Mercados e Inflação

BC: perspectivas melhores para a inflação, mas a flexibilização monetária envolverá “parcimônia e cautela”

28 jun 2023

Nos últimos meses, os ventos mudaram em favor das perspectivas da inflação. O Banco Central reconhece isso. Mas ainda há muito trabalho pela frente até ser possível confiar em queda continuada e sustentável das taxas de juros.

Há não muito tempo, poucos eram os que não se mostravam preocupados com o futuro da inflação no Brasil. Em 2021, tendo ficado claro que o surto inflacionário surgido com a pandemia estava longe de poder ser visto como temporário, o Banco Central dera início a uma política de aperto monetário, que se estende até hoje. Devido às defasagens habituais com que opera a política monetária, nos primeiros meses de 2023 ainda não havia sinais concretos de que a nova estratégia do BC estava produzindo resultados satisfatórios.

A demora não tinha a ver propriamente apenas com a questão das defasagens de política. Em toda parte, especialmente no Brasil, o combate à inflação não é tarefa apenas da autoridade monetária, mas do governo como um todo. No nosso caso, impulsos fiscais promovidos em 2022, relacionados com o processo eleitoral, e reforçados logo no início da atual administração, com uma mudança constitucional que acarretava o equivalente a 2,0% do PIB de gastos públicos adicionais, também representaram obstáculos à queda da inflação.

Eventos assim contribuem para a piora do quadro inflacionário de diversas maneiras, em parte pelo impulso à demanda efetiva que de fato representam, em parte pelos seus efeitos sobre as expectativas de inflação. O impacto destas sobre a inflação corrente talvez seja uma das realidades macroeconômicas menos reconhecidas por políticos e analistas não especializados.

Como se não bastasse o quadro acima descrito, pouco depois de assumir o cargo, preocupado com o elevado nível dos juros reais então vigentes e ansioso para logo conseguir bons resultados econômicos, o presidente da República passou a atacar pesadamente o Banco Central, personalizando a discussão, ameaçando a recém-adquirida autonomia do BC, e sugerindo aumento da meta da inflação. Supostamente, meta mais elevada de inflação possibilitaria a queda dos juros.

Dois aspectos importantes ficaram de fora dessa discussão. O primeiro tem a ver com a necessidade de distinguir dois tipos de juros reais: o de política monetária, de curto prazo e diretamente influenciável pelo BC, e os de médio e longo prazo, determinados, fundamentalmente, em mercado. Embora, pelo efeito de arbitragem, o primeiro possa afetar os demais, juros de prazos mais longos (certamente os que mais importam) dependem da percepção de risco país, em particular da percepção de risco fiscal. Política econômica calcada em aumento do gasto público e ataques ao Banco Central certamente exacerbam essa percepção e concorrem para elevar os juros de mercado ainda mais.

O segundo tem a ver com a necessidade de encarar eventuais mudanças de meta de inflação de maneira dinâmica. Quando se propõe esse tipo de alteração, é preciso notar que outras coisas acontecem simultaneamente. Em particular, advém a expectativa de que nova alteração ocorrerá no futuro, em prejuízo das expectativas de inflação. Expectativas mais altas batem na inflação corrente, ficando mais difícil combatê-la.

O importante, agora, é notar que, nos últimos três ou quatro meses, os ventos mudaram. Para isso tem contribuído, em primeiro lugar, o fato de estarmos no final do sétimo trimestre consecutivo de aperto monetário. Os juros reais de política monetária (juros nominais de um ano menos expectativa de inflação também para um ano) tornaram-se nitidamente contracionistas no final de 2021, atingindo cerca de 6,0% a.a. Passaram por um pico de 8,4% e atualmente, em média no trimestre, estão em 7,7%. A despeito de eventuais obstáculos, política monetária funciona. E isto certamente explica boa parte da melhora da inflação ora perceptível.

Em segundo lugar, experimentamos atualmente a reversão do choque dos preços de bens físicos, inclusive commodities, trazido pela pandemia. Os gargalos de oferta praticamente desapareceram e o consumo das famílias fez o caminho de volta, privilegiando serviços e não bens. Tal reversão é um fenômeno mundial e explica o fato de que, de modo geral, as inflações plenas mostram-se mais bem-comportadas do que os seus núcleos.

Terceiro, o ambiente doméstico ficou melhor. A Câmara tornou mais rigorosa a proposta original do novo arcabouço fiscal e as autoridades governamentais deixaram de falar em alteração da meta de inflação.

Em decorrência de tudo isso, nesses últimos três ou quatro meses, o risco país veio de mais 260 pontos para menos de 200, as inflações implícitas cederam entre 200 e 300 pontos, a taxa real de juros das NTN-Bs mais longas caiu quase um ponto percentual, a bolsa subiu cerca de 20%, o real se fortaleceu e as expectativas de inflação (Focus) para 2025, 2026 e 2027 vieram para baixo de 4,0%, patamar em que se haviam estabilizado por alguns meses. Há poucos dias, a agência de rating S&P revisou a perspectiva da nota de crédito do Brasil, passando-a de estável para positiva.

Nesta última terça-feira, dia 27, o Banco Central divulgou a ata da reunião do Copom realizada na semana anterior. O documento deixa claro o reconhecimento da autoridade monetária de que os ventos mudaram, sendo possível perceber perspectivas mais favoráveis para o comportamento futuro da inflação.

De fato, entre outros pontos, a ata menciona a ajuda externa que temos recebido, envolvendo renovada determinação dos bancos centrais dos países mais desenvolvidos no sentido de trazer a inflação de volta à meta, de um lado, e a reversão dos choques de preços de bens industriais e commodities, de outro. Destaca também uma “incipiente melhora” no comportamento dos preços de produtos mais sensíveis ao ciclo econômico, bem como “pequena diminuição da desancoragem [das expectativas de inflação] na margem”. No campo fiscal, o Copom fala de substancial redução das incertezas associadas ao futuro das contas públicas no Brasil, mas ressalta que “permanecem desafios” para o cumprimento das metas fiscais.  

No tocante à questão das expectativas de inflação, o Copom lembra que “a ancoragem de expectativas é um elemento essencial para a estabilidade de preços”, acrescentando que “decisões que induzam à reancoragem das expectativas e que elevem a confiança nas metas de inflação contribuiriam para um processo desinflacionário mais célere e menos custoso, permitindo flexibilização monetária”.

A esse respeito, parece claro que eventual decisão do CMN, no próximo dia 29, no sentido de manter em 3,0% a meta de inflação e o intervalo de tolerância em 1,5 p.p., modificando apenas o critério de aferição para meta contínua, válida o tempo todo, desempenharia exatamente o papel acima descrito. Aparentemente, esta é a possibilidade que a autoridade monetária tem em mente.

No tocante à referência básica da política monetária, ou seja, à chamada taxa neutra de juros, o BC informa que passou a trabalhar com o patamar de 4,5%, e não mais de 4,0%. Três seriam as razões para isso. Primeiro, a possível elevação do juro neutro nas principais economias. Segundo, a resiliência da atividade econômica no Brasil, concomitante a um processo desinflacionário lento. Terceiro, resultados obtidos por meio de “modelos auxiliares”.

Sobre a primeira razão, talvez caiba notar de que o único estudo empírico do qual temos conhecimento é o do New York Fed, calcado na metodologia de Laubach e Williams. Segundo estimativas recentes, do início da pandemia até hoje, o juro neutro teria caído nos EUA e subido na Zona do Euro.

Debater a segunda razão talvez seja mais relevante. De fato, a constatação de que a atividade econômica se tem mostrado resiliente e a inflação tem cedido apenas lentamente compõe um quadro compatível com a possibilidade de o BC estar trabalhando com uma taxa subestimada de juro neutro. Nesse caso, a política monetária não seria tão contracionista quanto originalmente imaginado. Daí a resiliência da atividade e a lentidão da queda da inflação.

Outros motivos para isso, porém, são igualmente possíveis. Primeiro, o fato de que, durante toda a fase de política monetária contracionista, ou seja, desde o final de 2021, tal política tem sido acompanhada de expansão fiscal, algo que, como já dissemos, prejudica a inflação. Segundo, as expectativas de inflação se desancoraram no período. E, sempre que isso acontece, é natural que a inflação demore a ceder.

De qualquer modo, independentemente das dúvidas que possam ficar a respeito do patamar “correto” do juro neutro, o fato é que o BC trabalha agora com uma taxa mais alta, fator este que, de alguma forma, limita o espaço da redução da taxa Selic.

Quando a essa observação acrescentamos outros pontos devidamente registrados na ata do BC, como as ideias de que os componentes da inflação mais sensíveis ao ciclo econômico e à própria política monetária apresentam apenas “uma incipiente melhora”, e de que experimentamos no momento apenas uma “pequena diminuição da desancoragem” das expectativas de inflação, fica fácil entender a razão de o BC esclarecer que a tão esperada flexibilização monetária envolverá “parcimônia e cautela”. Como sustentam os integrantes do Copom, tal flexibilização “requer confiança na trajetória do processo de desinflação”.    

Em suma, os ventos realmente se mostram mais favoráveis, mas ainda há muito trabalho pela frente, até ser possível confiar em queda continuada e sustentável das taxas de juros.    


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

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