Política

Ajuste fiscal e a reforma das relações civis-militares

30 dez 2024

Despolitizar a caserna demanda muita vontade e capacidade. Grande parte do capital político do governo que poderia ser usado na reforma das relações entre civis e militares será consumido na reforma da previdência militar.

O pacote de revisão dos gastos públicos elaborado pelo Ministro Fernando Haddad foi anunciado no dia 27 de novembro, um dia após a Polícia Federal divulgar um extenso e minucioso relatório que descreve as tentativas de golpe de Estado articuladas por assessores e aliados de Jair Bolsonaro em 2022. Trinta e sete pessoas foram indiciadas, dentre as quais o próprio Bolsonaro e 25 militares, alguns deles de alta patente, da reserva e da ativa à época da trama.

A coincidência entre as duas datas foi um acaso, mas prenhe de consequências. Isso porque o pacote de Haddad pede uma contribuição das Forças Armadas em prol do ajuste fiscal. A contribuição inclui o fim da pensão às famílias de militares expulsos das Forças Armadas, o aumento das contribuições de ativos e inativos, o fim da integralidade (salário do último posto) na inatividade e da paridade (concessão de reajuste salarial dos ativos para militares da reserva e pensionistas) e o estabelecimento de uma idade mínima de 55 anos para que se possa passar para a reserva, com um período de transição até 2032.

A imprensa noticiou ter havido grande desconforto entre militares por conta da sua inclusão no pacote fiscal. Tratar-se-ia de uma retaliação decorrente das revelações feitas pelo relatório da Polícia federal[1].

A alegada retaliação não faz o menor sentido. A contribuição dos militares ao ajuste fiscal já vinha sendo considerada há meses, bem antes da divulgação do relatório. Além disso, como afirma Bruno Carazza, “Estabelecer uma idade mínima para a passagem à reserva, elevar a contribuição de ativos e inativos, eliminar a promoção automática de patente quando se passa à inatividade e rever o regime de pensões militares é um pacote básico para reduzir um pouco o déficit anual de quase R$ 48 bilhões (13% de todo o desequilíbrio previdenciário federal, incluindo INSS e o regime dos servidores civis, muito mais numerosos)”[2].

Em suma, reformar a previdência militar é um imperativo econômico há tempos.

Dito isso, há que se reconhecer também que o relatório da Polícia Federal apresenta fatos gravíssimos. Militares graduados, da ativa e da reserva, planejaram até o assassinato do presidente eleito, Lula, do seu vice, Geraldo Alckmin, e o de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal. A tentativa de golpe não foi endossada pelo Alto Comando do Exército e da Força Aérea. Porém, segundo o relatório, recebeu apoio do então comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier.

Os fatos revelados pela Polícia Federal dificultarão os esforços que os militares venham a envidar com o fito de evitar ou minimizar a reforma de seu sistema previdenciário.

Conquanto a trama não tenha tido êxito – em boa medida, por conta da recusa em apoiá-la por parte da maioria do Alto Comando do Exército, o ator decisivo para o sucesso ou fracasso de golpes no Brasil –, o que aconteceu é estarrecedor. Como foi possível chegar-se a tal ponto? O que foi revelado pela Polícia Federal aponta para falhas estruturais no controle dos militares pelos civis.

Como disse Robert Dahl, um grande politólogo americano, “a democracia só é possível se os militares forem suficientemente despolitizados para permitir o governo civil”[3]. Despolitizar suficientemente as Forças Armadas brasileiras passa pela reforma do Artigo 142 da Constituição (cujo texto ambíguo permiti interpretações perigosas a respeito do papel dos militares na ordem política), pela proibição aos fardados de concorrer a cargos eletivos, pelo estabelecimento de uma carreira de analista civil de defesa no Ministério da Defesa, pelo fortalecimento das comissões parlamentares encarregadas de supervisionar esse Ministério, por mudanças na educação dos cadetes e oficiais e por maior engajamento por parte das elites políticas em assuntos atinentes à defesa nacional.

Fácil falar, difícil fazer. Despolitizar a caserna demanda muita vontade e capacidade. Grande parte do capital político do governo que poderia ser usado na reforma das relações entre civis e militares será consumido pela aprovação da reforma da previdência militar. Muito provavelmente, faltará liquidez política para encaminhar quase todos os itens listados no parágrafo acima, sobretudo porque a maioria de direita que controla o Congresso não está preocupada com o reordenamento do papel constitucional das Forças Armadas. Apenas a carreira de analista civil de defesa tem chances razoáveis de ser criada em 2025, dado que é promessa reiteradamente feita pelo ministro da Defesa[4].

Se o cenário esboçado no parágrafo anterior se materializar, a contribuição dos militares ao ajuste fiscal sairá barata para as Forças Armadas – à luz de tudo que aconteceu entre 2018 e 8 de janeiro de 2023.

Por último, para aumentar as chances de reformas que fortaleçam o controle dos militares pelos civis e despolitizem a caserna, a elite política deve também propiciar às Forças Armadas os meios para que estas se equipem e tenham poder bélico condizente com a tarefa de dissuadir potenciais ameaças externas, apoiar a política exterior e, em última instância, lutar guerras nas condições do século 21. Porém, antes disso, é indispensável ter contas públicas equilibradas.

Este é a Seção Observatório Político do Boletim Macro FGV IBRE de dezembro de 2024.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 


[1] Ver, por exemplo, Bela Megale, “Relação de Lula e militares volta à estaca zero, avaliam integrantes do governo”, O Globo, 07/12/2024, disponível em https://oglobo.globo.com/blogs/bela-megale/post/2024/12/relacao-de-lula-e-militares-volta-a-estaca-zero-avaliam-integrantes-do-governo.ghtml.

[2] Bruno Carazza, “Não nos esqueçamos: Eles ainda estão aqui”, Valor Econômico, 25/11/2024, disponível em https://valor.globo.com/politica/coluna/nao-nos-esquecamos-eles-ainda-estao-aqui.ghtml.

[3] Robert Dahl, Polyarchy: Participation and Opposition (New Haven: Yale University Press, 1971), p. 50.

[4] Ver Mateus Carvalho, “Ministério da Defesa: ministro confirma concurso para servidores”, Folha Dirigida, 28/08/2024, disponível em https://folha.qconcursos.com/n/concurso-ministerio-da-defesa-2024-ministro.

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