Debate sobre recuperação peca por falta de objetividade
Em um ambiente bastante polarizado, o debate sobre a recuperação da economia pós-covid sofre da pouca objetividade refletida em uma postura megalomaníaca que contamina o governo. O “big bang” que prometia uma revolução no orçamento brasileiro não saiu do papel por falta de foco, boas ideias, além da tradicional dificuldade fiscal do governo.
Existem três questões no debate sobre a recuperação. A primeira é ter claro qual a melhor forma de retirar os estímulos fiscais quando isso for possível. A duração da pandemia dita o ritmo de retirada dos estímulos fiscais em um ambiente onde a demanda privada se tornou bastante dependente dessas políticas, em particular, do benefício emergencial. Enquanto o programa não pode ser encerrado, é preciso identificar as deficiências das políticas e propor as melhorias necessárias para reduzir seu custo e definir uma estratégia de saída.
A segunda questão está relacionada às mudanças estruturais que a crise ensejará. O trabalho remoto é uma realidade distante para muitas pessoas porque ele só é viável para as classes mais elevadas de renda. Além disso, o vínculo trabalhista se torna mais frágil e, com isso, reduz-se a proteção social. É importante entender quais as políticas devem ser feitas para regular de maneira adequada o trabalho remoto e como viabilizá-lo à maior parcela da população. Assim, a legislação trabalhista deve se adaptar à nova realidade.
Precisamos reorganizar os sistemas educacionais para viabilizar o ensino à distância, pois as escolas públicas não conseguiram retornar até o momento e o custo social dessa paralisia é muito alto. É preciso identificar quais setores estão em dificuldade para se adaptar às novas tecnologias e incentivá-las. O setor público deve adotar tecnologias não presenciais de prestação de serviços e a reforma administrativa, por exemplo, deve refletir sobre esse tema.
A terceira questão está relacionada ao diagnóstico sobre as causas da fraca recuperação da economia brasileira desde 2016 e que fazem com que os últimos anos tenham resultado em uma segunda década perdida com redução dos níveis de renda per capita. Aqui é importante ter em mente os seguintes fatos estilizados: o baixo nível de investimento (público e privado), a estagnação das exportações e a queda da produtividade. Nada novo na pandemia parece ter surgido para mudar essas tendências no pós-crise.
A reforma tributária é o principal assunto em debate no país capaz de contribuir na discussão sobre crescimento. Ao deslocar a tributação da produção para o consumo, a reforma desonera investimento e exportação. É uma proposta positiva, mas existem outros temas que precisam avançar. As alíquotas de tributação sobre a renda das empresas estão em queda no mundo inteiro e precisamos convergir para essa realidade, pois perde-se competitividade. O investimento público seguirá em queda, as privatizações não avançaram. É preciso consolidar a agenda do investimento no país.
O governo acena com um novo programa de assistência. Esse programa é necessário, mas é importante ter foco. Metas grandiosas, sobreposição de objetivos, dispersão de instrumentos e conflitos distributivos pouco justificáveis vão alongar a implementação das medidas e dificultar a recuperação econômica. Nem toda política pública precisa de uma nova constituinte para ser implementada.
Conforme mostrou Pedro H. Souza no livro “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil”, as mudanças na distribuição de renda não ocorrem de forma incremental. Crises são oportunidades para mudanças expressivas e, nesse caso, instrumentos tributários são mais efetivos e deveriam compor uma parte importante do financiamento do programa.
Essa também é uma discussão sobre quem deve contribuir com o esforço da crise em um contexto onde a distribuição de renda e os níveis de pobreza no país estão piorando nos últimos anos. Distribuir renda sem crescimento é um exercício bastante complexo e não parece razoável concentrar a maior parcela do ônus dessas políticas sobre quem sofre os efeitos de todas essas crises nos últimos anos.
O governo encaminhou no dia 31 de agosto a proposta orçamentária sem apontar soluções para as questões aqui tratadas e tantas outras em debate. Na prática, dada a elevada incerteza e as restrições fiscais, o orçamento se tornou uma formalidade que servirá para dar início ao debate da recuperação.
No dia seguinte, o IBGE divulgou que a contração do PIB foi de 9,7% no segundo trimestre. Esse resultado era amplamente esperado por analistas, mas talvez sirva para chamar a responsabilidade de quem tem que conduzir esses assuntos com mais serenidade. O sucesso desse trabalho depende primeiro de estabelecermos as prioridades para a ação. Esse artigo contribui nesse debate.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 02/09/2020, quarta-feira.
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