Aperfeiçoamentos regulatórios e de supervisão do Bacen

Mudanças que foram muito positivas para a competição financeira, para a padronização internacional da solidez das instituições e que mudaram “a cara” do setor financeiro no Brasil precisam de um freio de arrumação. É hora de o Bacen corrigir os rumos.
Desde 2013 tem havido muitas modificações que alteraram sobremaneira a forma de regular e supervisionar o sistema financeiro. A primeira grande mudança deu-se com a implantação do acordo de Basileia III, em que o patrimônio de referência para o cálculo da suficiência de capital passou a ser determinado pelo conglomerado prudencial. Isto alinhava as práticas internas às internacionais, evitando alguma desvantagem regulatória para nacionais. Ocorre que, anteriormente, havia outras formas de calcular o patrimônio de referência, mas a principal era o conglomerado financeiro, CONEF. Em sua essência, o CONEF fazia com que, para fins prudenciais, qualquer empresa controlada por um banco teria que ser integralmente consolidada como se fosse uma instituição financeira. Aliado a isso, qualquer participação acionária não controladora era tratada como se fosse um ativo permanente, portanto sem liquidez. Por fim, os fundos eram sempre tratados pela composição de seus ativos. Por exemplo, um fundo com 50% em ações e 50% em títulos públicos líquidos era tratado como 50% liquidez e 50% ativo permanente. O CONEF é mais complexo que isso, mas essa era a essência de sua natureza. Em suma, era uma regra que privilegiava a liquidez da instituição financeira. Ao se adotar a regra de Basileia III, optou-se por seguir o padrão internacional e usar o conglomerado prudencial, que é menos restrito. Poder-se-ia ter feito o mais restritivo dos dois cálculos, com o conglomerado prudencial e com o CONEF, mas não foi o que aconteceu. Ao longo do tempo, isto levou a ativos de liquidez cada vez mais incerta serem considerados como equivalentes a ativos líquidos. Por exemplo, fundos pouco líquidos. O burburinho em torno da venda do Banco Master para o BRB, que acabou por levar a uma reunião no sábado passado entre o presidente do Bacen e os presidentes ou representantes dos 4 maiores bancos privados, pode ser explicado em parte por estas mudanças que foram acontecendo gradualmente, ao se deixarem de lado as regras severas do CONEF. Especificamente no caso em questão, também ficou claro que a regulação do FGC tem que ser revista, e possivelmente levar em consideração um máximo de proteção efetivo, que varie com o risco da instituição financeira. É claro que isto implica uma mudança importante do modus operandi do FGC, mas é hora de encarar o problema de frente.
A segunda grande revolução veio com as IP’s e SCD’s, e outras “fintechs” que começaram com um arcabouço regulatório em que o princípio de KYC (conheça seu cliente), essencial para a PLD (Prevenção à lavagem de dinheiro), era menos rigoroso que as regras bancárias tradicionais existentes. Isto pode ser plenamente justificado para fomentar ideias novas de competição, como nos “sandboxes”. Na esteira do sucesso da introdução destas entidades e do grande aumento da competição financeira, muita inventividade foi sendo posta em prática. Foi-se criando uma cadeia de empresas que provêem partes dos serviços outrora fornecidos pelos bancos tradicionais. Alguns exemplos são os serviços de BaaS (banking as a service), as fintechs que são subcredenciadoras (muitas vezes, não reguladas pelo Bacen), as “exchanges” de criptomoedas, empresas que prestam serviços totalmente acessórios ao setor financeiro, oferecendo contas “ônibus” (contas em que diversas subcontas recebem ou pagam e apenas a conta ônibus registra o saldo), e outras instituições não reguladas pela autoridade monetária que usam a palavra “banco”, “bank”, “banc”, “banca” ou afins no nome. Por sinal, este último caso é muitíssimo preocupante e causa uma enorme confusão no público. Alguns problemas são simples de serem identificados: será que o processo de aquisição remota de clientes de todas as instituições está robusto do ponto de vista de verificações de fraude e KYC? Também é óbvio que o pix tem que ter o mesmo tratamento para efeito do COAF que qualquer transação financeira de saque e depósito em conta corrente. A solução óbvia (e custosa, mas inevitável) é que o Bacen tenha a supervisão de todas as etapas da cadeia. Uma observação: uma corrente arrebenta sempre no elo mais fraco. Desta maneira, introduzir algo que dificulte a PLD em uma transação que foi dividida em minisserviços que formam uma cadeia, é sempre mais fácil pelo elo fraco da cadeia. Dessa maneira, o Bacen tem que impor a todos os elos da cadeia de serviços financeiros o mesmo padrão tradicional de KYC e PLD.
Um terceiro aspecto também se dá na regulação prudencial das “fintechs”. Aqui, é interessante observar que as SCD’s, SEP’s e outras usam capital próprio, não podendo emitir passivos financeiros como depósitos. Então, como elas conseguem ter escala? A resposta é através de securitizações de seus ativos em FIDC’s. O problema é que, mesmo que estas entidades estejam sob a regulação do Bacen, essencialmente a supervisão dá-se pela verificação da qualidade do crédito gerado e cedido pelas instituições. No entanto, o passivo não é fiscalizado pelo Bacen e sim pela CVM, pois se tratam de FIDC’s. Este descompasso entre supervisão do ativo e do passivo por diferentes reguladores não permite ao Bacen uma visão consolidada da entidade.
Estes três pontos mostram que mudanças que foram muito positivas para a competição financeira, para a padronização internacional da solidez das instituições e que mudaram “a cara” do setor financeiro no Brasil precisam de um freio de arrumação. É hora de o Bacen corrigir os rumos. Para isso, é inevitável ter que intensificar o controle das instituições que fazem parte da nova cadeia de serviços e trazê-las efetivamente para seu âmbito regulatório, caso já não estejam. É hora de rever o conceito do CONEF e de como ele pode ser aplicado adicionalmente à Basileia III. Temos que fortalecer as políticas do FGC. E o COAF.
Por fim, como esta tarefa de rever cuidadosamente várias normas e regulamentos prudenciais e de PLD requer muita atenção do Bacen, eu sugiro que a Diretoria de Normas fique responsável somente pelas práticas de PLD e prudenciais (que são a essência do controle de risco). As normas que dizem respeito às inovações e ao fomento da competição no sistema financeiro devem estar em outra diretoria. É hora de foco absolutamente total nesta atividade de rever as normas prudenciais e de PLD.
É muito importante observar que o Bacen (e também o COAF) precisará de recursos orçamentários e humanos para tal tarefa. Gastar recursos públicos com o Banco Central pode não ser uma medida que traga a curto prazo a percepção de satisfação dos eleitores. Mas é essencial para a solidez do sistema financeiro e para o combate às fraudes e às atividades criminais que se utilizam de mecanismos legalmente estabelecidos para a lavagem de dinheiro.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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