prazo. Há estratégias concebíveis, mas que exigem um enorme e muito bem coordenado esforço, para montar uma força-tarefa e agrupar todos os dados possíveis, incluindo até CPFs. Não está claro que uma iniciativa desse escopo e dificuldade é exequível no momento.
Em resumo, incluir os cidadãos elegíveis velozmente no auxílio emergencial será um grande desafio logístico e operacional para o governo. Os registros do MEI e das contribuições ao INSS, que já fazem parte do arsenal do programa, poderão ajudar, mas não são bases de dados desenhadas para dar suporte a programas sociais, como o CadÚnico. Assim, é de se esperar que o governo tenha muita dificuldade na tarefa de operacionalizar o auxílio emergencial.
Esta é a Carta do Ibre de abril de 2020, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.
O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa forma, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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