Economia Global

Como ler a economia americana?

15 ago 2022

Será necessária política monetária mais contracionista para controlar inflação nos EUA, o que deve ficar claro neste 2º semestre ou início de 2023. Recessão americana ficará para 2º semestre de 2023 ou virada de 2023 para 2024.

A economia americana teve crescimento negativo por dois trimestres consecutivos. Recuou 1,6% no primeiro trimestre de 2022 e 0,9% no segundo, neste caso de acordo com a primeira prévia do IBGE deles (chamado de Bureau of Economic Analysis).

No entanto, os dados do mercado de trabalho contam uma história muito diferente. A divulgação da sexta-feira, 5 de agosto, indica que houve em julho criação líquida de 528 mil empregos, segundo o cadastro com os empregadores daquela economia. Já na pesquisa por amostras de domicílio, houve criação de 179 mil empregos.

Se considerarmos o primeiro semestre, em que, segundo as contas nacionais, o crescimento do PIB foi negativo em 2,5%, criaram-se 2,8 milhões de empregos, segundo o cadastro dos empregadores, e 2,1 milhões, segundo a pesquisa domiciliar.

Adicionalmente, a taxa de desemprego em julho caiu para 3,5%, após ficar constante por quatro meses em 3,6%,.

Quando olhamos o que ocorre na inflação, não há grandes sinais de acomodação. O índice de inflação que o banco central americano, o Fed, emprega para operar o regime de metas de inflação é o deflator implícito do consumo das contas nacionais, PCE. Em junho o PCE rodou a 0,95%. Os núcleos por exclusão, médias aparadas e da mediana rodaram, respectivamente, a 0,59%, 0,56% e 0,70%.

Além de a taxa mensal não ter vindo bem, os três núcleos de inflação acumulados em 12 meses fecharam junho respectivamente a 4,8%, 4,3% e 5,3%, para uma meta inflacionária de 2%. E, apesar de haver algum sinal de reversão do choque sobre bens de consumo duráveis – após fecharem em janeiro último, em 12 meses, a 11,5%, rodaram em junho a 6,1% –, a inflação de serviços segue crescendo persistentemente, fechando os 12 meses até o fim de junho em 4,9%.

Os salários nominais também sobem. Acompanhar o mercado de trabalho não tem sido fácil ao longo da epidemia. Em todo ciclo econômico, na fase de baixa, são sempre os trabalhadores menos qualificados que sofrem mais com o desemprego. Assim, a média dos salários pagos pode subir em função da alteração da composição da mão de obra. Esse fato foi particularmente dramático na epidemia, visto que o fechamento da economia afetou desproporcionalmente os serviços de baixa sofisticação, como alimentação fora do domicílio, turismo, todo o entretenimento etc.

O melhor indicador disponível de salários para a economia americana é o “wage tracker” do Fed Atlanta. Ele limpa o resultado de mudanças provocadas apenas pela alteração da composição da força de trabalho. A última observação disponível é de junho. Os salários nominais aumentaram, nos 12 meses até junho, 5,8% e, na média móvel trimestral, o aumento nominal foi de 7,1%. Ainda aquém da inflação, mas em forte elevação.

Assim, os dados de mercado de trabalho e inflação não contam uma história compatível com economia há um semestre em recessão. Temos que olhar com mais cuidado os dados da atividade.

Para o primeiro trimestre, em que houve recuo de 1,6% do PIB, as aberturas descartam a ideia de economia em recessão. O consumo privado cresceu 1,8% e o investimento em capital fixo – isto é, desconsiderando os estoques – elevou-se em 7,4%. A contribuição desses dois itens para a demanda agregada foi de 2,5 pontos percentuais.

Para o segundo trimestre, os números são menos claros. O consumo cresceu 1% e o investimento em capital fixo recuou 3,9%. A contribuição para o crescimento desses dois itens em conjunto foi nula. O consumo não cresceu mais porque o consumo de bens recuou 4,4%, retirando 1,1 ponto percentual do crescimento.

O que machucou mesmo o desempenho no segundo trimestre foi a desacumulação dos estoques, que retirou 2 pontos percentuais do crescimento. Isto é, se a demanda tivesse que ser atendida pela produção com estoques constantes, o crescimento, em vez de negativo em 0,9%, teria sido positivo em 1,1%. De qualquer forma, o segundo trimestre de 2022 apresentou queda consistente do investimento residencial, de 14%, e do consumo de bens duráveis, de 2,6%, dois itens sensíveis ao aperto das condições financeiras que ocorreu desde novembro de 2021.

 

2019 T4

2020 T2

2021 T2

2022 T2

        Produto interno bruto

100

90

101

102

Consumo das famílias

100

89

103

105

    Bens

100

97

118

114

        Bens duráveis

100

96

129

122

        Bens não duráveis

100

98

112

110

    Serviços

100

85

97

101

Formação bruta de capital do setor privado

100

83

101

110

    Formação bruta de capital fixo

100

91

104

106

        Não residencial

100

89

101

105

            Estruturas

100

85

80

75

            Equipamento

100

84

106

109

            Propriedade intelectual

100

98

109

120

        Residencial

100

96

116

110

Exportações líquidas

100

91

147

174

    Exportações

100

76

90

96

        Bens

100

76

97

102

        Serviços

100

76

79

86

    Importações

100

80

104

116

        Bens

100

83

110

120

        Serviços

100

68

83

100

Consumo e investimento do setor público

100

102

102

100

Para entender melhor o movimento da atividade da economia americana, é útil olhar os componentes da demanda agregada em nível. A tabela acima ilustra. Na tabela, o nível do PIB americano e dos seus componentes foi normalizado em 100 para o quarto trimestre de 2019, imediatamente anterior à epidemia.

No segundo trimestre de 2022, a economia estava 2% acima de sua posição no quarto trimestre de 2019. Note-se o enorme desequilíbrio da recuperação da economia americana após a queda súbita do segundo trimestre de 2020. O consumo de bens duráveis no segundo trimestre de 2022 encontra-se 22% acima, e  o investimento residencial, 10% acima.

A coluna avalia como natural a queda do investimento residencial e do consumo de bens duráveis após recuperação tão desequilibrada. Penso que podemos assistir a recuos adicionais desses dois componentes da demanda agregada por alguns trimestres. Porém, no início de 2023, investimento residencial e consumo de bens duráveis devem se estabilizar, e iniciar nova elevação a partir de nível um pouco mais baixo.

A aposta do parágrafo anterior se dá num contexto no qual o mercado tem entendimento distinto do desempenho da economia americana. Avalia que o aperto já ocorrido nas condições financeiras desacelerará a atividade econômica o suficiente para produzir a elevação do desemprego requerida para trazer a inflação para a meta. Para o mercado, as duas quedas do PIB no primeiro semestre são o início de leve recessão que desinflacionará a economia. Dado esse entendimento, a curva de juros aponta pico de Fed Funds (FF), a Selic deles, em 3,4% na virada do ano e início de ciclo de baixa já no segundo trimestre de 2023.

O problema com essa percepção do mercado é que supõe que será possível desinflacionar a economia sem que os juros sejam reais em nenhum momento. Para que isso ocorresse, seria necessário que a taxa neutra de juros fosse ao redor de -2% ou -3%, o que está totalmente fora das estimativas existentes. Se o mercado continuar a pensar dessa forma, levando os juros de mercado a permanecerem baixos, a economia voltará a crescer em algum momento na virada de 2022 para 2023.

Para a coluna, será necessária uma política monetária mais contracionista para que o serviço de controlar a inflação seja feito. Ao longo do segundo semestre de 2022 ou no início de 2023, esse fato ficará claro. A recessão americana ficará para o segundo semestre de 2023 ou para a virada de 2023 para 2024. Esta é a aposta da coluna.


Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de agosto de 2022.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.