Analisando a reforma da Previdência: benefício rural
A Câmara dos deputados rejeitou a proposta de reforma da previdência rural apresentada pelo governo. Apesar dessa decisão o problema persiste, pois nas condições atuais a previdência rural gera grande parte do déficit do INSS, não tem mecanismos efetivos para comprovar se o beneficiário realmente exerceu a atividade rural e carece de financiamento patronal adequado.
A reforma dos benefícios rurais provavelmente voltará ao debate político nos próximos anos, pois a reforma da previdência urbana e a falta de controle adequado na concessão de benefícios rurais tendem a ampliar o atual déficit da previdência rural rapidamente.
Começando pela proposta do governo, a versão original da PEC 06/19 continha basicamente quatro medidas:
1) Elevação da idade mínima de aposentadoria de trabalhadoras rurais, de 55 para 60 anos, com transição gradual (subindo 6 meses por ano). No caso dos homens a idade continuaria em 60 anos.
2) Aumento do tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos.
3) Mudança na comprovação do tempo de contribuição, que não poderia mais ser feita por meio de declaração de sindicatos, mas somente mediante recolhimento efetivo sobre a produção comercializada ou R$ 600 por ano.
4) Fim da isenção de contribuição previdenciária sobre o faturamento de exportações rurais.
As medidas acima estavam na direção correta, mas com os excessos de sempre de uma proposta inicial de reforma da previdência.
Por exemplo, começando pela idade de aposentadoria, é razoável que os critérios de aposentadoria urbana e rural convirjam para o mesmo valor na economia do século 21. O trabalho rural é certamente desgastante hoje em dia, mas também há vários tipos de trabalhos urbanos com desgaste equivalente, como na construção civil. Mais importante, o desenvolvimento da economia brasileira significa, também, modernização e automação crescente no campo, gerando melhores condições de trabalho ao longo do tempo.
Do ponto de vista previdenciário deve haver somente uma idade mínima de aposentadoria para trabalhadores na cidade e no campo, no setor público ou no setor privado e assim em diante.
Porém, como as condições atuais de trabalho ainda são muito diferentes no setor rural e urbano, a transição da idade mínima da aposentadoria rural deveria ser a mais lenta de todas as transições previstas na reforma da previdência. Infelizmente o governo não fez esse tipo de avaliação, se concentrando em mudar a idade mínima somente para mulheres, de modo bem rápido. O resultado foi a derrota da proposta, deixando o tema para discussão posterior.
No caso do tempo mínimo de contribuição, já opinei em outro texto desta série que o governo deveria ter mantido o critério atual de 15 anos. Relembrando, o ideal do ponto de vista previdenciário é utilizar o tempo de contribuição para calcular o valor da aposentadoria acima do piso de um salário mínimo, ou seja:
1) Conceder 60% do valor do benefício para quem contribuísse por 15 anos, independentemente do gênero ou setor de atividade.
2) Aumentar o benefício em 2 pontos percentuais para cada ano adicional de contribuição acima de 15 anos, de modo que uma pessoa que contribuísse por 35 anos teria acesso a 100% da média de suas contribuições.
3) E conceder um bônus, na forma de aumento adicional de 2% a 4% no valor do benefício, para cada ano de contribuição acima de 35 anos.
No caso específico da previdência rural, como o valor do benefício deve ser mantido em um salário mínimo, não há que se falar em relação com o tempo de contribuição ou bônus por tempo adicional de contribuição. Para trabalhadores rurais a regra deve ser simplesmente 15 anos de contribuição efetiva sobre o piso previdenciário, o que leva ao terceiro ponto da reforma proposta pelo governo.
Um dos maiores problemas da previdência rural é a falta de comprovação adequada do exercício de atividade rural. Nesse sentido o governo estava certíssimo ao exigir contribuição efetiva sobre o resultado da produção ou R$ 600 por ano. Para justificar essa proposta, cabe apontar que no caso de trabalhadores autônomos nas cidades – os micro empreendedores individuais (MEI) – a contribuição mínima exigida para ter uma aposentadoria de um salário mínimo já é de aproximadamente R$ 50 por mês. Assim, exigir que o “autônomo” do setor rural pague pelo menos R$ 600 por ano nada mais é do que igualar suas regras de aposentadoria aos trabalhadores autônomos de baixa renda nas cidades, que em sua maioria também tem condição de trabalho extenuante.
A mudança no critério de contribuição por parte de trabalhadores autônomos no campo é necessária, mas como toda mudança previdenciária, ela deveria ter sido proposta com regra de transição. Um critério simples e mais politicamente aceitável seria dizer que todos novos entrantes, ou todos nascidos a partir de uma determinada data, teriam que cumprir tal critério por 15 anos. Para os demais, o novo critério de contribuição deveria ser cumprido no tempo restante para atingir o mínimo de 15 anos de contribuição.
A modificação acima, junto com a criação de uma renda mínima para idosos, nos moldes que comentei no meu texto anterior, pode ser a solução possível, do ponto de vista fiscal e político, para o atual desequilíbrio da previdência rural. A maior parte desse desequilíbrio decorre de previdência rural funcionar mais como assistência social do que como previdência propriamente dita, uma vez que hoje a maioria dos trabalhadores têm acesso ao benefício sem comprovar contribuição efetiva.
A solução para a previdência rural é separar o que é assistência do que é previdência, sem diminuir a assistência necessária para trabalhadores de renda mais baixa, em igualdade de condições nas cidades e no campo.
Por fim, a última proposta do governo era altamente meritória, pois cobrar contribuição previdenciária sobre o faturamento das exportações é justificável. No caso de empreendimentos rurais organizados sob regime de “tributação do lucro real”, a contribuição previdenciária já incide sobre a folha de pagamento e entra no custo de produção das exportações.
Porém, no caso de empreendimentos rurais organizados como pessoas físicas, cooperativas ou produtores autônomos, não há contribuição sobre a folha, em troca do pagamento simplificado de 2,6% sobre o faturamento (FUNRURAL). Esse pagamento vale para vendas internas, mas não para vendas externas, o que é um equívoco diante da destinação de grande parte de nossa produção in natura para o exterior.
O governo estava certo na sua proposta de contribuição previdenciária sobre as exportações pois, nesse caso, a alíquota é simplesmente o substituto de uma contribuição previdenciária sobre a folha. Infelizmente a Câmara, ainda na fase da Comissão Especial, tirou tal medida da PEC 06/19, por força do lobby ruralista no Congresso.
Juntando os pontos acima, a reforma da previdência rural ainda é necessária e se tornará cada vez mais necessária à medida em que as diferenças de critérios entre campo e cidade empurrarem mais e mais trabalhadores para a previdência rural sem comprovação adequada e exercício de atividade rural.
A proposta radical do governo, focada mais nas mulheres e sem regras de transição adequadas, acabou impedindo a discussão mais detalhada do tema, bem como permitiu que os interesses ruralistas derrubassem a necessária contribuição patronal sobre a receita de exportações. Apesar dessa decisão o problema continua e requererá uma proposta específica de reforma no futuro bem próximo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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