As causas do atraso português
Novo livro reinterpreta raízes do atraso de Portugal ante o resto da Europa. Divergência teria ocorrido mais tarde do que estabelece a visão tradicional, e um dos fatores foi impulso ao absolutismo dado pelo ouro vindo do Brasil.
O historiador econômico português e professor da Universidade de Manchester, Nuno Palma, acaba de publicar em Portugal pela editora D. Quixote “As causas do atraso português”. O livro tem o subtítulo “Repensar o passado para reinventar o futuro”. Escrito em linguagem fluente, é leitura obrigatória para todos que se interessem pelo tema. Nuno Palma é um pesquisador profícuo, com inúmeros trabalhos publicados nas melhores revistas acadêmicas de história econômica e economia.
Em duas partes, o leitor é exposto à história de Portugal do século XVI até os dias de hoje. Na primeira parte, em três capítulos, Palma nos apresenta os principais fatos associados respectivamente: à demografia e alguns indicadores sociais; à evolução das instituições, principalmente das instituições políticas; e, finalmente, aos fatos ligados à evolução da economia e ao desenvolvimento econômico.
Na segunda parte, segue as etapas cronológicas do desenvolvimento da sociedade portuguesa como consagrado pela historiografia tradicional. Nos capítulos 4 e 5, respectivamente, a expansão e o Império (até o final do século XVII) e a cultura e a questão religiosa. No capítulo 6, o período da monarquia absolutista, com ênfase no impacto do ouro brasileiro na economia e nas instituições políticas. No sétimo capítulo, apresenta o período da monarquia constitucional, da década de 1820 até 1910. No oitavo capítulo, aborda a primeira república, de 1910 até 1926. Nos dois capítulos finais, respectivamente, o Estado Novo salazarista, e o período recente, que se inicia com a Revolução dos Cravos de 1974.
Palma nos oferece uma descrição muito original da história econômica portuguesa, que está bem assentada nos achados mais recentes da pesquisa acadêmica, em inúmeros trabalhos de Palma com colegas e de outros pesquisadores. O livro de 400 páginas tem 18 páginas de referências bibliográficas e 58 páginas de notas de final de capítulo. Faltava uma consolidação dos achados da pesquisa mais recente e o livro preenche essa lacuna. Apesar de limitações, aqui e acolá, o conjunto da obra sobrevive muito bem a uma leitura mais crítica. E, de fato, vários mitos vão ficando pelo caminho.
A matriz teórica que organiza os fatos e os motivos que explicam o desempenho da economia é o neoinstitucionalismo, um dos filhos recentes da cliometria, campo da história econômica que aborda o fato histórico empregando a teoria econômica padrão. A trinca de pesquisadores que ganharam o Nobel de economia do ano passado é formada por três estrelas do neoinstitucionalismo. O livro de Nuno Palma expõe a história econômica portuguesa à luz do neoinstitucionalismo. Este tem como ponto de partida as instituições, isto é, as regras, formais e informais, que estabelecem a estrutura de incentivos de uma sociedade e, portanto, guiam o comportamento e as escolhas das pessoas. Uma das questões importantes do neoinstitucionalismo é o processo de mudança institucional. Este será um elemento essencial, segundo Palma, para entendermos o desempenho da economia portuguesa no longo prazo.
Palma, como Keynes na Teoria Geral, escolhe uma visão de mundo como seu contendor. A escolha retórica ajuda a organizar as ideias e explicitar o ineditismo do livro. Evidentemente, há o risco de ser injusto com a tradição anterior. Na introdução do livro, Palma dialoga com a geração de 70 (1870) formada por, entre outros, Antero de Quental, Eça de Queiroz e Oliveira Martins, insatisfeitos com o atraso e a anomia da sociedade portuguesa. Em 1871, Quental proferiu o famosíssimo discurso Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos. Como se sabe, para Quental, a decadência da Península Ibérica datava-se do final do século XVI. Além de muito antiga no tempo, a decadência tinha um forte componente cultural e religioso: o catolicismo, a contrarreforma e a Inquisição, além de uma postura anticientífica e, no limite, estática, e, pode-se afirmar, reacionária. A contrarreforma teria, em grande medida, deixado a península apartada da revolução científica, tecnológica e do Iluminismo, que foram as grades forças motrizes do progresso da Europa nesses três séculos. Essa leitura do atraso de Portugal, formulada pela geração de 70, desempenha no livro de Palma o papel desempenhado pela teoria clássica na Teoria Geral de Keynes.
Para Palma, essa leitura da geração de 70 ecoa a história escrita pelos vencedores – no caso, os povos de línguas germânicas. Conhecida por lenda negra espanhola, essa é a visão de que a Península Ibérica está atavicamente sequestrada pelo atraso, pela tirania e pelo obscurantismo.
No primeiro capítulo, o que aborda a demografia, Palma argumenta, baseando-se em trabalhos quantitativos recentes, que a Península Ibérica e, em particular, Portugal, apresentavam as mesmas características demográficas da Europa como um todo. Em particular, o que é conhecido como padrão europeu de casamentos – as pessoas atrasarem o ingresso na vida sexual e o momento do casamento – ocorria nos países ibéricos. Adicionalmente, um outro elemento importante do que se conhece por revolução industriosa, que antecede a Revolução Industrial, com elevada participação feminina no mercado de trabalho, também era compartilhada pelos povos peninsulares. Não havia diferenças relevantes até a primeira metade do século XVIII nas taxas de alfabetização e numeracia.
Com relação às instituições políticas, tema do segundo capítulo, na Península Ibérica, como no resto da Europa, havia parlamentos que limitavam o poder discricionário do rei. Esta não era uma característica única da Inglaterra e dos Países Baixos. Palma documenta que, em diversas dimensões, os parlamentos Ibéricos eram mais “modernos” do que os seus equivalentes na Inglaterra. Por exemplo, em um número maior de vezes o parlamento português rejeitou pedidos de aumento de impostos do que o inglês, ou reduziu o aumento de imposto, quando aprovava o pedido do rei. Nos processos eleitorais nas cidades a franquia eleitoral era maior, as eleições eram tão ou mais competitivas e os representantes locais eram financiados localmente para cumprir as suas funções nas cortes.
No capítulo três, somos apresentados à trajetória de longo prazo do produto interno bruto per capita da economia portuguesa desde 1530 até hoje. Nesta resenha, emprego a atualização de 2022 da base de dados de Maddison.[1] Para suavizar os dados, considero médias decenais dos dados de Maddison. Há um crescimento entre a década terminada em 1600 e a década terminada em 1760 de 72% (0,34% ao ano) aproximadamente. Em seguida há uma longa decadência entre 1760 e 1870, com queda de 31% (0,33% ao ano) do PIB per capita, revertida no período seguinte, com crescimento de 44% de 1870 até 1926 (0,65% ao ano). A partir de 1926, inicia-se um forte crescimento que perdura até hoje.[2] A economia cresceu, de 1926 até 2018, 1.195% (ou 2,73% ao ano). É útil dividirmos o último período entre o Estado Novo, de 1926 até 1974, e o período democrático seguinte. Temos para o Estado Novo o crescimento de 210% (ou 3% por ano) e, para o período democrático, de 191% (ou 2,46% ao ano).
Quando consideramos comparações internacionais, dois fatos saltam aos olhos. Primeiro, entre 1642 e 1807, a renda per capita portuguesa foi superior à renda per capita espanhola. Em particular, entre 1730 e 1790, a renda per capita portuguesa foi sempre 30% ou mais superior à renda espanhola. O segundo fato, é que, mesmo no período bem anterior à Revolução Industrial, entre 1530 até 1650, a renda per capita inglesa sempre foi superior à renda per capita portuguesa. Quase sempre acima de 20% ou mais. Ou seja, mesmo no período em que as instituições portuguesas não eram piores do que as instituições inglesas,[3] havia uma vantagem na produtividade inglesa importante. Este fato escapa à análise de Palma. Voltarei a esse ponto no final da resenha.
O período do Império é tratado em dois capítulos, o quarto e quinto. No quarto, Palma argumenta que a construção do Império é consequência de uma economia que já é rica e não o contrário. Não há evidências de que a economia portuguesa se beneficiou do Império, apesar de ser verdadeiro que o Império teve relevância para as contas públicas, em alguns períodos. Em particular, esse foi o caso para o ouro do Brasil no século XVIII, tema que será tratado no sexto capítulo. Finalmente, por um bom tempo, as nações Ibéricas tinham a liderança em boa parte da ciência e tecnologia da época. Tinham se beneficiado muito da herança árabe e saíram na frente no domínio tecnológico associado às navegações.
No quinto capítulo, em diálogo direto com a geração de 1870, argumenta que a Inquisição não era muito diferente das perseguições religiosas que ocorriam na Europa em geral. Em termos de números de mortos, a Inquisição foi muito menos danosa do que as revoltas religiosas europeias do mesmo período. Adicionalmente, argumenta que não é verdadeiro que a violência do experimento colonial tenha sido, nas colônias Ibéricas, superior ao observado nas demais colônias. A Inquisição e o atraso científico e educacional de Portugal – que foi construído, principalmente, entre os séculos XVIII e XIX –, têm uma natureza mais política do que cultural. A Inquisição foi um instrumento de fortalecimento do poder
No sexto capítulo, o maior do livro, com o sugestivo título de “A maldição dourada”, Palma elabora seu argumento central. A riqueza fácil da América, tanto para a Espanha, no século XVII, quanto para Portugal, no século XVIII, permitiu que o rei impusesse uma ordem absoluta sobre a sociedade. As cortes deixaram de serem convocadas. Em Portugal, as cortes ficaram sem serem convocadas por 120 anos, do final do século XVII até 1820. O ouro da América, além de estimular forte piora institucional – certamente o efeito mais deletério a longo prazo –, gerou o fenômeno da doença holandesa. O excesso de riqueza vindo de fora gera excesso de demanda por todos os bens. Os bens comercializáveis passam a ser importados e os bens não comercializáveis, os serviços, têm seu preço elevado. A mudança do preço relativo a favor dos serviços gera desindustrialização. Um processo incipiente de industrialização, que dava seus primeiros passos com a boa gestão mercantilista (nos dias de hoje seria chamada de desenvolvimentista) do 3º Conde de Ericeira na década de 1670, e que teve continuidade até o início do século XVIII, foi desfeito. A indústria de Portugal se atrasa e praticamente desaparece.[4]
O poder absoluto “permitiu o enquistamento de um grupo restrito de comerciantes em mercados protegidos, graças à sua proximidade ao Estado”.[5] Portugal absolutista se transformou em um capitalismo de compadrio. Palma sugere que não era assim. Esse me parece ser um argumento que precisa ser melhor documentado. Além de ter destruído a indústria, o dinheiro fácil do Brasil abriu o caminho para o absolutismo despótico que foi dar no Marquês de Pombal. Este é a figura histórica que se sai pior da narrativa de Palma. Era um político que usava como ninguém a Inquisição com instrumento de disputa política, o que modernamente se conhece por lawfare, teve papel central na construção do capitalismo de compadrio e tomou a decisão com as piores consequências a longo prazo na história de Portugal: a expulsão dos jesuítas. Estes eram ideologicamente contra o poder absoluto. Eram os grandes responsáveis pela educação em Portugal. Os jesuítas eram responsáveis pelo ensino pré-universitário. Os números são eloquentes na regressão educacional portuguesa: entre 1772 e 1820, o número de pessoas que foram formadas foi equivalente a 16% dos formados no período anterior (de 1724 e 1771).[6] Segundo Palma, “Portugal somente voltaria a ter 20.000 estudantes de ensino pré-universitário nos anos 30 do século XX, e isto com uma população do país quase três vezes maior”.[7]
Palma atribui um peso importante ao papel do atraso educacional, que, em certa medida, persiste até hoje, no atraso econômico português. A leitura de Palma está correta, mas o livro falha em elaborar para o leitor o motivo. Hoje se sabe – e esse conhecimento é fruto dos últimos 25 anos de pesquisa – que a escolaridade de qualidade explica por volta de metade da desigualdade de renda entre os países. Falta no livro uma elaboração curta que seja desses achados recentes. O leitor que não conhece essa literatura pode avaliar que Palma exagera no impacto do atraso educacional sobre o atraso econômico. Infelizmente, para Portugal e para o Brasil, Palma está coberto de razão.
No período seguinte, o da monarquia constitucional, ocorre evolução das instituições políticas em direção a uma sociedade mais aberta. Com todas as limitações daquele tempo. Entre 1820 e 1850, há um período muito conturbado com grande instabilidade política. Quando alguma estabilidade política foi construída, a partir de 1851, inicia-se o período conhecido por Regeneração. A marca desse período foi, segundo Palma, um esforço de construção da infraestrutura física do país, principalmente em mobilidade – ferrovias, obras viárias, cabotagem – e também o serviço de telégrafo. Este período de construção da infraestrutura física do país é conhecido por fontismo, em função do primeiro ministro (no caso, presidente do Conselho de Ministros) Fontes Pereira de Melo. Segundo Palma, a melhora da infraestrutura física não rendeu bons frutos, pois faltava uma população minimamente preparada. Portugal era um país de analfabetos.
A Primeira República, o curto período de 1910 até 1926, foi, segundo Palma, “um regime sectário e radical”. Contrário às promessas que mobilizavam o movimento republicano, e bem parecido com a República Velha brasileira, houve redução da franquia eleitoral em relação ao período monárquico imediatamente anterior. Os novos dirigentes diagnosticaram no atraso educacional um dos grandes problemas. Houve aumento do orçamento da educação. No entanto, a estratégia não funcionou. Os dirigentes republicanos tentaram impor, para uma sociedade essencialmente agrária, conservadora e católica, um ensino laico e no qual meninas e meninos estudassem juntos. A sociedade não abraçou a escola. O atraso educacional persistiu.
O nono capítulo trata do Estado Novo. Palma faz quatro observações sobre esse longo período da história de Portugal. Primeiro, Salazar não era um governante fascista. Apesar de ser uma ditadura (ausência de direitos fundamentais, restrições de liberdade de imprensa, censura, perseguição e presos políticos, ausência de eleições livres, etc.), não havia culto à personalidade, característica essencial do fascismo. Era um ditador discreto, se manifestava pouco e tecnocrático. Segundo, foi nesse período que Portugal tirou muito de sua distância relativa aos países ricos. De fato, considerando médias decenais, o PIB per capita inglês era 269% maior do que o português em 1926, e 98% em 1974, uma queda de 170 pontos percentuais. Terceiro, Salazar foi pragmático na educação. Voltou a separar as escolas por gênero e passou a aceitar símbolos religiosos na escola. Parece pouco, mas, segundo Palma, teve um impacto imenso na frequência escolar.[8] Quarto, Salazar no pós-guerra engatou a economia portuguesa à economia europeia e surfou o boom de crescimento da reconstrução da Europa nos trinta anos gloriosos. O bom desempenho da economia do Estado Novo no pós-guerra não se deve à imigração nem à economia colonial. Foi um processo doméstico, fruto de uma industrialização associada à melhora da qualidade da força de trabalho. Apesar dos enormes problemas da falta de liberdade, o legado econômico do Estado Novo é bem positivo. Para termos uma ideia dos números, e sempre comparando com a economia inglesa, em 1974 a economia inglesa (per capita) era, como vimos, 98% maior do que a portuguesa. Em 2018 era 44%, uma redução de 54 pontos percentuais, 56% da distância em 1974. Para o Estado Novo, a queda foi de 170 pontos percentuais, ou 63% da distância para a economia inglesa. Isto é, considerando a Inglaterra como a fronteira tecnológica, a convergência com a fronteira tecnológica no Estado Novo, de 63%, foi maior do que a convergência no período posterior, de 56%.
O décimo e último capítulo trata do período democrático atual. É o capítulo em que o argumento de Palma está menos estruturado e, portanto, é menos convincente. Os dados mostram que, de 1974 até 2000, Portugal, por exemplo, cresceu na mesma velocidade que a Espanha. A partir do século XXI, passou a divergir. Entrou no século XXI com uma renda per capita de 90% da espanhola, e hoje a renda per capita é de 80% da espanhola. Se considerarmos as economias do Leste da Europa, a divergência será ainda maior. Por que motivo Portugal se atrasa? Palma transpõe para o período atual o argumento do ouro brasileiro do século XVIII. As transferências da União Europeia, algo da ordem de 3% do PIB (o ouro do Brasil era da ordem de 5% do PIB), entorpecem a sociedade e impedem que as reformas necessárias para a retomada da convergência sejam diagnosticadas e implementadas.
A dificuldade é que, diferentemente do que faz para o período do ouro de Minas Gerais, Palma não avança muito no mecanismo que produz esse atraso. Parece ser algo associado ao processo político, mas Palma não esclarece o leitor. O argumento não me parece errado, mas não parece muito convincente que, em uma sociedade democrática funcional, como é o caso de Portugal, as transferências tenham esse poder todo. Faltou no capítulo uma análise mais cuidadosa da diferença de produtividade do trabalho, com relação à média europeia, por exemplo, e seus determinantes próximos. Quanto dessa diferença deve-se à escolaridade – quantidade e qualidade –, quanto deve-se ao capital físico e quanto à produtividade sistêmica, ou produtividade total dos fatores? Por sua vez há toda uma literatura recente, inclusive para Portugal, de má alocação do investimento que explica parte da baixa produtividade total dos fatores. Um bom diagnóstico dos fatores determinantes das diferenças de produtividade do trabalho pode ajudar a entender os fatores institucionais que atrasam hoje a economia e qual a relação destes com as transferências da Comunidade Europeia.
As deficiências do capítulo final não diminuem o livro. Servem como estímulo aos pesquisadores, inclusive Palma, para seguir o caminho trilhado por tantos – vale a leitura do Preâmbulo do livro com os agradecimentos – e continuar no desvelo das causas do atraso dos povos de línguas portuguesa.
Para fechar a resenha, vale uma avaliação mais geral do argumento básico de Palma. A narrativa de Palma é a seguinte: Portugal no século XVI e XVII tinha o mesmo grau de desenvolvimento institucional dos países europeus, inclusive Inglaterra, Países Baixos e Bélgica. No período mercantilista, observou um desenvolvimento industrial que poderia ser o ponto de partida para uma industrialização no século seguinte. O ouro do Brasil gerou um desvio de rota. Desindustrializou o país e criou as condições para um fechamento total do regime político, desaguando no absolutismo. Ou seja, diferentemente da historiografia padrão, o absolutismo português é um fenômeno que ocorreu nos reinados de Dom João V, que se iniciou em 1706, até a regência de Dom João VI. No período anterior, como ocorria genericamente na Europa, havia restrições ao poder discricionário do rei dadas pelas cortes. O período absolutista, além de fechar o regime e desindustrializar a economia, eliminou uma incipiente economia competitiva que se formava e transformou Portugal em um capitalismo puro de compadrio. Os três grandes legados do período absolutista – atraso educacional, desindustrialização e capitalismo de compadrio – não foram alterados no período subsequente e geraram pesado fardo com o qual Portugal luta até hoje.
A narrativa de Palma sugere o seguinte exercício contrafactual: se os bandeirantes paulistas, em suas andanças (pelo hoje território brasileiro) nas décadas finais do século XVII, nada encontrassem de metais e pedras preciosas, Portugal poderia ter se integrado à primeira revolução industrial. Talvez, com algum atraso, poderia ser uma Bélgica ibérica. Diferentemente, me parece que, já em meados do século XVII, no núcleo inicial da primeira Revolução Industrial – norte da Inglaterra até Londres, Países Baixos e Bélgica –, já havia uma divergência econômica importante com relação ao resto da Europa, inclusive relativamente a Portugal. A densidade populacional era bem maior, salários maiores em função da maior produtividade do trabalho (ganhos smithianos de produtividade) e, principalmente, uma produtividade agrícola bem maior, que sustentava graus maiores de urbanização. O PIB per capita inglês era da ordem de 20% maior, do que o português, para os séculos XVI até o terceiro quartel do século seguinte, 30% maior ao português, para as duas décadas finais do século XVII, e de 50% para as duas primeiras décadas do século XVIII.[9] Senti falta no livro de Palma de uma análise mais pormenorizada do fenômeno conhecido por “Pequena divergência na Europa”[10] – o processo em que o Norte da Europa ultrapassa a produtividade dos países mediterrâneos – e como Portugal se situa nesse processo. Aparentemente, Palma sugere que a pequena divergência europeia não atingiu Portugal até a descoberta do ouro no Brasil. Me parece não ser o caso. Mas este é um ponto que demanda estudos mais aprofundados.[11],[12]
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de fevereiro de 2025, com algumas modificações em relação à versão original.
[1] A menos de diferenças de deflator Palma emprega esses mesmos dados. Para vários períodos os dados foram produzidos por Palma a partir de fontes primárias.
[2] Na série que considera médias decenais dos dados de Maddison – que foi a série que considerei para os números no parágrafo –, a inflexão inicia-se em 1920 e não em 1926, como tratei no texto. Mantive no texto a data de 1926 para coincidir com o início do Estado Novo.
[3] O momento em que as instituições inglesas superaram de qualidade as ibéricas foi tratado em “Comparative European Institutions and the Little Divergence, 1385-1800”, texto de António Henrique e Nuno Palma, publicado no Journal of Economic Growth em 2023, volume 28, páginas 259 até 294.
[4] O argumento de que o ouro do Brasil gerou uma versão da doença holandesa em Portugal no período mercantilista com impactos profundos sobre a industrialização foi feito por Celso Furtado no clássico Formação Econômica do Brasil, capítulo 14.
[5] Capítulo 6, página 150.
[6] Capítulo 6, página 164.
[7] Capítulo 6, página 166.
[8] Sobre a evolução da escolaridade de Portugal no século XX Nuno Palma e Jaime Reis publicaram em 2021 “Can autocracy promote literacy? Evidence from a cultural alignment success story”, no Journal of Economic Behavior and Organization, volume 186, páginas 412-436.
[9] Dados da atualização de 2022 da série de Maddison.
[10] Veja de Stephen Broadberry “The Industrial Revolution and the Great Divergence: recente findings form historical national accounting”, capítulo 24 (seção 24.4.1 – páginas 760 até 762) do Handbook of Historical Economics (editado por Alberto Bisin e Giovanni Federico), Academic Press, 2021.
[11] No trabalho “Comparative European Institutions and the Little Divergence, 1385-1800”, publicado no Journal of Economic Growth em 2023, volume 28, páginas 259 até 294, António Henrique e Nuno Palma reconhecem que as instituições inglesas divergem para melhor das ibéricas em meados do século XVII, antes, portanto, da Revolução Gloriosa. De qualquer forma a renda per capita das economias ibéricas era significativamente menor do que da inglesa desde 1500 pelo menos.
[12] Em troca de e-mail Nuno Palma argumenta que não há precisão suficiente nas séries históricas para termos certeza que os dados em nível do PIB per capita, tanto para Portugal quanto para a Inglaterra, para os séculos XVI até XVIII sejam corretos. Para este período há mais segurança na tendência. Assim, estamos certo quanto ao arranque Inglês em direção à revolução industrial, mas não quanto à diferença de renda per capita no período.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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