Como o Brasil deve agir diante das reavaliações positivas da política industrial
Em política industrial, Estado não precisa saber de antemão o que dará certo, mas sim identificar e interromper o que está dando errado. No caso do Brasil, é importante ter protocolos rigorosos baseados em experiências passadas.
A política industrial é um tipo de política pública econômica cuja reputação teve grandes oscilações ao longo da história. As práticas intervencionistas saíram em alta da segunda guerra mundial. Nas primeiras décadas do pós-guerra, a política industrial ainda gozava do prestígio da revolução keynesiana, que por meio da ação do Estado logrou tirar o mundo do poço da Grande Depressão. Adicionalmente, a bem-sucedida experiência do plano Marshall de reavivar a economia alemã e europeia no pós-guerra, além da reconstrução nacional em outros países, como o Japão, também atestava a capacidade dos governos de liderarem ambiciosos projetos econômicos. Mesmo o crescimento da União Soviética sob a égide da propriedade estatal dos meios de produção era mais bem avaliada até a década de 70. E, finalmente, diversos países emergentes importantes, como Índia, Brasil, Egito e outros, experimentavam modelos de nacionalismo econômico baseado na substituição de importações.
Já na década de 80, entretanto, uma quantidade muito grande de insucessos e crises, como precisamente em países como Brasil, Índia e do Oriente Médio, levaram a um crescente ceticismo em relação às políticas industriais. Também foi nessa época que o liberalismo econômico se reergueu, com a crítica aos excessos keynesianos que levaram à estagflação dos anos 70. Como aponta Bráulio Borges, um dos pesquisadores do FGV IBRE que participou das discussões na base da elaboração desta Carta, “a política industrial virou a política pública que não podia ser nomeada”.
Samuel Pessoa, do FGV IBRE, que também participou da discussão, nota que, do ponto de vista teórico, o institucionalismo de Douglass North tirou o foco das falhas do mercado como impeditivas do desenvolvimento (visão que classicamente justifica a política industrial) e apontou problemas de economia política e eficiência microeconômica. Do ponto de vista mais concreto, William Easterly, no conhecido livro “The Elusive Quest for Growth”, documentou em mais detalhes tentativas mal sucedidas de decolagem econômica lideradas pelo Estado e apoiadas por instituições multilaterais como o Banco Mundial – levando inclusive à crise da dívida externa que abalou profundamente o Brasil e diversos países latino-americanos.
Seguiram-se os tempos do Consenso de Washington, com seu foco em equilíbrio macroeconômico e reformas microeconômicas (“stabilize, liberalize and privatize”). Apesar de alguns avanços, o Consenso tampouco logrou fazer com que boa parte das economias emergentes superasse de forma definitiva a armadilha da renda média. Com diversas crises financeiras de impacto global a partir dos anos 90, o cânone liberal voltou a ser questionado, e as políticas industriais começaram a ser reavaliadas. Em especial, à luz do sucesso dos tigres asiáticos, que cumpriam tanto boa parte da cartilha ortodoxa e institucional, como equilíbrio macroeconômico e grandes avanços na qualidade educacional, como também eram praticantes de política industrial. Analistas de viés mais liberal tendiam a ver o sucesso asiático como se dando “apesar” da política industrial, enquanto os desenvolvimentistas o viam como “por causa” da política industrial.
Pessoa chama a atenção para o 63º capítulo do 5º volume do Handbook of Development Economics, de 2010, a penúltima grande revisão da economia mainstream sobre o estado da arte do conhecimento sobre as políticas industriais. Na sua interpretação, de forma sintética, o Handbook trata da política industrial com a mesma visão de falhas de mercado que já estava em estudos pioneiros do tema, como a defesa da intervenção estatal na economia pelo economista germano-americano Friedrich List no século XIX. Os temas básicos do Handbook são o argumento da indústria infante (de List), a relação entre comércio internacional e crescimento econômico, o papel do investimento estrangeiro direto no desenvolvimento e a questão da diversificação da economia. Como escreveu Pessoa em recente coluna Ponto de Vista, da Revista Conjuntura Econômica, “a política industrial ainda estava relegada a um capítulo menor da teoria do comércio internacional”.
Mas o economista do FGV IBRE vê novidades no artigo “A Nova Economia da Política Industrial”, a ser publicado na Annual Review of Economics, e que pode ser considerado a última grande revisão do tema na literatura econômica. Ele nota que o novo não está tanto nos argumentos em prol da política industrial, mas sim na melhor mensuração desse tipo de política pública (com ajuda de inteligência artificial) e em trabalhos muito bem feitos, em termos de determinação de causalidade, que mostram sucesso de políticas industriais em casos específicos.
Assim, Nathaniel Lane mostrou empiricamente que a política do presidente Park Chung Hee da Coreia do Sul, entre 1971 e 1979, de internalizar a indústria pesada de petroquímica, siderurgia e naval, alterou de forma bem-sucedida a estrutura industrial coreana. Lane conseguiu estabelecer a causalidade pelo fato de a política industrial de Hee ter sido iniciada de forma exógena à economia (reação à decisão geopolítica dos Estados Unidos), o que também ocorreu em relação ao seu encerramento, com o assassinato de Hee em 1979. Outro notável estudo recente é o de Réka Juhász, que estabeleceu que o bloqueio continental napoleônico, também um evento exógeno à história industrial francesa, levou a um surto de desenvolvimento manufatureiro no norte do país que mudou o perfil produtivo dessas regiões de forma positiva e permanente.
O artigo “A Nova Economia da Política Industrial”, de Juhász, Lane e Dani Rodrik, também indica como a inteligência artificial permitiu que se medisse muito melhor a prática de políticas industriais. E, com base nesses levantamentos, pode-se constatar com precisão que, a partir de 2017, houve uma retomada das políticas industriais pelos países, com destaque para o mundo avançado, reforçada pelas agendas da descarbonização, da desglobalização e da segurança produtiva, na esteira de eventos disruptivos como a pandemia e a guerra da Ucrânia.
Nessa nova abordagem da política industrial, Pessoa destaca dois argumentos favoráveis à intervenção que considera muito persuasivos. O primeiro é que não há razão para a política industrial ser proscrita da caixa de ferramentas das políticas públicas em geral pelo risco de captura por grupos de interesse especial. Na verdade, qualquer política pública, seja macroeconômica, de saúde e educação, de investimento em infraestrutura, defesa da concorrência ou comércio internacional, sofre riscos de captura. Esse é um risco que deve ser levado em conta em qualquer tipo de iniciativa do governo, e não tem razão para que apenas um deles, a política industrial, seja considerado carta fora do baralho.
O segundo argumento se contrapõe à visão de que os atributos necessários para se formular e implementar uma política industrial estão acima da capacidade do Estado, porque o “burocrata não tem condição de saber melhor que o empresário que negócio dará certo”. A falha desse raciocínio é que o Estado não precisa saber de antemão o que dará certo, inclusive porque, pela própria natureza do risco que se toma para diversificar a economia e criar novas especializações produtivas, necessariamente várias tentativas darão errado para que algumas deem certo. Nesse sentido, bem mais importante – e dentro das capacitações estatais – é a capacidade de diagnosticar cedo uma experiência que deu errado, e parar de gastar recursos públicos com ela. Naturalmente, é preciso também um ambiente socioinstitucional e político em que se consiga interromper políticas públicas setoriais que, por definição, beneficiam algum grupo em particular (mas não necessariamente a sociedade como um todo).
Outro ponto muito importante realçado por Pessoa na moderna discussão de política industrial é aquele levantado pelo sociólogo Peter Evans, que cunhou a expressão “autonomia embutida” para definir uma organização interna virtuosa no moderno Estado desenvolvimentista. A autonomia embutida refere-se a uma burocracia funcional, meritocrática, adequadamente remunerada e bem-intencionada, que dirige a intervenção estatal com eficiência e lisura. Normalmente, entretanto, se imaginaria que um corpo burocrático desse tipo teria de ser bem isolado de interações com o setor privado que trouxessem o risco de captura. Evans mostra justamente que a eficácia da política industrial depende, ao contrário, de que essa burocracia esteja bem imbricada no processo decisório do setor privado, de forma a compreender as suas necessidades e estabelecer um canal de “negociação e renegociação contínuas de objetivos e políticas”. Assim, dois componentes que por vezes são vistos como contraditórios, isto é, a independência e o envolvimento em relação ao setor privado, convivem e combinam-se numa burocracia desenvolvimentista com autonomia embutida.
Embora concorde e aprecie esses novos pontos sobre a questão da política industrial que têm chegado ao mainstream do debate econômico, Pessoa ainda vê algumas omissões na discussão trazida pela última revisão mencionada acima. Ele chama a atenção para o debate entre Justin Lin e Ha-Joon Chang, em que o primeiro aponta que a bem-sucedida política industrial do Leste Asiático não ocorreu à revelia das vantagens comparativas – isto é, não se tratou de intervenção na economia para mudar a estrutura produtiva independentemente das vocações determinadas pelas vantagens comparativas, o que seria a visão clássica dos objetivos da política industrial. Na verdade, a política industrial do Leste Asiático pode ser vista como uma intervenção para acelerar a readaptação da estrutura produtiva a vantagens comparativas em acelerada mutação, à medida que aqueles países acumulavam velozmente capital físico e humano, o primeiro na esteira da poupança doméstica daquelas sociedades e o segundo como consequência de fantásticos avanços educacionais.
Assim, mesmo nos países mais bem-sucedidos em suas experiências de política industrial, é preciso cautela antes de se pensar que é possível promover pela intervenção governamental qualquer mudança na estrutura produtiva julgada adequada pelos planejadores econômicos. No caso brasileiro, o caso para a política industrial fica ainda mais restrito, na visão de Pessoa, por algumas razões. A primeira é que não há o processo acelerado de mudança de vantagens comparativas que justifique a intervenção adaptadora do Leste Asiático. No Brasil, a poupança doméstica permanece baixa, condicionando o juro elevado e a tendência à apreciação do câmbio. Há carência tanto de capital físico quanto humano, no segundo caso pelo lento avanço da qualidade da educação, a partir de níveis comparativamente reduzidos. Adicionalmente, os recursos públicos para intervenção são escassos, pela competição com os gastos em transferências e benefícios sociais e previdenciários de um Estado de Bem Estar que os países do Leste Asiático optaram por não adotar. Finalmente, o Brasil é o país do “direito adquirido” e de programas de subsídio que nunca terminam, com um ambiente político e institucional em que é difícil para o Estado descontinuar políticas que deram errado.
Levando em conta essas características, Pessoa defende que as políticas industriais brasileiras optem preferencialmente por apoio a setores alinhados às vantagens comparativas, como no caso do conjunto de políticas voltadas ao desenvolvimento do agronegócio, com destaque para o papel da Embrapa (provavelmente a política industrial brasileira mais bem-sucedida). E, nos casos mais raros em que se tenta política industrial à revelia das vantagens comparativas, como o sucesso da Embraer, deve-se focar, como de fato ocorreu, em recortes muito cuidadosos – a empresa especializou-se em algumas etapas, projeto e montagem, de um segmento específico, aviões médios de linhas regionais –, acoplados a projetos educacionais (o ITA), e fortemente voltados ao mercado externo. Outras características do caso da Embraer que Pessoa vê como passíveis de serem recomendações de um protocolo nacional de políticas industriais são a escala, que parte do pequeno para o progressivamente maior, e a participação desde o ponto de partida nas cadeias globais de valor.
O mais importante, para o pesquisador do FGV IBRE, é que a experiência pregressa do Brasil com política industrial seja profunda e minuciosamente avaliada nos seus muitos fracassos (como várias tentativas de erguer a indústria naval) e alguns sucessos, para que desta avaliação emerjam protocolos inteligentes e rigorosos que norteiem a intervenção governamental no setor produtivo do País.
Borges, por sua vez, chama a atenção para alguns pontos que considera relevantes para a discussão sobre política industrial no Brasil. Ele nota que política industrial, a partir da tradução da expressão do inglês, índica por definição intervenções setoriais (e não só em manufaturas), distintas de políticas horizontais que beneficiam todos os setores como melhoras gerais do ambiente macro e microeconômico, abertura comercial etc. Dessa forma, a política industrial é particularmente suscetível à captura, por sua caraterística de ser formulada de forma “tailor-made” para cada setor, empresa, microrregião etc.
Por outro lado, particularmente para um país vulnerável à “maldição dos recursos naturais” como o Brasil, a política industrial é uma ferramenta útil para tentar promover a diversificação produtiva, reduzindo a dependência econômica em relação aos setores primários (que gera maior volatilidade macroeconômica e mesmo involução institucional, como documenta a literatura sobre “resource curse”). O grande desafio é que os ganhos da intervenção setorial superem os custos, do ponto de vista do bem estar da sociedade. Trata-se também de um balanço delicado entre as falhas de mercado e as falhas de governo ao tentar consertar as primeiras.
Finalmente, na questão de como tornar um pouco menos escassos os recursos públicos para a política industrial, nos casos em que ela é recomendável, Pessoa e Borges concordam em que uma possível fonte é a redução dos subsídios e benefícios à agropecuária e ao agronegócio em geral. Em princípio pode parecer uma recomendação indevida, já que esses são setores em que sabidamente o apoio governamental “deu certo”. Mas o ponto dos pesquisadores é precisamente esse. Por ter maturado plenamente como setor por excelência em que o Brasil atinge níveis globalmente impressionantes de produtividade e competitividade, o agronegócio pode abrir mão, ao menos parcialmente, de subsídios explícitos, implícitos e renúncias de receitas para produção e consumo desses produtos. Borges estima em pelo menos R$ 85 bilhões anuais o volume desses subsídios e renúncias, que poderiam ser redirecionados para tentativas bem pensadas, e com metas e limites bem estipulados, de diversificação produtiva.
Algo semelhante vale para a extração de petróleo e gás, setor hoje altamente competitivo no Brasil em função de uma política industrial bem-sucedida realizada via Petrobras nas últimas décadas, mas que ainda recebe subsídios relevantes no âmbito de várias políticas, como o Repetro.
Esta é a Carta do IBRE de janeiro/2023, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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