Alto endividamento das famílias, com destaque para mais pobres, é desafio para próximo governo
De R$ 3 trilhões de crédito a famílias em 2022, 49% era da alta renda e 19% da baixa. Mas alta renda respondia por 24% do volume da inadimplência, e baixa por 37%. Novo governo sinaliza busca de solução para o problema.
Com o nível recorde de 68,4 milhões de pessoas inadimplentes em setembro deste ano, de acordo com os dados do Serasa Experian, o superendividamento das famílias brasileiras virou tema de primeira linha no atual embate eleitoral. O pioneiro na questão é Ciro Gomes, que já na campanha presidencial de 2018 apresentara proposta para limpar o nome dos brasileiros que haviam caído na malha dos serviços de proteção ao crédito, por meio de programas de renegociação, redução de juros e alongamento de prazos, com adesão de bancos públicos e privados.
Em 2022, porém, o problema das dívidas das famílias ganhou dimensão ainda maior e buscar uma solução virou algo bem mais premente. Ciro renovou a proposta e, com sua derrota no primeiro turno e o apoio de seu partido (PDT) ao presidente eleito Lula para o segundo turno, o candidato petista encampou a ideia de renegociar as dívidas da população, chamando a atenção para o fato de que o problema afeta particularmente as mulheres. Bolsonaro, por sua vez, retomou um programa da Caixa Econômica Federal de desconto de dívidas.
Pesquisadores do FGV-IBRE realizaram uma radiografia detalhada dessa onda de endividamento das famílias brasileiras a partir da base de dados do Banco Central conhecida como Sistema Central de Riscos (SCR), utilizando dados até julho de 2022. O SCR é um banco de dados com informações remetidas mensalmente por todas as Instituições Financeiras – bancos e fintechs – ao Banco Central, referente às operações de crédito acima de R$ 200,00, abrangendo empréstimos, financiamentos, avais e fianças.
Hoje, o SCR disponibiliza 126 terabytes de informações sobre cerca de 750 milhões de operações de crédito, envolvendo 109 milhões de clientes e um volume financeiro de R$ 3,34 trilhões. As aberturas do banco de dados são carteira, inadimplência, ativo problemático, tipo de consolidado bancário, segmento segundo a Resolução nº 4.553/2017, modalidade do produto de crédito, natureza da ocupação (CNAE) e nível de renda do cliente, origem do recurso, indexador da operação e operações por vencimento.
Com base nessa rica base de dados, os pesquisadores do IBRE detalharam como as famílias mais pobres se superendividaram nas modalidades mais caras de crédito, levando a uma disparada da inadimplência bem mais concentrada nas faixas de renda mais baixa do que nas mais altas. Para fins de análise, os pesquisadores consideraram como ‘baixa renda’ os tomadores de crédito na faixa que vai dos sem rendimento até os que ganham um máximo de dois salários-mínimos. Já a ‘alta renda’ é composta pelo grupo com renda de cinco salários-mínimos para cima.
Dos quase R$ 3 trilhões da carteira de crédito à pessoa física em meados de 2022, uma parcela de 49% estava alocada em clientes de alta renda, e de 19% nos de baixa renda. Apesar disso, a alta renda respondia por 24% do volume da inadimplência, e a baixa renda por 37%.
A inadimplência como um todo subiu no período, mas a alta foi maior na baixa renda devido ao percentual superior de produtos de crédito sem garantia. Assim, a taxa de inadimplência na faixa de baixa renda atingiu em julho de 2022 os níveis elevadíssimos de 10%, 13% e 13%, respectivamente, em linhas sem garantia como empréstimo pessoal, cartão de crédito e “outros” (onde está o cheque especial). Já para a alta renda, as mesmas taxas no mesmo mês foram de, respectivamente, 3%, 3% e 4%.
O SCR também permite perceber que os produtos sem garantia, com taxas de juros mais elevadas, cresceram mais fortemente que os garantidos desde a pandemia. Tomando como base janeiro de 2020, as linhas garantidas cresceram em volume, até julho de 2022, 40%, enquanto as sem garantia tiveram expansão de 64,5%.
Esse fenômeno, por sua vez, foi mais forte para a população de baixa renda do que para a alta renda. No caso do primeiro grupo, o aumento do volume de crédito sem garantia naquele período foi de 73%, e o com garantia de apenas 17%. Já na alta renda, o crescimento foi próximo: 49% para o sem garantia, e 40% para o garantido.
Em termos de linhas, no período compreendido entre janeiro de 2020 e julho de 2022, no segmento da baixa renda, houve aumento de 68,5% no endividamento em cartão de crédito e de 131% no empréstimo pessoal sem garantias. Fundamental notar que essas são as duas mais caras linhas de crédito disponíveis no país. Em julho de 2022, o saldo das operações com cartões para a baixa renda atingiu R$ 114,3 bilhões, e o das operações de empréstimo pessoal chegou a R$ 46,9 bilhões. Já a inadimplência da baixa renda nessas duas modalidades oscilou bastante desde o início da pandemia, mas vem subindo preocupantemente no período mais recente. A do cartão de crédito saiu de 7% em maio de 2021 (mínima mais recente) para 13% em julho de 2022. E a dos empréstimos pessoais foi de 6% em outubro de 2021 para 10% em julho de 2022.
O panorama na alta renda é distinto. Entre janeiro de 2020 e julho de 2022, o crescimento da dívida nas modalidades de cartão de crédito e empréstimos pessoal sem garantias foi de, respectivamente, 56% e 62%, atingindo os níveis de R$ 187,9 bilhões e R$ 120,6 bilhões. Já a inadimplência trafegou em níveis muito mais baixos do que os relativos à da baixa renda, a despeito de ter tido alguma alta recente. A inadimplência referente a cartões de crédito para a alta renda saiu de 2% para 3% entre janeiro e julho de 2022, enquanto a do crédito pessoal seguiu a mesma trajetória, mas a partir de fevereiro deste ano.
Finalmente, entre a população de baixa renda, os perfis com renda mais volátil contraíram empréstimos mais concentrados nos produtos sem garantia, e apresentam maior inadimplência. Considera-se que os clientes com renda menos volátil são funcionários da iniciativa privada, servidores públicos e aposentados. As demais categorias foram classificadas como de renda mais volátil.
Assim, a carteira referente ao grupo de alta volatilidade de renda tem 37% do volume em produtos sem garantia, contra 26% para aquela referente ao grupo de baixa volatilidade de renda. A taxa de inadimplência do grupo de alta volatilidade é de 7%, composta por taxa de 13% nos produtos sem garantia e de 3,3% nos garantidos. No grupo de baixa volatilidade de renda, os mesmos indicadores são de, respectivamente, 4%, 9% e 2,7%.
Mas por que a dívida dos brasileiros cresceu tanto, a ponto de chegar ao primeiro plano da campanha presidencial, como mencionado no início desta Carta?
Na visão de José Júlio Senna, coordenador do Centro de Política Monetária do FGV IBRE, boa parte do fenômeno tem raízes na pandemia. O impacto das quarentenas e do fechamento da maior parte do setor de serviços foi enorme no orçamento das famílias, especialmente as de baixa renda. É verdade que o auxílio emergencial chegou a mais do que compensar a perda de renda do salário durante certo período, mas de maneira descontínua, de forma a gerar insegurança e momentos de privação para as famílias.
Ao mesmo tempo, como acrescenta Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE, as condições de crédito eram favoráveis pelo nível de juros excepcionalmente baixo, o que foi em boa parte causado pela própria pandemia. A percepção inicial sobre o choque econômico – que se revelou correta apenas em prazo muito curto – era de que seria um fenômeno desinflacionário.
Some-se a isso o fato de que a inevitável recessão produzida pelo fechamento parcial das economias levou os governos corretamente a pôr em ação enormes impulsos fiscais e monetários, sendo um dos principais a redução drástica das taxas básicas de juros. No caso do Brasil, a Selic foi a 2%, no que foi visto por vários analistas como um exagero de redução por parte do Banco Central. Adicionalmente, no início da pandemia, as famílias ainda tinham espaço para aumentar seu nível de endividamento.
Senna aponta que, num segundo momento, a pandemia trouxe a alta da inflação, em boa medida provocada por choques diversos, como o representado pela desorganização das cadeias produtivas, e pelo desvio da demanda das famílias de consumo de certos serviços (os que envolviam contacto pessoal) para bens físicos. A estrutura produtiva e de logística relativa a esses bens não estava preparada para atender ao impulso extraordinário de demanda. Gargalos se tornaram inevitáveis.
Além disso, as próprias reações governamentais às consequências iniciais da pandemia, nos campos monetário e fiscal, necessárias, diga-se de passagem, viriam a adicionar combustível à alta inflacionária. De modo geral, os bancos centrais, como de costume, mas com diferentes graus de tempestividade, reagiram ao surto de inflação elevando as taxas de juros, processo que ainda está em curso em parcela significativa dos países.
No Brasil, a autoridade monetária está entre as que reagiram de maneira mais veloz e enérgica. Inevitavelmente, a alta de juros está atingindo em cheio as famílias endividadas, provocando intensa atividade de renegociação entre as partes envolvidas, num processo que não se resolve da noite para o dia. Para o segmento de baixa renda, como apontam os pesquisadores do FGV IBRE, é bastante normal renegociar dívidas, mas agora isso está sendo feito num ambiente de juros muito mais altos, o que deve criar um superendividamento persistente, com efeitos macroeconômicos adversos como, por exemplo, a inibição do consumo.
A discussão eleitoral sobre o grande endividamento das famílias brasileiras sinaliza que, no próximo governo, pode haver tentativa de solução para o problema, o que provavelmente implicaria algum tipo de subsídio, presumivelmente na casa de algumas dezenas de bilhões de reais. Isso certamente complicaria ainda mais o quadro já bastante difícil das contas públicas em 2023, como sugerem as projeções de grande parte dos analistas.
O alto endividamento das famílias, com destaque para as mais pobres, leva também a um prolongamento dos efeitos da pandemia à medida que reduz a capacidade de retomada do consumo pelas famílias com elevado comprometimento de renda ou com acesso ao sistema financeiro comprometido pela inadimplência. Katherine Hennings, pesquisadora associada do FGV-IBRE, observa finalmente que o elevado endividamento e a alta inadimplência das famílias brasileiras, especialmente as mais pobres, nas modalidades mais caras de crédito, aponta a relevância do tema da educação financeira da população.
Esta é a Carta do IBRE de novembro/2022, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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