A ausência de um protocolo fiscal
Sociedade já mostrou não aceitar alta da carga tributária com elevação de alíquotas ou tributo novo (proposta crível é ampliar base de arrecadação, como na exploração eficiente da loteria/jogos de aposta) nem corte de despesas (o crível é evitar aumento real das existentes).
O desafio macroeconômico do Brasil hoje é recuperar a capacidade de gerar superávits primários e colocar a dívida pública em trajetória cadente, para que esta fique compatível com seus pares. Na métrica do Fundo Monetário Internacional, em 2021, a dívida bruta do Brasil alcançou 90,5% do PIB, enquanto a média do México (59,7%), Colômbia (66,7%) e África do Sul (68,8%) foi 65% do PIB.
De fato, é preciso gerar superávit primário, pois a dívida pública brasileira é relativamente alta e desde 2014 o governo federal (principal fiador dela) não economiza para pagá-la. A expectativa crível de recuperação de capacidade de pagamento permitirá a redução da taxa de juros, o crescimento do mercado de capitais e a ampliação do investimento privado.
Ademais, deve-se destacar o elevado montante de recursos privados disponíveis para investimento. A alocação produtiva destes é fundamental para que o Brasil cresça de forma sustentada no nível de sua taxa potencial, estimada no intervalo 2% a 2,5%. Contudo, isso não ocorrerá se o governo federal não voltar a gerar superávit primário.
A Folha de São Paulo deu uma contribuição para essa discussão, ao entrevistar os representantes dos principais presidenciáveis (Lula, Moro, João Dória e Ciro Gomes) sobre a emenda constitucional do teto de gastos públicos, implantada em 2016. Essa emenda é o mecanismo atualmente utilizado para sinalizar que, em algum momento, o governo federal voltará a gerar superávit primário.
Nesse sentido, essas entrevistas permitiram ao leitor inferir sobre como os principais candidatos a presidente pretendem alcançar o superávit primário; se de maneira igual, semelhante ou diferente da proposta no governo Temer, em 2016.
As entrevistas ocorreram nos dias 11, 12, 13 e 14 de janeiro de 2022. O presidente Bolsonaro (também candidato) não enviou representante – a análise da opinião dele será feita pela execução da política fiscal no período 2019-2021 e por meio das entrevistas do ministro Paulo Guedes.
Após ler as quatro entrevistas dos representantes desses quatro candidatos – Nelson Barbosa (Lula), Affonso Celso Pastore (Moro), Henrique Meirelles (João Dória) e Mauro Benevides (Ciro Gomes) – e refletir sobre as entrevistas do ministro Paulo Guedes e a execução da política fiscal do atual governo, duas inferências gerais surgem naturalmente.
Primeira: ainda estamos muito distantes de um consenso sobre como gerar o superávit primário, se por meio de corte de despesa ou aumento de carga tributária. Segunda: a abundante experiência de execução da política fiscal dos últimos 27 anos, após a estabilização monetária obtida no Plano Real, não foi plenamente considerada.
Dois dos cinco representantes desses presidenciáveis apresentaram implícita ou explicitamente a necessidade de aumentar a carga tributária.
Ora, se a discussão se concentrar na economia positiva, e não na normativa (restringindo-se portanto aos resultados obtidos), não faz sentido propor aumento de carga tributária. Nos últimos sete anos, governos de todas as vertentes, à esquerda (Dilma/PT), de centro (Temer/PMDB) e à direita (Bolsonaro/PL), tentaram tal aumento, e não conseguiram. Por que algum governo em 2024 conseguirá?
De fato, três tentativas frustradas nos últimos seis anos evidenciam essa impossibilidade: em 2015, o ministro da Fazenda Joaquim Levy tentou a volta da CPMF; em 2017, o ministro da Fazenda Henrique Meirelles tentou o aumento do PIS/COFINS; em 2021, o ministro da Economia Paulo Guedes tentou tributar a receita de dividendos.
Além disso, não se consegue a diminuição dos subsídios (benefícios) tributários (na ordem dos 4% do PIB), mesmo considerando todos os esforços que vêm sendo feitos desde 2016. Por conseguinte, a sociedade brasileira, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, vem sinalizando fortemente que não aceita mais elevar a carga tributária.
Elevar alíquota de tributo ou propor tributo novo não parece um caminho crível nem para recuperar superávit primário nem para fazer face a novas despesas. Só há um caminho nessa seara para elevar a arrecadação que ainda resta ser testado: a tributação de novas bases, como a gerada por nova modalidade de loteria e/ou pelos jogos com apostas. Os outros caminhos foram testados e os resultados já são conhecidos.
Por sua vez, os outros três dos cinco representantes desses presidenciáveis falaram explicitamente que é possível cortar despesas, de maneira a evitar desperdícios. O que a economia positiva nos últimos 27 anos nos ensina a respeito dessa possibilidade de corte? Ninguém conseguiu efetivamente cortar ou fazer reformas que diminuam as despesas obrigatórias.
Os ajustes nas despesas foram invariavelmente realizados sobre despesas discricionárias, especialmente em investimentos. Ademais, a experiência mais efetiva de ajuste (pelo lado das despesas) foi feita nos últimos três anos (sem considerar a pandemia), visto que, ao final do atual mandato presidencial, a despesa primária como proporção do PIB deverá terminar em um patamar menor que o herdado.
Como foi essa experiência? Além da reforma previdenciária, que diminuiu a velocidade de crescimento dos benefícios previdenciários, não houve recomposição salarial real nem dos servidores públicos nem do salário-mínimo. Esse parece ser o caminho crível para continuar o ajuste fiscal pelo lado das despesas, mas nenhum presidenciável o considera.
Alguns até falam em cortar despesa, mas não dizem como. Mesmo o atual ministro da Economia continua falando em cortar despesa obrigatória, apesar de já ter tentado inúmeras vezes e não ter conseguido. A negativa pública (por parte do Planalto) mais emblemática foi: “Não cortarei dos pobres para dar aos paupérrimos”.
Além de emblemática, essa negativa deveria ser pedagógica não apenas para o atual governo, mas para os presidenciáveis também. Por quê?
Como é possível inferir de estudo publicado pelo Ministério da Fazenda em 2017 (Efeito Redistributivo da Política Fiscal no Brasil), excluindo-se as aposentadorias e pensões, no caso das transferências monetárias (Bolsa Família, abono salarial, seguro-desemprego etc.), cerca de 85% do orçamento é destinado para as pessoas cujo rendimento se encontra nos oito primeiros décimos de renda – pessoas que vivem em domicílios com rendimento médio de até ¼ do salário-mínimo.
Ainda excluindo as aposentadorias e pensões, mas acrescendo os gastos com educação e saúde, utilizando os gastos com esses serviços como critério para alocar o orçamento, aumenta-se a concentração nos mais pobres. Em outras palavras, no Brasil, falar em fazer corte orçamentário de despesa é falar em cortar componentes orçamentários cujos beneficiários são os pobres.
Enfim, a economia política tem demonstrado ser inviável cortar despesas no Brasil, ainda que o mote seja cortar desperdícios ou gastos ineficientes, basicamente por se tratar de gastos auferidos por pessoas pobres. Mesmo no caso dos gastos auferidos pelos mais ricos (ou localizados nos dois décimos mais ricos), como as aposentadorias e pensões ou os gastos (subsídios) tributários, a tarefa parece impossível.
A reforma previdenciária foi feita em 2019, e não cortou, apenas diminuiu a velocidade do aumento da despesa como proporção do PIB. Dificilmente se tentará outra no próximo mandato presidencial. Já os subsídios tributários parecem intocáveis no Congresso Nacional, apesar de estudos mostrarem a inefetividade de seus objetivos e de terem sido elevados de 2% do PIB, em 2003, para 4,5% do PIB, em 2015, mantendo-se estável desde então, em torno de 4,2% do PIB, em 2020.
Para resumir: a sociedade já evidenciou não aceitar aumento de carga tributária por meio de elevação de alíquotas ou criação de tributo novo (proposta crível nessa seara é aumentar a base de arrecadação, a exemplo da exploração eficiente da loteria e/ou jogos com apostas) nem corte de despesas (proposta crível é controlar as existentes, evitando recomposições reais).
Por fim, qualquer discussão sobre âncora fiscal que vise à geração de superávit primário deveria considerar as restrições acima. De fato, a exemplo da medicina, em que existe protocolo para o tratamento de doenças básicas e que qualquer médico segue independentemente da formação, é preciso criar um protocolo fiscal para uma discussão de como gerar o superávit primário.
Caso contrário, salvo melhor juízo, a discussão já nascerá desacreditada, ao menos para aqueles que acreditam em restrição orçamentária e tiveram a experiência de acompanhar um ajuste fiscal no Ministério da Fazenda.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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