Fiscal

Apostas e loterias: arrecadação e concorrência na mesma direção

2 mai 2023

Governo tem anunciado receitas recorrentes adicionais de loterias, de até R$ 15 bilhões. Porém, estimamos arrecadação de cerca de R$ 5 bilhões, que pode ficar ainda menor se houver exclusividade na distribuição da raspadinha.

Servidores do Ministério da Fazenda (MF), na audiência pública de regulamentação de apostas esportivas na Câmara Federal e em entrevista à GloboNews, têm anunciado receitas recorrentes adicionais oriundas da regulamentação de modalidades específicas de apostas e loterias, que podem vir a ser preciosas para a sustentabilidade fiscal do governo.

As medidas tratam de duas fontes: regulamentação das apostas esportivas e licitação da Loteria Instantânea Exclusiva (Lotex), a raspadinha. Nessas duas fontes, o governo tem falado de potencial de até R$ 15 bilhões em arrecadação, conforme matérias que circularam nos sites do UOL e da CNN neste último final de semana.

Porém, as contas mostram um valor potencial bem menor, de cerca de R$ 5 bilhões, que pode ficar ainda menor se houver exclusividade na distribuição da raspadinha aos portadores de necessidades especiais.

Inicialmente, mencione-se que a forma mais efetiva de o governo angariar impostos das apostas esportivas seria regulamentar por Decreto a lei aprovada em 2018 e reformada em 2021, já se adequando ao padrão da Inglaterra, que parece ser o desejado. De fato, as punições e outras adequações que o governo quer realizar por Medida Provisória (MP) poderiam ser feitas, de forma mais simples e rápida, por Decreto e por meio  dos contratos de concessão realizados com as empresas.

Nas minhas contas, não haverá qualquer ganho arrecadatório em aprovar a MP nos moldes apresentados na audiência na Câmara. Se regulamentar a lei atual por Decreto, o governo deve arrecadar cerca de R$ 1,5 bilhão por ano, valor equivalente ao que arrecadará se aprovar a MP nos moldes propostos na audiência pública.

Notícias deste final de semana, circuladas em sites jornalísticos,  indicam que a taxação pretendida será ainda maior que a proposta naquela audiência. O custo dessa pretensão é o usual: migração de pelo menos parte dessa atividade para o mercado informal, o que pode reduzir a própria arrecadação (parte da chamada curva de Laffer) e todos os benefícios sociais associados com a formalização do negócio. Veríamos uma indevida conversão, pelo menos parcial, dessa atividade em novas modalidades de “jogo do bicho”, com todas as consequências conhecidas de “gangsterização” desnecessária do negócio.

Reestruturar o que já está pronto para regulamentar trata-se de dor de cabeça adicional, para pouco ou nenhum ganho em termos de boas práticas regulatórias e de arrecadação.

Por outro lado, no caso da modalidade de loteria instantânea, cabe mencionar que há potencial arrecadatório maior para o governo, na ordem de pelo menos R$ 3 bilhões anuais. Porém, a exclusividade defendida na audiência e circulada em sites, neste final de semana, certamente diminuirá esse potencial de ganhos de receita.

Ao querer dar exclusividade na distribuição da raspadinha a pessoas com deficiência, utilizando como exemplo a Espanha, que serviu de modelo na audiência, há ao menos dois fatos que sugerem impactos negativos seja na arrecadação, seja no bom funcionamento do mercado.

Primeiro, em relação ao provável prejuízo à arrecadação, vale destacar que a ONCE – operadora de loterias espanhola – vende menos da metade do que se vende em Portugal. Contudo, a população na Espanha é de 40 milhões – cerca de quatro vezes a população de Portugal. Ou seja, a receita per capita na Espanha é 1/8 da de Portugal, o que está fortemente relacionado com o diferencial de eficiência do serviço entre os dois países.  

Segundo, no que diz respeito a prejudicar o bom funcionamento do mercado, isso é particularmente ruim em uma linha de negócio que está apenas iniciando (ou reiniciando, como é o caso da raspadinha).

O movimento inicial de pessoas físicas e jurídicas em qualquer atividade econômica é de teste de como formatar a condução do negócio, o que inclui o seu marketing, a contratação de pessoal, dentre outros. A concorrência de vários tipos de modelos de negócio concebidos por pessoas físicas ou jurídicas que o governo ainda não sabe quem são permitirá que se sobressaiam os modelos de negócio mais bem sucedidos.

A propósito, é isto que está na base da visão de que a livre concorrência, sem exclusividades de qualquer tipo, induzirá ao surgimento de um serviço mais maduro no longo prazo, que é o que melhor atende aos consumidores e à sociedade. Restringir o conjunto de pessoas que serão capazes de iniciar esse tipo de negócio destrói esse processo de seleção que a concorrência permite.

É por isso que os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, constantes da ordem econômica da Constituição Federal, são tão complementares entre si.

Neste momento, alguém que leu até aqui pode estar pensando que a loteria na Espanha é um bom exemplo humanitário, de atenção às causas sociais, e que o autor deste texto é uma pessoa sem sensibilidade social. Nesse sentido, cabe destacar que não há qualquer exemplo humanitário nessa ação, há desinformação. O formato da ONCE é um exemplo do que não se deve fazer, é uma “jabuticaba” que o MF parece querer importar para o Brasil.

A propósito, a experiência das velhas corporações de ofício da idade média e do ‘capitalismo de laços’ na experiência brasileira e de outros países têm como traço comum o constrangimento à liberdade de iniciativa para a grande massa da população, a maioria formada por pessoas pobres.

Além desse impacto de exclusão socialmente negativo, a sociedade abre mão de contar com a imensa capacidade de tocar negócios por parte de muitos que estão nessa massa marginalizada, que poderiam contribuir em muito com a eficiência,  desenvolvimento e crescimento do setor. Essa capacidade empreendedora de várias pessoas nas classes mais baixas de renda  fica artificialmente bloqueada pelo Estado, uma curiosa política de perenização ou eternização da pobreza.

Tenho dificuldade também em entender como é possível a Secretaria de Reformas, que tem como competência legal a defesa da concorrência e a obrigação de propor medidas de estímulo à eficiência, à inovação e à competividade, defender, conforme o artigo 56, inciso II do Decreto presidencial nº 11.344, de 1º de janeiro de 2023, exclusividade na distribuição de um produto ou serviço.  E isso sem qualquer justificativa econômica e sem esclarecer por que outros instrumentos não excludentes de promoção das pessoas com deficiência nos negócios, como crédito favorecido ou treinamento para as necessidades específicas de cada um, não seriam alternativas melhores para o objetivo pretendido.

Em lugar de apoiar restringindo, há muito mais retorno para a sociedade e, principalmente, para as próprias pessoas com deficiência, em apoiá-las da forma mais inclusiva possível. Sem encaminhar a priori para este ou aquele segmento.

As capacidades empresariais das pessoas com deficiências devem ser desenvolvidas para que elas próprias decidam quais negócios apresentam maior capacidade de terem sucesso e as fazerem felizes. Assim como em várias outras decisões da vida, especialmente profissional, o Estado está em posição claramente inferior para efetivar essa ação. Impor às pessoas com deficiência o negócio que o Estado entende que é o melhor atenta contra a sua liberdade de escolha em uma das decisões mais caras a todos nós: a escolha do seu ofício que pode ser para uma vida toda.

Logo, defender exclusividade do tipo descrito é a antítese da missão principal da secretaria e do MF.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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