Atual arcabouço institucional já permite pauta relevante de segurança pública para governo federal
Segurança pública já é principal preocupação do eleitorado, e ministro Lewandowski prepara PEC para respaldar atuação federal na área. Mas economista Joana Monteiro aponta ampla pauta de melhoras a ser tocada a curto prazo.
A segurança pública se tornou uma das principais preocupações do eleitorado brasileiro ao longo dos últimos dez anos. Pesquisa do Atlas-Brasil de maio de 2024 mostra que 59,2% dos brasileiros apontam a segurança como um dos grandes problemas nacionais, sendo o item mais citado, com quase o triplo de menções de ‘economia e inflação’, com 20,8%. A preocupação se intensificou recentemente, durante o terceiro mandato do presidente Lula, subindo de 47% em janeiro de 2023 para os mencionados 59% em maio de 2024.
A atuação do governo federal na segurança é mal avaliada pelos brasileiros. Em maio de 2024, segundo a pesquisa Atlas, 53% consideravam o desempenho do governo federal como ruim e péssimo, a pior avaliação entre seis áreas, como meio ambiente, relações internacionais e responsabilidade fiscal e controle de gastos. Já de acordo com pesquisa do IPEC de abril de 2024, 42% consideravam a atuação do governo do presidente Lula na segurança pública como ruim e péssima, número que sobe para 70% quando se inclui os que a apontam como regular.
Dessa forma, o tema da segurança está mais forte do que nunca na mídia e entre os formadores de opinião, e naturalmente também na política, sendo apontado como questão crucial na arena eleitoral, e com destaque para a disputa para a presidência e os governos estaduais em 2026. Assim, é de esperar que o governo federal intensifique suas ações no setor de segurança, e a grande questão é saber o que fazer. Esta Carta buscará trazer dar algumas pistas sobre essa indagação, mas antes é preciso entender do que efetivamente se trata quando o assunto é a segurança pública no Brasil.
Os grandes problemas de segurança no Brasil são muito variados, e pedem enfoques e soluções diferenciados. Alguns dos temas mais importantes são os assassinatos, roubos (pedestres, veículos, cargas, residências etc.), extorsão, violência policial, violência de gênero e racismo.
É importante também, na questão do crime, distinguir o que de fato ocorre e a percepção de risco das pessoas. Levantamento do Suplemento da PNAD Contínua do 4º trimestre indica que os brasileiros têm uma sensação de vulnerabilidade extremamente aguda em relação a diversos tipos de crime. Quando os respondentes são perguntados qual a chance de serem vítimas de crime, 43% apontam como alta ou média no caso de assalto com violência na rua, 37% no de roubo ou furto de domicílio, 24% no de ser atingido por bala perdida, 20% no de agressão sexual e 17% no de violência policial.
Outra distinção importante é entre o crime comum e o crime organizado. No caso deste segundo, o Brasil e a América Latina enfrentam um problema crônico de presença de grupos criminais armados, que muitas vezes disputam com o Estado o monopólio da força em vários territórios, como o tráfico e as milícias no Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil. Muitos desses grupos criminosos violentos cresceram se especializando no tráfico de drogas ilícitas, mas diversificaram suas atividades não só para outros negócios ilegais, como roubos de carga e exploração de jogos de azar, como também para setores econômicos legais, como TV e Internet, transporte, negócios imobiliários, eletricidade, água e gás.
Nesse contexto, o governo Lula tenta responder à angústia da sociedade em relação ao crime e a violência com algumas iniciativas. A ideia é aumentar a presença do governo central no tema, que tradicionalmente é visto – com exceção da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal – como tarefa dos Estados. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, prepara uma proposta de emenda constitucional (PEC) que considera necessária para dar sólida base legal à ampliação da presença federal na segurança, sem ferir o pacto federativo.
Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, considera que a PEC proposta é necessária porque forçará – até por razões políticas – o governo federal a efetivamente entrar na área. Essa participação é algo de que diferentes governos federais tradicionalmente se esquivaram, preferindo deixar o problema espinhoso com os Estados, a quem o eleitorado tende a atribuir a responsabilidade pela segurança. Porém, como mostra o início desta Carta, essa postura está mudando e a sociedade crescentemente olha para Brasília na busca de soluções efetivas.
Uma visão compartilhada por muitos sobre a segurança pública no Brasil é que a presença do governo federal na área deveria evoluir como ocorreu no caso da educação e da saúde, em que o papel de Brasília é de coordenação, consolidação de sistemas de dados, gestão de informação e complementação do financiamento (com viés de equalização entre Estados e municípios, como no caso do Fundeb).
Na verdade, como observa Carolina Resende, pesquisadora do IBRE, desde 2018 já existe o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), que tem como grande inspiração o Sistema Único de Saúde (SUS), que criou os alicerces para a provisão de saúde pública no Brasil. O problema, porém, como acrescenta a economista Joana Monteiro, professora da FGV EBAPE – Monteiro e Resende, assim como Pires, participaram das discussões que deram base a esta Carta – é que, na prática, muito pouco foi feito para estruturar a governança da segurança pública no Brasil. É possível, nota Pires, que o SUSP, como foi o caso do SUS e do Fundeb, com o passar do tempo seja reforçado por novas mudanças legais e constitucionais, e ganhe mais musculatura. É o caso em que o financiamento aumenta porque a instituição aprimora seu funcionamento e vice-versa, num círculo virtuoso.
Monteiro, por outro lado, teme que o difícil trâmite da PEC de Lewandowski mobilize as atenções do governo federal e desvie o foco de toda uma agenda de iniciativas de aprimoramento da segurança pública que pode ser realizada dentro do atual arcabouço institucional.
Em relação ao crime organizado, a especialista nota que a abordagem dominante no Brasil é de que o enfrentamento aos grupos criminosos é uma “guerra às drogas”. É um enfoque que aposta no uso de força militar, e que tem eficácia muito baixa para reduzir o problema do combate ao crime organizado, acabando por gerar mais violência.
Para Monteiro, o controle do crime organizado requer esforço de longo prazo de investigação e não tem fim, nem vencedor – especialmente considerando que esses grupos criminosos se diversificaram muito e não dependem apenas do tráfico internacional de drogas. A pesquisadora diz que é preciso reduzir a capacidade de coerção e o poder militar dos grupos criminosos, cortar o suporte político ao crime organizado e coibir a “governança criminal” – a imposição de regras de conduta, por parte da cúpula do crime organizado, à população dos territórios controlados e a outros criminosos.
Essa agenda envolve não só as polícias, mas diferentes órgãos públicos para diferentes tarefas. Segundo Monteiro, “existem vários problemas, e a gente quer resolver todos com a mesma fórmula, que é a polícia militar ostensiva praticando elevados níveis de força”. Ela aponta que, assim como na saúde se discutem doenças de forma separada, o mesmo deve ocorrer com as diversas modalidades de crime. E, na opinião da pesquisadora, o governo federal deve liderar esse debate, especialmente no tema do crime organizado, cujo combate já lhe cabe no atual arcabouço institucional por diversas razões, incluindo o caráter transnacional desse tipo de atividade criminosa.
Uma sugestão dos pesquisadores do IBRE que participaram da discussão que deu base a esta Carta é a de que o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSS), alimentado por uma fração da arrecadação das loterias federais, seja usado para estimular políticas públicas inovadoras nesse segmento. Com recursos de cerca de R$ 5 bilhões, o FNSS não faz quase nenhuma diferença em nível nacional quando seu emprego é, como vem ocorrendo, para a aquisição de coletes à prova de bala, armas, munições e veículos. Pires cita como exemplo de usos mais úteis estimular a adoção de câmeras nos uniformes policiais, enquanto Monteiro menciona um projeto em Nova York que aloca recursos para boas propostas de reduzir a violência armada, venham do setor público ou do terceiro setor (ONGs).
Recente documento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública faz abrangente e densa análise do crime no Brasil, concluindo com oito recomendações, das quais Monteiro destaca três: 1) ampliar e fortalecer o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf); 2) aprovar no Congresso o projeto de Lei Geral de Segurança de Dados de Interesse da Segurança Pública, com o objetivo de organizar e regular a produção, gestão e compartilhamento de dados e evitar a insegurança jurídica que afete investigações criminais; e 3) promover mudanças constitucionais e legais para racionalizar as bases de dados de segurança das unidades da Federação, para melhorar a qualidade das informações, comparar implementação de políticas nas diferentes UFs e repassar verbas segundo critérios objetivos.
Essas propostas vão ao encontro da visão de Monteiro de que a segurança pública no Brasil é totalmente desmembrada, e sofre de fortíssima desarticulação e descoordenação de dados e sistemas de informação.
A pesquisadora aponta que o principal exemplo no mundo hoje de uso de dados no combate ao crime é o policiamento em “pontos quentes”, mapeados a partir de dados georreferenciados da sua ocorrência. A literatura acadêmica sobre crime confirma a eficácia do policiamento baseado na georreferenciação do crime (especialmente os crimes comuns, de rua, que demandam abordagem distinta daquela a ser empregada contra o crime organizado), incluindo um estudo da própria pesquisadora conduzido em Curitiba. No entanto, os mapas de pontos quentes no Brasil hoje são segmentados, sem nenhum órgão para reunir e organizar esses dados e abri-los a agentes da lei, ao Judiciário e aos Ministérios Públicos de todo o país.
Prefeituras, que têm o papel de atuar no design urbano – isto é, tornar o espaço das cidades mais seguro com intervenções urbanísticas, muitas vezes pequenas – frequentemente não têm acesso aos dados georreferenciados dos crimes, que não são compartilhados pelos governos estaduais, que comandam as polícias. A pesquisadora nota que ações simples e baratas, como iluminar espaços urbanos com alta incidência de crimes (como alguns pontos de ônibus), ficam inviabilizadas pelos “silos de dados”. O problema de não compartilhamento de dados é generalizado, com casos de promotores sem acesso aos mapas que indicam o controle de territórios por milícias e traficantes.
Mas a dificuldade não se resume a autoridades que não compartilham dados. Há também a questão da falta de padronização das informações entre as 27 unidades da Federação, como definições diferentes de homicídio ou categorização distinta de roubos, o que é um entrave a estatísticas nacionais completas e abrangentes sobre crime no Brasil.
“Não temos, por exemplo, uma estatística nacional de roubos no Brasil. O Ministério da Justiça só divulga alguns tipos de roubos, como roubo a veículos e de instituições financeiras, sem mensurar roubos a pedestre que representam o grande volume de casos” diz Monteiro. Ela acrescenta que, como pesquisadora, não tem como comparar os municípios do Brasil, para saber onde há mais e onde há menos crimes contra a propriedade.
A economista acrescenta que o Brasil não tem um cadastro nacional de identidade. Se alguém for preso em um Estado onde não nasceu, é preciso que a polícia entre em contato com o Estado de nascimento para pedir a identificação e saber se a pessoa em questão tem ficha criminal. Os dados de ficha criminal não são integrados em termos nacionais.
Finalmente, Monteiro aponta que toda investigação é um processo de cruzamento de informações, que pode envolver transações financeiras, denúncias sobre a presença de determinada pessoa em determinado lugar, informações sobre celulares e outros equipamentos informáticos etc. Com os “silos de dados”, falta de padronização e toda sorte de dificuldade burocrática para acessar informações cruciais, o trabalho da polícia e dos promotores é muito dificultado. E o cruzamento de informações pode ser útil para além do caráter investigativo, como no caso da busca ativa de crianças e adolescentes vulneráveis ao ingresso no crime a partir de dados sobre quem está fora da escola e quem está envolvido com a violência, por exemplo.
Segundo a pesquisadora, “quem hoje manda na segurança pública no Brasil não foi apresentado a essas ideias”. A razão é que a formação desses quadros são basicamente as academias de polícia, com uma visão muito limitada e pouco criativa da questão da segurança de um ponto de vista mais abrangente.
Dessa forma, há uma ampla avenida em termos de integrar e modernizar o sistema de segurança pública no Brasil, o que obviamente se constitui em uma pauta a ser abraçada pelo governo federal. Se o governo julga que a PEC de segurança pública é importante para viabilizar sua presença de forma mais robusta no combate ao crime, seria bom que se conscientizasse também de que há uma série de ações que podem ser tomadas de forma imediata ou a curto prazo, sem que seja preciso esperar o trâmite politicamente custoso e possivelmente longo de aprovação de uma emenda constitucional.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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