Como ler a economia americana?
Será necessária política monetária mais contracionista para controlar inflação nos EUA, o que deve ficar claro neste 2º semestre ou início de 2023. Recessão americana ficará para 2º semestre de 2023 ou virada de 2023 para 2024.
A economia americana teve crescimento negativo por dois trimestres consecutivos. Recuou 1,6% no primeiro trimestre de 2022 e 0,9% no segundo, neste caso de acordo com a primeira prévia do IBGE deles (chamado de Bureau of Economic Analysis).
No entanto, os dados do mercado de trabalho contam uma história muito diferente. A divulgação da sexta-feira, 5 de agosto, indica que houve em julho criação líquida de 528 mil empregos, segundo o cadastro com os empregadores daquela economia. Já na pesquisa por amostras de domicílio, houve criação de 179 mil empregos.
Se considerarmos o primeiro semestre, em que, segundo as contas nacionais, o crescimento do PIB foi negativo em 2,5%, criaram-se 2,8 milhões de empregos, segundo o cadastro dos empregadores, e 2,1 milhões, segundo a pesquisa domiciliar.
Adicionalmente, a taxa de desemprego em julho caiu para 3,5%, após ficar constante por quatro meses em 3,6%,.
Quando olhamos o que ocorre na inflação, não há grandes sinais de acomodação. O índice de inflação que o banco central americano, o Fed, emprega para operar o regime de metas de inflação é o deflator implícito do consumo das contas nacionais, PCE. Em junho o PCE rodou a 0,95%. Os núcleos por exclusão, médias aparadas e da mediana rodaram, respectivamente, a 0,59%, 0,56% e 0,70%.
Além de a taxa mensal não ter vindo bem, os três núcleos de inflação acumulados em 12 meses fecharam junho respectivamente a 4,8%, 4,3% e 5,3%, para uma meta inflacionária de 2%. E, apesar de haver algum sinal de reversão do choque sobre bens de consumo duráveis – após fecharem em janeiro último, em 12 meses, a 11,5%, rodaram em junho a 6,1% –, a inflação de serviços segue crescendo persistentemente, fechando os 12 meses até o fim de junho em 4,9%.
Os salários nominais também sobem. Acompanhar o mercado de trabalho não tem sido fácil ao longo da epidemia. Em todo ciclo econômico, na fase de baixa, são sempre os trabalhadores menos qualificados que sofrem mais com o desemprego. Assim, a média dos salários pagos pode subir em função da alteração da composição da mão de obra. Esse fato foi particularmente dramático na epidemia, visto que o fechamento da economia afetou desproporcionalmente os serviços de baixa sofisticação, como alimentação fora do domicílio, turismo, todo o entretenimento etc.
O melhor indicador disponível de salários para a economia americana é o “wage tracker” do Fed Atlanta. Ele limpa o resultado de mudanças provocadas apenas pela alteração da composição da força de trabalho. A última observação disponível é de junho. Os salários nominais aumentaram, nos 12 meses até junho, 5,8% e, na média móvel trimestral, o aumento nominal foi de 7,1%. Ainda aquém da inflação, mas em forte elevação.
Assim, os dados de mercado de trabalho e inflação não contam uma história compatível com economia há um semestre em recessão. Temos que olhar com mais cuidado os dados da atividade.
Para o primeiro trimestre, em que houve recuo de 1,6% do PIB, as aberturas descartam a ideia de economia em recessão. O consumo privado cresceu 1,8% e o investimento em capital fixo – isto é, desconsiderando os estoques – elevou-se em 7,4%. A contribuição desses dois itens para a demanda agregada foi de 2,5 pontos percentuais.
Para o segundo trimestre, os números são menos claros. O consumo cresceu 1% e o investimento em capital fixo recuou 3,9%. A contribuição para o crescimento desses dois itens em conjunto foi nula. O consumo não cresceu mais porque o consumo de bens recuou 4,4%, retirando 1,1 ponto percentual do crescimento.
O que machucou mesmo o desempenho no segundo trimestre foi a desacumulação dos estoques, que retirou 2 pontos percentuais do crescimento. Isto é, se a demanda tivesse que ser atendida pela produção com estoques constantes, o crescimento, em vez de negativo em 0,9%, teria sido positivo em 1,1%. De qualquer forma, o segundo trimestre de 2022 apresentou queda consistente do investimento residencial, de 14%, e do consumo de bens duráveis, de 2,6%, dois itens sensíveis ao aperto das condições financeiras que ocorreu desde novembro de 2021.
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2019 T4 |
2020 T2 |
2021 T2 |
2022 T2 |
Produto interno bruto |
100 |
90 |
101 |
102 |
Consumo das famílias |
100 |
89 |
103 |
105 |
Bens |
100 |
97 |
118 |
114 |
Bens duráveis |
100 |
96 |
129 |
122 |
Bens não duráveis |
100 |
98 |
112 |
110 |
Serviços |
100 |
85 |
97 |
101 |
Formação bruta de capital do setor privado |
100 |
83 |
101 |
110 |
Formação bruta de capital fixo |
100 |
91 |
104 |
106 |
Não residencial |
100 |
89 |
101 |
105 |
Estruturas |
100 |
85 |
80 |
75 |
Equipamento |
100 |
84 |
106 |
109 |
Propriedade intelectual |
100 |
98 |
109 |
120 |
Residencial |
100 |
96 |
116 |
110 |
Exportações líquidas |
100 |
91 |
147 |
174 |
Exportações |
100 |
76 |
90 |
96 |
Bens |
100 |
76 |
97 |
102 |
Serviços |
100 |
76 |
79 |
86 |
Importações |
100 |
80 |
104 |
116 |
Bens |
100 |
83 |
110 |
120 |
Serviços |
100 |
68 |
83 |
100 |
Consumo e investimento do setor público |
100 |
102 |
102 |
100 |
Para entender melhor o movimento da atividade da economia americana, é útil olhar os componentes da demanda agregada em nível. A tabela acima ilustra. Na tabela, o nível do PIB americano e dos seus componentes foi normalizado em 100 para o quarto trimestre de 2019, imediatamente anterior à epidemia.
No segundo trimestre de 2022, a economia estava 2% acima de sua posição no quarto trimestre de 2019. Note-se o enorme desequilíbrio da recuperação da economia americana após a queda súbita do segundo trimestre de 2020. O consumo de bens duráveis no segundo trimestre de 2022 encontra-se 22% acima, e o investimento residencial, 10% acima.
A coluna avalia como natural a queda do investimento residencial e do consumo de bens duráveis após recuperação tão desequilibrada. Penso que podemos assistir a recuos adicionais desses dois componentes da demanda agregada por alguns trimestres. Porém, no início de 2023, investimento residencial e consumo de bens duráveis devem se estabilizar, e iniciar nova elevação a partir de nível um pouco mais baixo.
A aposta do parágrafo anterior se dá num contexto no qual o mercado tem entendimento distinto do desempenho da economia americana. Avalia que o aperto já ocorrido nas condições financeiras desacelerará a atividade econômica o suficiente para produzir a elevação do desemprego requerida para trazer a inflação para a meta. Para o mercado, as duas quedas do PIB no primeiro semestre são o início de leve recessão que desinflacionará a economia. Dado esse entendimento, a curva de juros aponta pico de Fed Funds (FF), a Selic deles, em 3,4% na virada do ano e início de ciclo de baixa já no segundo trimestre de 2023.
O problema com essa percepção do mercado é que supõe que será possível desinflacionar a economia sem que os juros sejam reais em nenhum momento. Para que isso ocorresse, seria necessário que a taxa neutra de juros fosse ao redor de -2% ou -3%, o que está totalmente fora das estimativas existentes. Se o mercado continuar a pensar dessa forma, levando os juros de mercado a permanecerem baixos, a economia voltará a crescer em algum momento na virada de 2022 para 2023.
Para a coluna, será necessária uma política monetária mais contracionista para que o serviço de controlar a inflação seja feito. Ao longo do segundo semestre de 2022 ou no início de 2023, esse fato ficará claro. A recessão americana ficará para o segundo semestre de 2023 ou para a virada de 2023 para 2024. Esta é a aposta da coluna.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de agosto de 2022.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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