Chegando perto da dominância fiscal
Uma consequência da brutal inconsistência de políticas macroeconômicas é que podemos já estar entrando no regime de dominância fiscal, antecipando a inevitabilidade de valores elevados das relações dívida/PIB serem atingidos.
O que é a dominância fiscal? Este fenômeno que tem sido mencionado reiteradas vezes nas últimas semanas, inclusive por membros do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Por definição, é uma situação na qual a dívida pública fica tão elevada que se torna inevitável inflacionar a economia para diminuí-la em termos reais (isto é, deflacionada). De quebra, como efeito colateral, reduzem-se os gastos do governo em termos reais. Há estimativas de Aloisio Araújo e coautores, “Inflation Targeting under Fiscal Fragility”, de Aloisio Araújo (FGV EPGE e IMPA), Vitor Costa (IMPA), Paulo Lins (University of Rochester), Rafael Santos (FGV EPGE) e Serge de Valk, versão de 2 de agosto de 2024. Foram feitas a partir do episódio da crise de 2002. Estas estimativas chegam a valores próximos de 90% do PIB para a dívida bruta do governo geral – DGBB. Usando um outro método muito distinto dos autores acima, Rodrigo Mendes Pereira do IPEA estima que a dominância fiscal ocorre em algum valor entre 60% e 80% para a dívida líquida do setor público - DLSP (“Fiscal Fatigue and Public Debt Limit in Brazil: are We on Sustainable Path?”, IPEA Discussion Paper 250, agosto 2020). É claro que esta estimação é muita sujeita a erros, como o amplo intervalo 60 a 80 nos mostra. No passado recente, durante o governo Bolsonaro, já observamos a relação DGBB/PIB num pico de 87,7% em outubro de 2020. Na época havia dois atenuantes. Primeiro, havia o teto de gastos constitucional que ainda travava excessos (embora tenha sido “furado” em inúmeras ocasiões) e a determinação do ministro Paulo Guedes em conter as despesas em termos reais. Com efeito, em dezembro de 2022 a relação DGBB/PIB foi para 71,4%. Segundo, a relação DLSP/PIB estava em 59,1% em outubro de 2020 e caiu para 56,1% em dezembro de 2022. Mesmo com estes fortes fatores que mitigavam o risco da dominância fiscal, para que as relações dívida/PIB se reduzissem, tivemos que contar com a ajuda de uma inflação acumulada em 12 meses que atingiu 11,73% no pico e foi em média 8,81% ao ano nos anos de 2021 e 2022. É claro, para que esta inflação atingisse tal nível, o Banco Central agiu (corretamente) de forma razoavelmente acomodativa. No início da pandemia diminuiu a Selic para 2%, para evitar os efeitos iniciais deflacionários. No fim de 2020, a inflação pelo IPCA estava em 4,52%, bem próxima da meta de 4% vigente naquele ano. A Selic abaixo da inflação ou da inflação esperada fazia com que a taxa de juro real fosse negativa (tanto em termos ex-post quanto ex-ante)! Em 2021 o Bacen passou a elevar a selic. Em dezembro de 2021 a inflação em 12 meses atingiu 10,06% (a meta era de 3,75%) e a Selic estava em 7,75%, mas a taxa ex-ante era de 4,22%. Em dezembro de 2022 a Selic já estava em 13,75%, e a inflação havia despencado para 5,79% (meta de 3,5%). Ou seja, o Bacen deixou a taxa real ex-ante e ex-post negativa um tempo e subiu de forma gradual a Selic.
Nossa situação no momento é muito mais delicada. Primeiro, temos uma relação dívida bruta/PIB que está subindo e, por várias estimativas, deverá atingir nível acima de 84% do PIB até o fim do governo Lula 3 (2026). Cito apenas a estimativa da IFI (instituição Fiscal Independente, relatório de setembro de 2024). O Focus do Bacen estima em 2026 a DLSP em 69,2% do PIB (relatório de 1º de novembro de 2024), já perigosamente acima do limite do 60% do artigo de Pereira (embora ainda abaixo de 80%). Em segundo, não contamos mais com o teto de gastos, mas sim com um “arcabouço fiscal”, que é muito menos eficaz, e baseado quase que exclusivamente na elevação da arrecadação. Mais ainda, a política de Lula 3 de reajuste do salário-mínimo acima da inflação e os aumentos dos gastos de saúde e educação que têm que crescer com a receita tornam pré-contratado um continuado aumento das relações dívida/PIB. Terceiro, houve um aumento sem precedentes dos métodos de expansão parafiscais, que não impactam o arcabouço fiscal. Várias pessoas perceberam isto e alertaram que o problema da contabilidade criativa ou das pedaladas no arcabouço atingiu níveis absurdos. O tipo de manobra orçamentária utilizada é cada vez mais complexo. Em particular Marcos Mendes, do Insper, escreveu vários artigos e fez apresentações sobre isto. Dentre estas manobras parafiscais, destaco a provável e caríssima renegociação de dívidas de estados que o Senado está patrocinando. E quarto, o Banco Central está com uma postura muito mais aguerrida de atingir a meta de 3% ao ano, aliás, muito inferior à meta vigente em 2020 (de 4%). Basta ver que o recente ciclo de aumento da Selic iniciou-se em 18 de setembro, com a taxa de inflação em 12 meses em 4,42% e com juro real em 12 meses de 5,82% (Selic de 10,50% descontada inflação realizada de 12 meses em setembro). Ou seja, estamos vendo esta convergência das relações dívida/PIB para níveis de dominância fiscal com juros muito mais elevados do que tínhamos quando o pico da DGBB de 87,7% do PIB foi atingido no governo Bolsonaro. Neste ciclo o Copom está muito mais severo com a convergência da inflação para a meta. E não temos perspectiva de uma queda real nas despesas públicas.
Esta delicadíssima situação reflete-se nos juros reais. A média da taxa da NTN-B de 2050, entre janeiro de 2017 e o fim de outubro de 2022 (quando Lula foi eleito para seu 3º mandato), foi de 5,07% (usando dados da Bloomberg). Em particular, quando a relação DBGG/PIB chegou a seu pico em outubro de 2020, a taxa destes títulos estava pouco acima de 4,30% ao ano. Quando o Copom iniciou este novo ciclo de elevações da Selic, a taxa da NTN-B de 2050 estava em 6,33% e o dólar estava cotado a R$5,46. Ontem a taxa da NTN-B 2050 estava em 6,58% ao ano e, desde 15 de outubro, o dólar está acima de R$5,60, tendo atingido a marca de R$5,86. Estas duas cotações são sinais de dois problemas: uma política fiscal inconsistentemente expansionista, que eleva as relações dívida/PIB e um Banco Central que quer perseguir incansavelmente a meta de 3% ao ano de inflação. Obviamente, o Banco Central está apenas tentando cumprir seu mandato primário, de atingir a meta de 3%. Se o Bacen desistir de seguir a meta, poderá haver um alívio nos juros reais, mas o resultado, todos sabem, haverá mais inflação. E pelo que observamos nos “surtos” inflacionários que já foram vistos anteriormente em situação de crise fiscal, não surpreenderia ver a inflação atingindo dois dígitos novamente.
Uma consequência desta brutal inconsistência de políticas macroeconômicas é que podemos já estar entrando no regime de dominância fiscal, antecipando a inevitabilidade de valores elevados das relações dívida/PIB serem atingidos. Em outras palavras, não existe um muro claro que diga: a partir daqui entramos no território da dominância fiscal. Ao longo do tempo vamos observar vários sinais que já se mostram bem eloquentes. Primeiro, mesmo com o Fed cortando juros e o Copom elevando os juros aqui no Brasil, vimos o real desvalorizar-se, mantendo um patamar acima de 5,60 já há algum tempo. Segundo, a inflação implícita nos títulos em IPCA está muito alta nos prazos acima de dois a cinco anos, variando entre 5,88% e 5,74% (cotações de ontem), muito acima da meta e da inflação corrente. Terceiro, a despeito dos discursos cada vez mais duros dos integrantes do Copom, seguem as expectativas de inflação desancoradas da meta, e com a diferença para a meta aumentando. Em suma, a política monetária parece dar sinais de eficácia menor que no passado.
O remédio é conhecido, mas o governo Lula 3 não quer ver a solução e aposta em esticar a corda ainda mais. Vai arrebentar se continuar assim. Teremos inflação bem mais elevada no futuro, e o Bacen errando a meta mais vezes. Uma palavra de precaução em relação a um aumento puro e simples da meta para a inflação. Infelizmente, teremos que esperar até que a lambança fiscal que foi gerada pelo governo Lula 3 seja organizada e posta sob controle. Depois de resolvidos os gravíssimos desequilíbrios orçamentários atuais, estará na hora do CMN aplicar um monetarismo fiscalista, elevando a meta para 4% ou 4,5%. Para isto, o fiscal tem que estar sob controle (vejam meu artigo “Mudar a meta requer as contas fiscais em ordem”, Valor Econômico 17/2/2023). Por fim, ao Bacen cabe lembrar que ignorar as fragilidades fiscais estruturais de nosso país, como se não existissem, é um exercício de faz-de-conta. Um monetarismo puro que já se mostrou ineficiente.
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Este artigo foi publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 12/11/2924, terça-feira.
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