Macroeconomia

Analisando a reforma da Previdência: Desconstitucionalização

25 abr 2019

A proposta do governo Bolsonaro para reformar a Previdência inclui a desconstitucionalização de vários assuntos, remetendo a decisão do governo (Executivo e Legislativo) para leis específicas. Essa mudança gerou grande debate, pois alguns temas são considerados cláusulas pétreas da Constituição de 1988 e, portanto, só poderiam ser modificados via nova assembleia constituinte, não por proposta de emenda constitucional (PEC).

O assunto envolve interpretação de direito constitucional, área em que não sou especialista, mas, mesmo assim, darei minha opinião como economista. Afinal, dado que juízes decidem temas eminentemente econômicos no dia-a-dia dos tribunais, creio que posso contribuir com o debate da reforma da Previdência explicando como um economista diferencia “direito básico” ou “cláusula pétrea” de “questão paramétrica”.

No final das contas, constitucionalizar ou não um assunto é questão política, de juízo de valor. Trata-se de matéria subjetiva, em que outros colegas economistas provavelmente discordarão do que colocarei abaixo, isto sem falar dos advogados, mas o debate é para isso.

Comecemos pelo que está na PEC 06-19. A proposta do governo tira várias coisas da Constituição. Por exemplo, a nova redação proposta para os artigos 40 e 201 estabelece que Lei Complementar, de iniciativa do poder Executivo, estabelecerá os parâmetros do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores (RPPS). Esses parâmetros incluem:

  • idade de aposentadoria
  • tempo e valor de contribuição para a Previdência
  • cálculo do valor dos benefícios por aposentadoria
  • idem para pensões por morte e invalidez
  • regras para equacionar desequilíbrios atuariais e outros temas.

Do meu ponto de vista de economista, o governo está certo nessa iniciativa, pois a Constituição deve tratar eminentemente de princípios gerais, enquanto as leis devem aplicar estes princípios com números e regras de cálculo. Em outras palavras, a Constituição deve fixar o direito à Previdência Social em sistema de repartição (voltarei a isto em outro texto), cabendo às leis dizer qual é a idade mínima, o tempo mínimo de contribuição, o valor do benefício e sua relação com o tempo de contribuição, a regra de concessão de pensões por morte, a possibilidade ou não de acumular pensões e assim em diante. São esses assuntos que nós economistas consideramos “paramétricos” e vários deles já são objeto de lei quando se trata do RGPS.

Por exemplo, o fator previdenciário e a regra 86-96 para cálculo do valor da aposentadoria por tempo de serviço no RGPS já são matéria de lei, não da Constituição. O mesmo vale para o tempo mínimo de contribuição para aposentadoria por idade e para acesso à pensão por morte, também no RGPS. Somente no caso do RPPS, dos servidores públicos, é que esses critérios estão na Constituição, o que deve acabar.

Um dos principais pontos positivos da proposta do governo é alinhar as regras de aposentadoria entre RGPS e RPPS (deixarei o tema espinhoso de militares e policiais para outros textos). Para que isso seja possível, é preciso desconstitucionalizar várias regras ou “privilégios adquiridos” que só valem para servidores.

Na maioria dos países desenvolvidos, a Previdência é um direito garantido pela Constituição, mas os critérios são fixados por lei. O mesmo deve ser seguido no Brasil, sobretudo na questão da idade mínima, tempo de contribuição e valor do benefício. No caso dos servidores, o governo também acertou ao prever que haverá lei complementar para definir como resolver o desequilíbrio atuarial dos regimes próprios de Previdência, o que é um grande problema no nível estadual e municipal.

Em algum momento será necessário reavaliar contribuições e benefícios de regimes próprios de Previdência dos Estados e municípios (talvez até da União). Como cada caso é um caso, é melhor deixar que esse assunto seja objeto de lei específica, por iniciativa do poder Executivo competente, aprovada pelo poder Legislativo do ente federativo em questão.

Resumindo os pontos acima, a proposta do governo está correta em desconstitucionalizar questões paramétricas de Previdência social, mantendo o direito à Previdência Social (repartição) na Constituição, mas remetendo critérios de cálculo para leis específicas. Porém, como toda proposta genérica, o diabo está nos detalhes. Vejamos os principais.

A proposta do governo desconstitucionaliza algumas coisas, mas constitucionaliza outras. Por exemplo, há caso de constitucionalização indevida, quando a PEC 06-19 diz que o Estado deverá criar regime de capitalização como substituto ao atual regime de repartição, sem garantir que as empresas contribuirão para tal sistema de contas individuais.

Tenho repetido e digo novamente: Previdência Social é regime de repartição, no qual uma geração sustenta a outra. Capitalização é regime de previdência individual, logo ela não deveria ser objeto de emenda constitucional como proposto pelo governo. Voltarei a esse tema longamente em outro texto. Agora, apenas ressalto que definir capitalização como substituto de repartição na Constituição é um erro, portanto, este ponto deve ser eliminado da proposta do governo.

Na definição das regras paramétricas, o governo também incluiu os critérios de reajuste dos benefícios concedidos, o que pode ser um risco. Mais especificamente, a Constituição federal já determina que o benefício mínimo deve ser igual a um salário mínimo, e que o salário mínimo deve ser corrigido pelo menos pela inflação passada. Aumentos reais do salário mínimo são objeto de lei, como evidencia o ruído criado pelo recente anúncio de aumento real zero para 2020.

Não sei se correção mínima pela inflação é cláusula pétrea da Constituição, mas o bom senso recomenda que a Constituição garanta que, uma vez concedidos, todos benefícios previdenciários sejam corrigidos de acordo com a inflação, deixando aumentos reais para lei específica. Do jeito que está o texto do governo, é possível que, em um futuro não muito distante, somente o piso da Previdência seja reajustado pela inflação, deixando os demais benefícios congelados em termos nominais. Nem nos EUA se faz isso. Desde os anos 1980, por iniciativa do então Presidente Ronald Reagan (não exatamente um bolivariano), os benefícios previdenciários de lá são corrigidos pelo menos pela inflação. Sugiro seguir o mesmo princípio aqui, só que na Constituição, como já acontece para o salário mínimo.

Passando a outro tema, eminentemente jurídico, a PEC do governo também revoga a idade de aposentadoria compulsória no serviço público, hoje em 75 anos. Do ponto de vista lógico, a medida até pode ser defendida, uma vez que idade mínima, tempo de contribuição e outros fatores paramétricos serão objeto de lei específica. Porém, do ponto de vista político, essa iniciativa pode significar um golpe constitucional, caso o governo Bolsonaro reduza a idade de aposentadoria compulsória para “abrir” mais vagas no Supremo Tribunal Federal.

Não é segredo que a elevação da idade de aposentadoria compulsória, de 70 para 75 anos – a “PEC da Bengala” de maio de 2015 – foi manobra da oposição para evitar que o então governo Dilma Rousseff nomeasse mais um membro do STF. Agora, caso a PEC do governo seja aprovada como está, nada impede que o governo Bolsonaro volte com a aposentadoria compulsória aos 70 anos via simples projeto de lei. Caso adotada, essa eventual redução da idade de aposentadoria compulsória irá na contramão de todo o resto da reforma previdenciária, uma vez que os objetivos das mudanças são aumentar a idade de aposentadoria, o tempo e o valor das contribuições, por parte de servidores e de trabalhadores do setor privado.

E para terminar com dois pontos positivos para o governo, ressalto que concordo com a constitucionalização dos critérios de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a proibição de criação de benefício previdenciário ou assistencial por decisão judicial.

Em relação ao BPC, hoje a definição de “condição de miserabilidade” é tema de lei, com várias decisões judiciais sobre o assunto. A proposta do governo coloca o assunto na Constituição, de modo a unificar o entendimento do assunto e aperfeiçoar o programa. Falarei dos aspectos econômicos da reforma do BPC em um texto específico. Por enquanto apenas ressalto que o governo está certo em remeter a definição de “condição de miserabilidade” para a Constituição diante da grande incerteza jurídica sobre este assunto.

Já no caso de decisões judiciais sobre Previdência e assistência social, o poder judiciário também tem criado, concedido ou ampliado benefícios sem explicitar fonte de recurso para tanto. Como trata-se de programa federal, o ideal é que todas decisões relacionadas ao tema sejam centralizadas em apenas uma instância judicial (se o STJ ou STF, os juristas sabem melhor), com a cláusula explícita de que:

“Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido por ato administrativo, lei ou decisão judicial, sem a correspondente fonte de custeio total.”

O texto acima é exatamente o que o governo propõe para o parágrafo 5 do artigo 195 da Constituição. Me parece medida razoável. O governo está certo. O lugar para discutir criação, aumento e extensão de benefício social é o Congresso, não os tribunais.

Resumindo todos os pontos acima, apesar de não ser especialista em Direito Constitucional, arrisco que:

  1. O governo está certo em desconstitucionalizar “questões paramétricas”, como a definição de idade mínima de aposentadoria, tempo de contribuição, definição do valor do benefício, aumento real do benefício, regras de concessão de pensão por morte e temas similares.
  2. Mas no caso da correção pela inflação, o governo está errado ao permitir que benefícios acima de um salário mínimo possam ser corrigidos por menos do que a inflação. Neste caso, seria melhor seguir o que já funciona no caso do salário mínimo: correção monetária garantida pela Constituição, aumento real só por lei específica.
  3. O governo também está certo em dizer que lei específica definirá como tratar de desequilíbrios atuariais em regimes próprios de previdência de servidores públicos. Isso já acontece com regimes fechados de previdência complementar de estatais e grandes empresas privadas, sob regulação da PREVIC.
  4. Mas o governo está errado ao remeter a mudança da idade de aposentadoria compulsória no serviço público para lei específica. A “PEC da Bengala” já fixou essa idade em 75 anos e a lógica da reforma da Previdência é aumentar a idade mínima e o tempo de contribuição no RGPS e RPPS. Assim, é melhor manter a aposentadoria compulsória em 75 anos, ou então dizer, nas disposições transitórias da PEC 06-19, que a idade de aposentadoria compulsória não poderá ser alterada até 2026.
  5. Já na questão do BPC, o governo acertou em constitucionalizar a definição de “condição de miserabilidade”, pois assim será possível unificar o entendimento jurídico sobre o tema e reduzir a judicialização crescente na concessão deste tipo de benefício.
  6. E o governo também acertou em propor a centralização de decisões judiciais sobre temas previdenciários e assistenciais, vedando a criação, aumento ou expansão de benefícios por decisão judicial. Cabe aos poderes eleitos pelo povo – Executivo e Legislativo – definir os critérios dos programas federais. Cabe ao Judiciário cumprir a lei.
  7. Por fim o governo errou feio ao propor que o regime de capitalização (contas individuais) deve substituir totalmente o regime de repartição (solidariedade entre gerações) no futuro próximo. Essa decisão está errada em tantos níveis que dedicarei um texto específico a este item da reforma mais à frente. Por enquanto só registro que, do jeito que está a redação do tema na PEC 06-09, sugiro fortemente retirar a capitalização da proposta do governo.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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