Cálculo e tragédia: Lula e a Venezuela
O jogo com Caracas está mudando no cenário brasileiro, pois o presidente Lula certamente percebeu os altos custos de atar seu governo a uma ditadura e de parecer indiferente para com a tragédia que sofre o povo venezuelano.
Em maio de 2023, ao receber em Brasília o presidente venezuelano Nicolás Maduro, Lula afirmou que a Venezuela era uma democracia, asseverando também que críticas ao autoritarismo do regime bolivariano eram apenas narrativas. No dia 29 de julho do corrente, logo após a eleição presidencial naquele país, o Partido dos Trabalhadores (PT) reconheceu a vitória de Maduro, saudando, em nota oficial, “[...] o povo venezuelano pelo processo eleitoral”, em “[...] jornada pacífica, democrática e soberana”. No dia seguinte, Lula disse que o pleito “nNão teve nada de anormal”, apesar de, até o momento (15 de agosto), o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), órgão da Venezuela, não ter apresentado, conforme manda a lei, as atas eleitorais que confirmem o autoproclamado triunfo de Maduro. Todavia, o Palácio do Planalto e o Itamaraty não reconheceram nem a colossal fraude perpetrada por Maduro nem as atas apresentadas pela oposição, as quais indicam que seu candidato, Edmundo Gonzáles, superou a Maduro por ampla margem. Junto com a Colômbia e o México, o governo brasileiro pediu que o CNE publicize as atas.
O posicionamento de Lula em relação à Venezuela é ambíguo e minoritário no Brasil. É minoritário na opinião pública, no Congresso e em influentes parcelas das elites e da sociedade civil simpáticas a Lula e ao PT. O posicionamento ambíguo do governo Lula III em relação ao regime autoritário bolivariano e, agora, em relação à fraudulenta eleição presidencial no país caribenho, é também crescentemente custoso para o líder brasileiro no plano doméstico, custo que pode afetar suas chances de reeleição em 2026. Por isso, é difícil entender o que Lula tem feito e deixado de fazer.
Há uma névoa espessa encobrindo as motivações do mandatário brasileiro com respeito à tragédia que há anos se abate sobre a Venezuela e seu povo, tragédia causada em larga escala pelo autoritarismo e a incompetência de Maduro e com grande impacto na América do Sul, México, Estados Unidos e Espanha por conta do êxodo massivo de venezuelanos. Trata-se de uma das maiores catástrofes humanitárias da história latino-americana. Quais são os parâmetros que podem estar presentes no cálculo do presidente brasileiro?
Comecemos com o partido de Lula. O PT é uma agremiação de centro-esquerda. É a melhor expressão da socialdemocracia em terras brasileiras. Porém, sua política externa tem como eixo um anti-imperialismo e um antiamericanismo dignos da década de 1960. Por isso, é a postura mais radical da legenda hoje em dia. Lula se vê compelido a fazer algumas concessões às facções dentro do PT que sustentam tal postura, uma vez que elas, as facções, lhe foram muito leais quanto esteve preso entre abril de 2018 e novembro de 2019. Contudo, reitere-se que o posicionamento do governo Lula III em relação à Venezuela de Maduro não se confunde com o do PT.
Passemos ao Itamaraty. Há importantes setores da nossa chancelaria para os quais a ordem internacional vertebrada por Washington e pelo Ocidente não interessa ao país. Tal ordem relega o Brasil a uma posição subalterna, apesar de termos ativos que nos credenciariam a desempenhar papel mais amplo no concerto das nações. Daí porque a diplomacia brasileira deve pelejar por uma revisão moderada da referida ordem por meio de alianças com outros países do Sul Global e com as superpotências que rivalizam com os EUA e a Europa, isto é, China, Rússia e Índia (esta é uma superpotência em ascensão). Os setores do Ministério das Relações Exteriores que assim pensam dão hoje as cartas no governo. Daí a relevância do BRICS para Lula III. Daí porque a reticência é a marca dos pronunciamentos do atual governo a respeito de várias iniciativas dos EUA e da União Europeia. Daí porque o posicionamento do Brasil vis-à-vis àa Venezuela jamais pode ser igual ao de Washington e Bruxelas.
Em terceiro lugar, há que se considerar a opinião pública e a das elites brasileiras e seu impacto sobre as preferências do Congresso Nacional. A maioria no seio do grande público e das elites é favorável à democracia em casa e fora. Portanto, é contrária à ditadura venezuelana. O Congresso segue essa orientação, como não poderia deixar de ser.
Por último, o papel das grandes potências – EUA, China, União Europeia e Rússia – e dos principais países latino-americanos (Argentina, Colômbia e México). China e Rússia reconheceram imediatamente a fraudulenta autoproclamação de Maduro. Ainda que já tenham reconhecido a vitória de Edmundo González, americanos e europeus convergem com o Brasil no sentido de demandar a publicização das atas eleitorais e apoiam os esforços da diplomacia brasileira no sentido de intermediar o diálogo entre Maduro e a oposição. A Argentina denunciou a fraude e está rompida com Caracas. Colômbia e México têm, formalmente, o mesmo posicionamento de Brasília.
Qual será o peso relativo dos quatro conjuntos de fatores acima elencados nos cálculos de Lula doravante?
A nota oficial do PT foi um desastre, um erro desnecessário. Além disso, as facções petistas que redigiram a nota não têm voto e, o que é pior, ameaçam subtrair votos à legenda nas eleições municipais de 2024 e a Lula na sucessão presidencial de 2026. Portanto, o peso dos quadros radicais do PT deverá ser declinante.
O Itamaraty, por sua vez, deverá ver ser seu peso relativo aumentar em função da atuação do chanceler Mauro Viera, que tem primado por uma condução profissional, discreta e eficaz da diplomacia brasileira. Qual é a evidência de eficácia? O apoio que o Brasil tem recebido da América Latina, Estados Unidos e Europa nas tratativas com a Venezuela.
De maneira complementar, o peso da opinião pública, das elites e do Congresso – todos majoritariamente contrários ao regime bolivariano – deverá também ser crescente nos cálculos de Lula. A Venezuela tornou-se um tema da política nacional. Não é mais um assunto exclusivo de diplomatas e acadêmicos.
Quanto às grandes potências, convém destacar que americanos e europeus, depois de terem errado tanto com relação à Venezuela – ao equivocadamente reconhecerem Juan Guaidó como presidente do país em 2019 e imporem sanções que penalizaram a população venezuelana, mas fortaleceram o regime bolivariano –, querem reduzir danos. O apoio chinês e russo a Maduro influencia o Brasil, mas em sentido negativo: Lula teme que essas duas superpotências se metam demais na América do Sul, enfraquecendo o Brasil e atraindo os americanos para uma confrontação com Beijing e Moscou na região. Portanto, as potências estrangeiras não deverão ter um peso muito alto nos cálculos de Lula, mas jamais será baixo. Deverão ter um peso intermediário – até segunda ordem.
Com relação ao México, já dá sinais de que não quer muito envolvimento na crise venezuelana. Afinal, sua política externa é essencialmente voltada para os EUA, o que significa que não vai querer se indispor com Washington por conta de Caracas, ainda que faça alguns floreios retóricos. A Argentina de Javier Milei tem estado muito distante de Lula. Portanto, Buenos Aires e Cidade do México deverão ter um peso relativo cadente. Já a Colômbia tem enorme preocupação com o que se passa na Venezuela e um posicionamento semelhante ao de Lula. É do interesse do Brasil negociar com Maduro tendo Bogotá ao seu lado. Consequentemente, o peso da Colômbia nos cálculos de Lula deverá ser alto.
Em função dos pesos relativos acima discutidos, o jogo com Caracas está mudando no Brasil, pois Lula certamente percebeu os altos custos de atar seu governo a uma ditadura e de parecer indiferente para com a tragédia que sofre o povo venezuelano. Se, às vezes, Lula se move como quem quer ganhar tempo, não é para facilitar a consolidação da gigantesca fraude perpetrada por Maduro, mas, isto sim, para permitir que o Brasil se desvencilhe do regime bolivariano sem romper relações diplomáticas com a Venezuela. Para tanto, é fundamental que os profissionais do Itamaraty sejam o condutor desse tortuoso processo.
Esta é a seção Observatório Político do Boletim Macro FGV IBRE de agosto de 2024.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
Deixar Comentário