Agenda mínima para o futuro
O montante evitado de gasto público pela fusão de políticas sociais é condicional ao desenho ambicionado, mas é bastante razoável afirmar que gira em torno de R$ 20 bilhões por ano ou R$ 200 bilhões em dez anos.
Ambiente global
Os desafios que emergem da pandemia e da guerra mudaram sensivelmente o ambiente macroeconômico e geopolítico global, com destaque para as tensões recorrentes entre nações e blocos econômicos, reorganização das cadeias de valor de distintos setores, sanções de escopo ampliado que afetam desde a condução da política monetária e cambial até a execução de operações de comércio exterior, dentre outros efeitos. Nesse contexto, que trouxe consigo um desafio adicional de combate à inflação, parece claro registrar que os países com fundamentos macroeconômicos frágeis sofrem desproporcionalmente mais do que outras economias. É nesse complexo ambiente externo que o Brasil passa por mais um ciclo político-eleitoral, polarizado o suficiente para turvar sua perspectiva de futuro e capacidade de endereçar problemas estruturais internos e antigos que o aprisionam na armadilha de baixo crescimento.
Limitação político-institucional
A despeito dos caminhos para superar essa armadilha serem bem estabelecidos e de relativo amplo conhecimento, a falta de coesão social, o horizonte político curto e a incapacidade de cumprir as regras do jogo e do contrato social pré-estabelecido pelos próprios agentes políticos impedem o avanço coerente e estruturado da agenda macro e microeconômica no médio prazo. Em suma, é a baixa maturidade política e institucional, o que limita o avanço socioeconômico para a alta renda per capita, motivo pelo qual as rachaduras produzidas pela polarização extremada devem ser vistas como marcante restrição para o alcance do consenso requerido pelo denso conjunto de reformas. Não há reformas estruturantes que não passem pela economia política.
URV fiscal
É nesse desafiador quadro global e doméstico que o Brasil precisa encontrar uma agenda capaz de manter o mínimo de estabilidade socioeconômica, laboriosamente conquistada após a estabilização monetária bem-sucedida do Plano Real há quase 3 décadas atrás. Para tanto, a agenda começa na reconstrução do arcabouço fiscal, condição necessária para que outras pautas relevantes como a de comércio exterior, reshoring, transição energética e tecnológica tenham o espaço e a atenção que fazem jus.
Banalização
O desafio de aprimorar o arcabouço fiscal institucional, complexo por natureza, ganhou inquietude adicional após uma série de alterações constitucionais em curto período do tempo promovidas pelo Congresso Nacional. Em apenas 3 anos, foram 4 PECs fiscais que alteraram de forma sensível a institucionalidade da política fiscal, ampliando a incerteza e reduzindo sua credibilidade e enforcement. Por essa razão, seja qual for o governo e a regra fiscal a partir de 2023, o custo de transição para um novo regime será substancial.
Rápido ou devagar
Diante do maior custo de uma agenda de consolidação fiscal gradual, será inevitável entregar alguma reforma estrutural pelo lado do gasto de forma a contrabalançar tanto a menor credibilidade e enforcement ex-ante da futura regra fiscal quanto a materialização de riscos fiscais até o início do próximo ano. Dentre os principais riscos para o próximo ano, destacam-se a pressão em torno do reajuste dos salários do funcionalismo público, crescente demanda para o reajuste real do salário-mínimo e ampliação das transferências de renda.
Desejo insaciável
O impacto fiscal da expansão do salário do funcionalismo é condicional ao reajuste concedido e pode girar entre R$17/67 bilhões, respectivamente, caso o reajuste seja de 5% ou 20%, sendo este último demanda de múltiplas categorias. Já a manutenção do auxílio Brasil no valor de R$600/mês para cerca de 20 milhões de famílias tem ônus de R$50 bilhões em 2023, enquanto o reajuste real do salário-mínimo de 2023 a 2026 adiciona cerca de R$27 bilhões à ampla lista de gastos adicionais. Em suma, somente em 2023 o impacto gira entre R$70/120 bilhões, sendo ainda maior nos anos subsequentes. Caso incluíssemos o apetite para a ampliação de investimentos, emendas de relator e a criação ou prorrogação de renúncias fiscais, a fatura é ainda mais excepcional.
Mato alto
A maneira mais evidente de tentar equilibrar as múltiplas demandas com a restrição orçamentária intertemporal, passa pela realização de uma reforma administrativa e fusão de políticas sociais, no mínimo. Enquanto a primeira pode economizar cerca de R$200 bilhões em 10 anos, a segunda tem a capacidade de ampliar a eficiência do gasto público, entregando uma política social mais efetiva ao mesmo custo atual, sem adição líquida de gasto. O montante evitado de gasto público pela fusão de políticas sociais é condicional ao desenho ambicionado, masé bastante razoável afirmar que gira em torno de R$20 bilhões por ano ou R$200 bilhões em 10 anos. A revisão da extravagante cifra de R$370 bilhões por ano de renúncias fiscais é ainda imperativo, notadamente no âmbito de reforma tributária séria, de qualidade.
Tecnologia, não feitiçaria
Outra agenda igualmente relevante e por vezes minimizada, passa pela transformação digital do setor público. É pouco admissível que o país não disponha de uma big data capaz de cruzar os beneficiários de distintas políticas sociais executadas direta ou indiretamente pelo poder Executivo, seja federal ou subnacional. Além de evitar a concessão e o pagamento de benefícios de forma irregular, a digitalização bem estruturada amplia a capacidade de resposta dos governos e o desenho de políticas públicas. Para ilustrar o potencial fiscal de um setor público mais ágil e inteligente, basta apontar a economia de R$14,5 bilhões do programa de revisão de benefícios executado entre julho de 2016 e dezembro de 2018, que identificou a concessão irregular em espantosos 80% dos auxílios e 30% das aposentadorias.
Futuro presente
O ganho de eficiência, inteligência e velocidade da máquina pública mais digitalizada é superlativo e sua ausência em meio ao choque da Covid, quando por ausência de dados estruturados e tempestivos houve falha, lentidão e cegueira para uma resposta adequada do governo federal, de estados e municípios, fala por si só. O progresso observado na regulação bancária em decorrência do PIX deve ser uma realidade em outras áreas de governo, de modo que a digitalização bem estruturada e coordenada abra espaço para, por exemplo: a oferta de prontuário eletrônico no SUS, o tracking do desempenho estudantil e oferta de aulas de reforço focalizadas, matching entre oferta e demanda por trabalho e requalificação, a redução da sonegação e evasão fiscal, dentre outras medidas.
Pathway
Com estes deliveries mínimos pelo lado do gasto, passa a ser admissível que os agentes econômicos deem o benefício da dúvida para uma transição e redesenho do arcabouço fiscal, na medida em que há delivery efetivo em rubricas relevantes do gasto obrigatório. Diante do quadro externo menos benigno e do desafio de promover uma mudança do arcabouço fiscal no contexto de uma fatura elevada para 2023, na esteira da ausência de credibilidade, a ordem dos fatores altera o produto. Assim com a restrição orçamentária, o capital político para solucionar os múltiplos desafios é restrito e deve ser empregado de forma assertiva e metódica, taticamente. Nesse sentido, eventual anúncio de medidas sem uma estratégia bem definida e trabalhada que entregue efetivamente os resultados supracitados, tem pouca ou nenhuma utilidade. Teremos sabedoria e capacidade de entrega? Let´s wait and see.
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