Trabalho

Bolsa-Família ampliado reduz oferta de trabalho, mas pode ser aperfeiçoado

13 ago 2025

Estudo aponta que Bolsa-Família atual desestimula a participação na força de trabalho de homens jovens, especialmente no NO e NE. Mas jovens com maior potencial de renda que saem da força de trabalho tendem a estudar mais.

A pandemia levou a profundas mudanças no programa Bolsa-Família. Em 2020, foi instituído o Auxílio Emergencial de R$ 600, que acabou servindo de inspiração para o Auxílio Brasil, ainda no governo Bolsonaro. Este programa começou com um benefício básico de R$ 400, que foi ampliado para R$ 600 em 2022, ano eleitoral. O governo Lula retomou o nome Bolsa-Família em 2023 e, com a inclusão de mais alguns tipos de pagamento, levou o benefício médio para cerca de R$ 670. Com isso, o benefício médio do Bolsa-Família original, de R$ 190 em 2019, foi mais do que triplicado. Adicionalmente, o número de beneficiários saltou de 14 milhões para 21 milhões. O orçamento anual do Bolsa-Família, por sua vez, que era de R$ 35 bilhões em 2017, subiu para R$ 170 bilhões.

Essa enorme transformação do Bolsa-Família provocou mudanças no impacto do programa no mercado de trabalho. Na sua primeira fase, até 2019, diversos estudos mostravam que, de forma geral, não havia efeito relevante do Bolsa-Família na oferta de trabalho. Alguns desses trabalhos até detectavam um efeito positivo de aumento da oferta de trabalho feminina. Agora, porém, como mostra pesquisa conduzida pelo pesquisador Daniel Duque, do FGV IBRE, o Bolsa-Família, no seu novo nível muito ampliado de benefício médio, causa um impacto bastante forte de redução da oferta de trabalho de homens (mas não de mulheres), especialmente de jovens e nas regiões Norte e Nordeste. Já em termos de ocupação em emprego formal, há um intenso efeito negativo do Bolsa-Família em homens de todas as faixas etárias e regiões do País.

Duque destaca que o benefício médio do Bolsa-Família hoje corresponde a cerca de 35% da renda mediana do trabalho no Brasil, comparado a 15% até 2019. Não é de surpreender, portanto, que o programa, que em sua primeira fase não afetava a oferta de trabalho, tenha passado a fazê-lo quando o benefício passou a representar uma parcela muito maior do salário mediano brasileiro.

Dessa forma, a grande ampliação do Bolsa-Família pode explicar por que a taxa de participação no mercado de trabalho (porcentagem das pessoas com mais de 14 ocupadas ou procurando emprego) no Brasil não voltou ao nível pré-pandemia, como ocorreu em outros países. A taxa de participação brasileira caiu de 63,6% no último trimestre de 2019, logo antes da pandemia, para um mínimo de 57,3% no segundo trimestre de 2020, auge das quarentenas. A taxa de participação voltou a subir até um máximo de 62,7% no segundo trimestre de 2022. A partir daí, de forma aproximadamente coincidente com o período em que o Auxílio Brasil aumentou para R$ 600, a taxa de participação tornou a cair, chegando a um mínimo de 61,6% no primeiro semestre de 2023, quando foi implantado o novo Bolsa-Família com benefício médio de R$ 670.

Talvez pelo leve recuo do benefício médio como parcela do rendimento mediano do trabalho – já que as transferências não mudaram seu valor nominal, mas a renda continuou a crescer –, houve entre 2023 e 2025 um pequeno aumento da taxa de participação, que registrou 62,2% no primeiro trimestre deste ano. Ainda assim, ela se encontra 1,4 ponto porcentual (pp) abaixo do seu nível pré-pandemia.

Fernando de Holanda Barbosa Filho e Paulo Peruchetti, pesquisadores do FGV IBRE, analisaram a evolução da taxa de participação desde 2012 por faixas de educação e de renda. O grupo sem instrução ou até com o ensino fundamental incompleto apresenta tendência de queda da taxa de participação em todo o período, que foi retomada em 2022, como no caso do indicador total. Já o grupo com fundamental completo ou médio incompleto teve estabilidade aproximada da taxa de participação entre 2012 e 2019, e a queda mais acentuada (dentre as faixas educacionais), de 5pp, entre o terceiro trimestre de 2023 e o primeiro trimestre de 2025. Nesse mesmo período, a queda é bem menor no grupo com médio completo ou superior incompleto, e quase inexistente no grupo com superior completo.

Em termos de renda, as faixas salariais de zero a R$ 1300 mensais tiveram quedas na taxa de participação entre 2022 e 2025 no intervalo de 2,3-3,5pp, enquanto as demais faixas, com rendimentos superiores, experimentaram quedas menores ou até aumentos na taxa de participação naquele mesmo período.

Barbosa Filho e Peruchetti decompuseram o impacto dessas tendências da taxa de participação – entre os níveis de educação e de renda – nos chamados efeitos composição e nível. O efeito composição deve-se ao fato de que a distribuição das pessoas entre os níveis educacionais e de renda muda ao longo do tempo, com tendência de longo prazo de que a população em idade ativa (PIA) se torne mais educada e mais bem remunerada. Já o efeito nível refere-se às tendências da taxa de participação dentro de cada grupo educacional ou de renda.

É um fato bem estabelecido que, de forma geral, pessoas mais educadas e com potencial maior de renda participam mais no mercado de trabalho. Assim, como de 2022 a 2025 houve melhora educacional e de renda na PIA, o efeito composição atuou para aumentar a taxa de participação. No caso da educação, em 1,5pp, e, no caso da renda, em 1,4pp. Mas tanto numa dimensão como na outra, o efeito nível mais do que neutralizou o efeito composição, refletindo as já mencionadas quedas da taxa de participação na maioria das faixas educacionais e de renda. No caso da educação, o efeito nível foi negativo em 2pp e, no caso da renda, em 1,9pp. Assim, a combinação do efeito composição e do efeito nível na educação e na renda levaram à queda de 0,5pp da taxa de participação brasileira total entre o terceiro trimestre de 2023 e o primeiro trimestre de 2025.

A grande contribuição de Duque para esse tema foi investigar se há causalidade entre a grande ampliação do Bolsa Família e a redução da taxa de participação em relação ao seu nível pré-pandemia, além de outros efeitos no mercado de trabalho. Para isso, o pesquisador se baseou no fato de que, na transição do Auxílio Brasil para o novo Bolsa-Família, em 2023, houve um aumento a linha de elegibilidade do programa, de renda familiar per capita até R$ 210 para até R$ 218. Assim, foi possível comparar as famílias que se tornaram elegíveis por causa dessa mudança (com renda per capita entre R$ 210 e R$ 218) com um grupo de rendimento bem semelhante, mas que permaneceu inelegível (renda familiar per capita entre R$ 218 e R$ 226). A metodologia estatística estabeleceu os controles necessários para reforçar a comparabilidade e investigar a causalidade entre ser elegível ao Bolsa-Família e as probabilidades de participar do mercado de trabalho, de estar ocupado e de estar ocupado em emprego formal.

O estudo mostra que o grupo que se tornou elegível ao Bolsa-Família em 2023 teve um aumento relativo de 20 pontos porcentuais (pp) na cobertura pelo programa em relação ao grupo parecido (grupo de controle), mas que não se tornou elegível em 2023. Este aumento foi considerado como a ampliação da cobertura do Bolsa-Família causada pelo fato de as famílias do primeiro grupo terem se tornado elegíveis.

A taxa de participação do grupo elegível ao Bolsa-Família teve uma queda relativa, comparada à do grupo que permaneceu inelegível, de 11%. “Isso é quase 50% do aumento de cobertura do Bolsa-Família; ou seja, para cada duas famílias que recebem o Bolsa-Família, uma sai da força de trabalho”, comenta Duque. Já as probabilidades de estar ocupado e de ter um emprego formal caíram, respectivamente, 12% e 13% no grupo que se tornou elegível, relativamente ao que permaneceu inelegível.

Adicionalmente, o trabalho de Duque mostrou que essas quedas na participação, ocupação e formalidade causadas pelo Bolsa-Família estão inteiramente concentradas nos homens, sem nenhum efeito detectado entre as mulheres.

Entre os homens, o efeito se concentra quase totalmente nos jovens (14 a 30 anos) no caso da participação e da ocupação, mas também ocorre entre os maiores de 30 anos no caso da formalidade. Duque aponta que o governo tem acesso às informações de emprego formal das pessoas, diferentemente das ocupações informais. Assim, evitar um emprego formal que potencialmente torne a família inelegível ao Bolsa-Família é uma preocupação mais geral, que atinge todas as faixas etárias. Há regras para que o desligamento seja gradativo no caso de se romper o teto de elegibilidade, mas o pesquisador pensa que, em termos de economia comportamental, a percepção de risco sobre a renda segura do Bolsa-Família pesa mais em muitos casos do que o apego à renda de um trabalho formal, naturalmente menos garantida.

Em termos regionais, o padrão se repete. São os homens do Norte e Nordeste que explicam a queda na taxa de participação e de ocupação causada pelo Bolsa-Família, mas brasileiros de todas as regiões tendem a evitar mais o emprego formal quando têm acesso aos benefícios do programa de transferência.

Um último exercício de Duque foi o de separar os homens jovens (neste caso, de 15 a 24 anos) elegíveis ao Bolsa-Família entre aqueles com maior potencial de renda no mercado de trabalho e menor potencial. Esse potencial foi inferido por características como escolaridade, faixa etária, local de moradia, sexo etc. O grupo de “maior habilidade” (maior potencial de renda no mercado de trabalho) mostrou maior probabilidade de estar desocupado e de não ter emprego formal do que o grupo de menor habilidade. Mas aqui o estudo também revela um aspecto positivo do atual Bolsa-Família. Os indivíduos jovens de alta habilidade, que mostram queda maior em sua oferta de trabalho, também aumentam mais a probabilidade de estarem matriculados numa instituição de ensino, na comparação com os jovens de baixa habilidade.

Pesquisadores do FGV IBRE com foco em mercado de trabalho, como Barbosa Filho e Peruchetti, além de Flávio Ataliba, à frente do Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Nordeste do FGV IBRE, reagiram de formas variadas aos achados da pesquisa de Duque.

Barbosa Filho observa que a versão inicial do Bolsa-Família foi atacada injustamente pela suposição de que afetasse negativamente a oferta de trabalho, o que vários estudos mostraram que não ocorria. A questão foi “pacificada”, mas, agora, nota o pesquisador, tem-se um novo Bolsa-Família que é muito diferente do original, com valores muito mais altos, compostos na sua maior parte por um benefício básico extremamente elevado, comum a todos os recipientes (o que não ocorria na versão inicial). Assim, é como se o atual Bolsa-Família fosse um novo programa, e as questões levantadas em relação à primeira versão retornassem à mesa do debate público. Nesse sentido, o trabalho de Duque é uma primeira demonstração de que agora, diferentemente do que ocorria até 2019, o Bolsa-Família tem, sim, efeitos negativos no mercado de trabalho. E essa questão deve ser entendida, discutida e, se for o caso, tratada pelos gestores de política pública.

Já Ataliba aponta que a saída do mercado de trabalho de jovens na região Norte e Nordeste não é necessariamente um “problema”, considerando as condições muito precárias de boa parte dos empregos oferecidos. Se os jovens desocupados ou fora da força de trabalho buscarem maior qualificação no sistema de ensino, e se os governos oferecerem programas de integração produtiva e treinamento adequados, o que parece um problema pode se tornar uma solução. Os demais pesquisadores do FGV IBRE mencionados nesta Carta, incluindo Peruchetti, demonstram algum ceticismo em relação ao ponto levantado por Ataliba.

Duque, finalmente, considera que seus achados possivelmente recomendariam um redesenho do Bolsa-Família (incluindo a possibilidade de combiná-lo com outros programas, como o Pé-de-Meia). Ele nota que o Bolsa-Família tem hoje um orçamento extremamente elevado, de R$ 170 bilhões, com o qual se pode fazer muito na área social. Em particular, o benefício básico de R$ 600 poderia ser bastante reduzido, de tal forma que um jovem pobre de 25 anos, sem nenhuma perspectiva de estudo adicional, não evite o mercado de trabalho em função do benefício recebido. Ausentando-se do mercado de trabalho, esse jovem se priva do aprendizado e da experiência profissional num momento da sua vida que pode ser decisivo para a formação do seu capital humano. Ao mesmo tempo, os recursos economizados com um menor benefício básico poderiam ser direcionados para reforçar as transferências para mães com filhos pequenos ou jovens que só saíram do sistema de ensino por necessidade de complementar a renda da família. Em resumo, é possível aprimorar o Bolsa-Família, o que pode ampliar muito os benefícios que o programa traz para a sociedade brasileira.

Esta é a Carta do IBRE de agosto de 2025, da Conjuntura Econômica. 


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.  

 

 

 

 

Comentários

Vieira
Alo, vcs tem link para o paper? O estudo foi em cima so da pnad?

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.
Ensino