70 anos da morte de Getúlio Vargas e o mercado de capitais
Do final do Império até a 1ª guerra mundial, houve surpreendente desenvolvimento dos mercados de capitais no Brasil. Mas mudanças no funcionamento da economia nacional consolidadas na era Vargas tornaram o país mais estatista.
No último 24 de agosto completaram-se 70 anos da morte de Getúlio Vargas. A efeméride foi pouco notada. Nesta Ponto de Vista, apresentarei a alteração profunda ocorrida na intermediação da poupança nacional de 1930 até 1950. Getúlio Vagas foi essencial para moldar a maneira como organizamos a economia brasileira. A coluna acompanha de perto o trabalho do historiador mexicano Aldo Musacchio, professor da Escola Internacional de Negócios da Universidade de Brandeis, EUA.
O professor publicou em 2009, pela Cambridge University Press, “Experimentos em democracia financeira: governança corporativa e desenvolvimento financeiro no Brasil, 1882-1950”. A partir de uma extensa pesquisa, Musacchio documenta que, do final do Império até a primeira guerra mundial, houve um surpreendente desenvolvimento dos mercados de capitais no Brasil. Tanto mercado de ações quanto de debêntures. As empresas, principalmente do setor de utilidades públicas e as ferrovias, bem como as principais empresas da indústria de transformação, como o setor têxtil, por exemplo, se financiavam por meio da emissão de ações e de debêntures.
O peso do financiamento por meio de mercado de capitais, por volta de meados da década de 1910, atingiu 20% do PIB para as ações e 14% do PIB para as debêntures. Para o mercado acionário, somente superamos esses valores em meados da década de 1990. Em debêntures, estamos ainda com 10% do PIB.
O avanço do mercado acionário na República Velha decorreu de uma legislação, criada após os excessos do encilhamento, muito cuidadosa em obrigar as empresas a produzir informações muito detalhadas dos balanços, da lista dos acionistas e das condições de remuneração de toda a diretoria. Havia também cuidado nas informações no momento da abertura do capital da empresa. Se a empresa divulgasse informações irregulares, os responsáveis eram responsáveis criminalmente, com risco de prisão.
O desenvolvimento do mercado de capitais fez com que diversas empresas incluíssem cláusulas no seu Contrato Social que defendiam os interesses dos acionistas minoritários. Além de todas as ações darem direito a voto – não havia ações preferenciais –, era comum que o contrato social das empresas estabelecesse um limite superior para o poder de voto de um acionista, como ocorreu, por exemplo, na privatização da Eletrobrás.
Evidentemente, havia grande diversidade. Mais de 50% das empresas brasileiras eram controladas por famílias. No entanto, no setor de utilidades públicas, nas ferrovias, nos bancos e na indústria têxtil, a presença de empresa de capital aberto era importante.
O desenvolvimento do mercado de debêntures decorreu da existência de uma legislação de falência que era muito favorável ao credor. Até a legislação de 1902, os credores tinham quatros direitos: 1) direito de retomar colateral; 2) primeiro lugar na fila de pagamento; 3) aprovavam o plano de recuperação da empresa; 4) os gestores poderiam ser retirados na recuperação.
Em 1908, a legislação foi alterada e colocou alguns tributos não pagos e alguns pagamentos para os trabalhadores na frente dos debenturistas. No entanto, segundo Musacchio, a nova legislação não “pegou”, e “de 1850 até 1929, o Brasil garantia aos credores todas as quatro proteções legais consideradas importantes para a expansão do mercado de dívida”.[1]
Assim, a questão é o que ocorreu após a primeira guerra mundial que desestimulou o funcionamento do mercado de capitais. Uma possível explicação é que o forte fechamento da economia mundial – tanto para o comércio quanto para a mobilidade de capital – estimulou os empresários a defenderem que medidas fossem tomadas para priorizar a sobrevivência das empresas existentes em detrimento da proteção dos credores e dos acionistas minoritários. Outra explicação é que a inflação ocorrida em seguida à saída de diversas economias do padrão ouro na década de 1920 “gerou mudanças nas prioridades dos eleitores, que motivaram os governantes a alterar a regulação da governança das empresas abertas”.[2]
Ocorreu um pouco das duas, mas, a partir de evidência, Musacchio considera que o segundo canal foi mais intenso. Segundo ele, “no caso do Brasil, retornos reais negativos e o baixo volume de novas emissões para os títulos e ações levaram os industriais, as organizações trabalhistas, o governo e até mesmo corretores a abandonar o sistema original de governança corporativa e finanças em favor de um novo sistema baseado em crédito bancário, com o governo fornecendo a maior parte do financiamento.”[3]
De certa forma, as duas hipóteses explicam as alterações, apesar de as mudanças legislativas que consolidaram o novo modelo terem vindo quase duas décadas após o choque da primeira guerra. Parece que o choque inflacionário foi mais decisivo. A inflação maior “erodiu a confiança dos investidores, e as empresas se voltaram para o crédito bancário para financiar a operação e os investimentos. O governo assumiu um papel na alocação de crédito e na proteção de setores estratégicos por meio de crédito subsidiado”.[4]
A consolidação das alterações da forma de funcionamento da economia brasileira veio no governo Getúlio Vargas. Em 1945, foi aprovada uma nova legislação de falência, seguindo o modelo corporativo italiano do período. Na nova lei, as empresas perdiam precedência ante a dívida trabalhista e com a Receita e, na prática, não conseguiam recuperar colateral. Havia um período provisório de dois anos, chamado de concordata, em que a empresa podia se reorganizar sem a interferência dos credores.
Antes em 1933, Getúlio Vargas havia aprovado uma lei de usura que estabelecia um limite superior para a taxa de juros nominal, o que elevava muito a exposição dos credores à inflação.
Para as empresas de capital aberto, uma lei de 1932 permitiu a emissão de ações preferenciais sem direito a voto. Ficou simples para que acionistas majoritários, como pouco capital, conseguissem ter o controle da empresa.
Outro elemento importante da alteração do capitalismo brasileiro produzida por Getúlio Vargas foi a estatização dos serviços de utilidade pública. Um exemplo paradigmático é a estatização da empresa Light, responsável pela produção e distribuição de eletricidade, pela telefonia e pelos transportes públicos, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Trabalho de Marcelo Jourdan documentou que, após 1930, o controle tarifário reduziu a rentabilidade da empresa, o que gerou subinvestimento. Com o passar do tempo, naturalmente o setor público foi assumindo a operação das diversas atividades.
A economia caminhou para um modelo de capitalismo baseado em empresas familiares. Com a centralização do Estado na intermediação da poupança – por meio de fundos públicos e da receita de sistemas públicos de previdência em um momento que esta era altamente superavitária etc. –, as empresas familiares adquirem importância. O dono da empresa negocia diretamente com o Rei, digamos assim. Como afirmou Lula, se lamentando da governança da empresa Vale do Rio Doce, “A Vale, que tinha uma diretoria, eu sabia quem era o presidente, a gente sabia quem era. Hoje, (...) é uma tal de corporate que não tem dono, monte de gente com 2%, monte de gente com 3%. É que nem cachorro de muito dono. Morre de fome, morre de sede porque todo mundo pensa que colocou água, todo mundo pensa que deu comida e ninguém colocou”.
Como argumentou Musacchio: “Em poucas palavras, o jogo da governança corporativa deixou de ser sobre fornecer proteção para investidores externos que compravam ações ou títulos em mercados de ações. Quando o crédito de longo prazo é fornecido principalmente por bancos governamentais (especialmente depois de 1940), o foco das corporações e seus proprietários necessariamente teve que mudar para como acessar financiamento governamental e garantir crédito de curto prazo de bancos”.[5]
Hoje, com o esgotamento fiscal do Estado, e com a prioridade do setor público sendo a oferta de serviços e seguros públicos para a população na forma de um Estado de bem-estar amplo e abrangente, parece não haver muito espaço financeiro para o modelo varguista de capitalismo de Estado. Um longo processo de modernização de nossas instituições segue desde o governo Collor. A longa hegemonia petista, que se renova agora no terceiro mandato do presidente Lula, tem tido muita dificuldade de entender essas limitações e de embarcar com mais desenvoltura em um modelo mais moderno e compatível com as nossas escolhas sociais. De certa forma ficamos andando em círculos.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de outubro de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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