Macroeconomia

Aumenta o risco fiscal

3 nov 2020

Apesar de vários indicadores de atividade econômica apontarem para uma recuperação relativamente rápida da indústria de transformação e do comércio, a elevação do risco fiscal nas últimas semanas pode inviabilizar uma retomada sustentada da economia brasileira no ano que vem.

A dívida bruta encerrou o mês de agosto em 88,8% do PIB, o que representa uma elevação de 13 pontos percentuais em relação a dezembro de 2019. Segundo o relatório da Instituição Fiscal Independente (IFI) divulgado semana passada, até o final do ano a razão dívida/PIB deverá atingir 96,1% do PIB, mantendo trajetória ascendente nos próximos anos.

No início da pandemia, os agentes econômicos entenderam a necessidade de elevar os gastos públicos e o consequente crescimento da dívida. A expectativa era de que os efeitos da crise sanitária iriam se restringir a 2020, e que seriam adotadas medidas fiscais para assegurar a estabilidade da trajetória da dívida a partir de 2021.

No entanto, não foi isso que aconteceu. As PECs de ajuste fiscal (PEC Emergencial e PEC do Pacto Federativo) não avançaram. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021 não foi votada e a Comissão Mista de Orçamento (CMO) sequer foi instalada.

Para agravar a situação, discute-se a possibilidade de estender o período de calamidade pública até 2021 para financiar novas despesas fora do teto de gastos, como uma extensão do auxílio emergencial ou um novo programa social.

O anúncio de que o Renda Cidadã poderia vir a ser financiado por meio de recursos de precatórios foi interpretado de forma unânime como uma pedalada. A possibilidade de uso dos recursos do Fundeb, por sua vez, foi vista como uma tentativa disfarçada de burlar o teto de gastos, já que o aporte de recursos do governo federal ao Fundeb não é contabilizado no teto.

Nas atuais circunstâncias, o teto de gastos é a única âncora fiscal. A regra de ouro não vem sendo cumprida desde 2019, e despesas correntes têm sido financiadas por meio de endividamento público com a aprovação de créditos suplementares pelo Congresso.

Em relação ao resultado primário, desde 2014 têm sido registrados déficits sucessivos, e este ano a meta (de déficit) foi suspensa em função da pandemia. Para 2021, a proposta de LDO enviada pelo governo ao Congresso não estabelece uma meta de resultado primário, sob o argumento de que as incertezas em relação ao desempenho da atividade econômica impedem uma projeção adequada da evolução da receita.

Esta semana o plenário do TCU alertou o Ministério da Economia sobre a ausência de meta fiscal para 2021, alegando que esse procedimento estaria em desacordo com os preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso significa que, caso seja aprovada no Congresso, esta meta flexível provavelmente será questionada judicialmente.

A combinação da ausência de medidas de ajuste fiscal por parte do Congresso com a falta de capacidade do governo de propor um plano de estabilização da trajetória da dívida aumentou a percepção de risco no mercado, com impactos significativos nos preços dos ativos financeiros.

Este quadro de risco muito elevado tem se refletido nas condições de financiamento da dívida, com forte elevação das taxas de juros para a dívida pública de prazo mais longo, que chegam a alcançar mais de 8% em um prazo de dez anos.

Para não sancionar esta elevação dos juros longos, o Tesouro optou pelo financiamento da dívida a prazos menores e juros mais baixos. Isso resultou em grande encurtamento da dívida, com quase R$ 650 bilhões de reais vencendo entre janeiro e abril de 2021.

Outra consequência negativa tem sido a forte desvalorização do real, que já se reflete em aumento expressivo do preço de produtos alimentícios e na aceleração do IPCA-15 em outubro.

Para evitar o agravamento deste quadro, é necessário em primeiro lugar que o governo apresente um plano crível de manutenção do teto de gastos e estabilização da trajetória da dívida. As medidas deveriam envolver mecanismos que viabilizem o acionamento dos gatilhos do teto de gastos e a contenção das despesas obrigatórias, especialmente com o funcionalismo.

Também são necessárias medidas de elevação da receita. Em particular, é fundamental reduzir as renúncias fiscais (gasto tributário), que superam R$ 300 bilhões por ano (cerca de 4,2% do PIB). Embora não ajude a cumprir o teto de gastos, a redução do gasto tributário viabilizaria um aumento de receita importante para a diminuição do déficit primário e do crescimento da dívida.

Finalmente, será necessário um grande esforço de coordenação política entre Executivo e Legislativo. Desde o início do governo Bolsonaro esta articulação tem sido precária, mas atualmente ela é disfuncional, como demonstram as dificuldades para a instalação da CMO.

Caso não sejam aprovadas no Congresso medidas de ajuste suficientes para manter o teto de gastos e estabilizar a trajetória da dívida, não pode ser descartada a possibilidade de uma séria crise fiscal nos próximos meses.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 30/10/2020.

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