Energia

Como desenvolver resiliência financeira nos mercados de eletricidade


 

8 ago 2023

Abertura do setor elétrico nacional em 2024 põe em foco resiliência financeira. No Reino Unido, em resposta à grande saída de comercializadores do mercado por problemas de capitalização, órgão regulador reformou a regulação.

No início de agosto, mais um anúncio de Recuperação judicial veio assombrar o setor elétrico. Desta vez se trata da Brasil Comercializadora. Suas dívidas somariam mais de R$ 335 milhões. A alegação é de que as intervenções do governo no mercado para gerenciar a crise hídrica de 2021 teriam causado elevações muito expressivas de preços em período muito curto de tempo. A empresa não estaria preparada – não teria sido capaz de comprar energia para honrar obrigações contratuais futuras.  E os rumores são de que ela não estaria sozinha. Novos casos de estresse financeiro estariam no horizonte. Esses fatos evidenciam a importância de avaliar as condições de segurança do mercado, tema deste artigo.

O setor elétrico se prepara para novo marco da abertura. A partir de 1º de janeiro de 2024, todos os consumidores de alta tensão passam a poder contratar livremente sua energia.  Nas estimativas de Alexandre Ramos, presidente do Conselho da CCEE, mais de 70.000 novos usuários poderiam exercer esse direito. O porte menor desses consumidores, no entanto, faz com que seu acesso tenha que ser intermediado por comercializadores varejistas. Esses agentes farão a representação dos usuários no operador do mercado. Mais consumidores e mais comercializadores negociando no ambiente livre recomendam maior atenção para o tema da resiliência financeira do mercado.  

Preocupação com segurança do mercado não é algo novo. Já abordamos reiteradas vezes o assunto (Jota 1, Jota 2, CP 33/2017). Voltamos a ele na contribuição do FGV CERI à Consulta Pública 152/2023 do MME, na qual se discute o tratamento às Concessões de Distribuição de Energia Elétrica com Vencimento entre 2025 e 2031. Ali, enfatizamos sua importância para uma abertura de mercado que seja boa para quem vai e para quem fica atendido pelas distribuidoras.

O tema tem movimentado a regulação além-mares. Um exemplo é a recente decisão do OFGEM, regulador de energia do Reino Unido, que estabeleceu importantes medidas nessa seara. A motivação vem da saída de mais de 30 comercializadores de energia do mercado – quase metade – devido a problemas de capitalização, desde o início de 2021. Grande parte da responsabilidade vem da volatilidade crescente na recuperação da pandemia e crise de energia da guerra da Ucrânia. Mas o mercado não se mostrou preparado para lidar com esses fatores de estresse. E a conta, adivinhe, caiu para os demais ofertantes que a “mutualizaram”, distribuindo impactos, custos e riscos entre consumidores e contribuintes. O colapso adicionou £ 94 a cada fatura de energia em 2022 para cobrir custos de resgatar consumidores daquelas empresas.

A resposta do OFGEM para estabelecer resiliência financeira veio na forma de novos princípios de Capacidade Operacional e Responsabilidade Financeira (Operational Capability Principle (OCP) and Enhanced Financial Responsibility Principle (FRP)). O processo resulta de Consulta Pública aos agentes. Em essência, os ofertantes licenciados (equivalentes aos comercializadores daqui) deveriam ser aptos a financiar suas atividades, mantendo capacidades, sistemas e processos robustos. Surgem novos requisitos de submeter informações ao regulador em bases regulares, por meio de relatórios anuais de adequação (Annual Adequacy Self-Assessment), com adaptação de governança nas empresas. Somam-se obrigações de comunicar um conjunto de eventos que podem sinalizar ou causar problemas futuros. Tais eventos são determinados por “trigger points”.

O ponto de partida é um relatório preparado pela consultoria Oxera, contratada pelo OFGEM em 2022. O objetivo é criar uma abordagem regulatória ao mesmo tempo robusta e flexível, capaz de lidar com problemas por vir, para proteger consumidores do presente e do futuro. A avaliação dos modelos de negócios existentes (e até dominantes) teria permitido exposição excessiva dos participantes a choques de oferta e demanda, contribuindo para gerar e propagar instabilidade no mercado. Mais ainda, os riscos de falhas são positivamente correlacionados com os seus custos, que acabam transferidos (mutualizados) aos Supridores de Última Instância. O regulador, ainda que muito mais avançado no monitoramento do mercado do que aqui (veja-se relatório), carece de uma estrutura dinâmica que permita avaliar os resultados do mercado, compreendendo benefícios e riscos (de default inclusive) para o consumidor no tempo.

O OFGEM reconhece que os novos critérios de resiliência financeira podem se traduzir em elevação de custos – aumento de obrigações acarreta custos pecuniários e não (de transação). Mas a postura de incentivar entrada de ofertantes para promover competição a qualquer preço criou espaço para apostas muito arriscadas. Os modelos de negócio de alto risco/alto prêmio atraíram agentes dispostos a aproveitar upsides, ao mesmo tempo em que poderiam sair sem grandes custos. E, em muitos casos, extraindo ganhos na saída.

Nas palavras do relatório da Oxera, que o OFGEM apoia, o regulador não foi capaz de analisar os riscos sistêmicos que poderiam emergir. Nem de responder em tempo oportuno. Privilegiou competição, sem entender custos e riscos, sem capacidade de monitorar e antecipar crises sistêmicas ou idiossincráticas. Sobrou para o consumidor e para o contribuinte a conta.

Essa discussão é profundamente oportuna quando avança a abertura no setor elétrico por aqui. Coerente com a realidade, a posição do governo é de que este é um processo “inevitável”. Mas mais do que reconhecer a necessidade da separação de fio e energia, urge desenhar como será essa liberalização atentando para os detalhes, se preparando para os problemas do futuro, como pretende o OFGEM.

Desenvolver resiliência no mercado requer regulação prudencial que estabeleça requisitos de adequação de capital das comercializadoras com monitoramento do mercado pelo regulador, critérios de capacidade operacional e responsabilidade financeira. Sem isso, abertura é Terra de Marlboro. Aí eu não quero.


Esta coluna foi publicada originalmente em 07/08/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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