Como proteger da forma certa motoristas e entregadores de aplicativos
Trabalhadores de aplicativos em transportes, motoristas ou entregadores, eram 1 milhão ao fim de 2022, e enfrentam dificuldades. Mas é ao se analisar questão previdenciária que tema vira importante problema de política pública.
Um dos grandes desafios das políticas públicas na era atual é lidar com as alterações no mercado de trabalho causadas por mudanças tecnológicas profundas, e aceleradas recentemente pela adaptação de empresas e trabalhadores para conviver com a pandemia. Com destaque, o trabalho de motoristas e entregadores ligados a plataformas na Internet, como o UBER e diversos serviços de entrega de refeições e produtos, traz questões inadiáveis relacionadas aos direitos trabalhistas e previdenciários dessas ocupações. No Brasil, um grupo de trabalho envolvendo governo, plataformas e trabalhadores que as utilizam para prover seus serviços profissionais tentou recentemente encontrar terreno comum para promover mudanças, especialmente previdenciárias, nas regras relativas a esse tipo de atividade.
Um módulo especial da PNAD Contínua (PNADC) de dezembro de 2022 buscou investigar justamente essa parte da população ocupada (PO) cujo trabalho envolve o uso das plataformas da internet. Encontrou-se que 2,1 milhões de trabalhadores realizavam trabalhos por meio de plataformas digitais de serviços ou obtinham clientes e efetuavam vendas por meio de plataformas de comércio eletrônico no trabalho principal. A isso o IBGE comparou o total da PO de 14 anos de idade ou mais, exclusive funcionários públicos e militares, que totalizou 87,2 milhões na mesma data. Daquele total de 2,1 milhões de trabalhadores “plataformizados”, 1,5 milhão trabalhavam por meio de aplicativos de serviços, e 628 mil utilizavam plataformas de comércio eletrônico.
O foco desta Carta são as pessoas que trabalham por meio de aplicativos no setor de transportes, sejam motoristas ou entregadores. Esse grupo, na PNADC de dezembro de 2022, totalizava 1 milhão de trabalhadores, dentro do total de 1,5 milhão ligados a aplicativos de serviços.
Outro ângulo dos resultados do módulo especial da PNADC contém alguma dupla (ou múltipla) contagem, pois contabiliza o tipo de aplicativo que o trabalhador usava, e um ocupado pode eventualmente utilizar mais do que um. Nesse enfoque, no final de 2022, 206,7 mil ocupados trabalhavam com aplicativos de táxi (99táxi, aplicativo de cooperativa e prefeitura etc.); 703,8 mil com aplicativos de transporte particular diferente de táxi (Uber, 99 etc., serviços regionais e locais etc.); 588,6 mil com aplicativos de entrega de comida, produtos etc. (IFood, Rappi, Loggi, outros aplicativos regionais e locais etc.); e 196,9 mil com aplicativos de prestação de serviços gerais ou profissionais (GetNinjas, Parafuzo, Freelancer, Workana, 99freela etc.).
É relevante notar que as duas primeiras classificações (aplicativos de táxi e de transporte particular não táxi) só incluem trabalhadores de transporte, mas as duas outras (entrega de comida e produtos, e prestação de serviços pessoais ou profissionais) abrangem também outras categorias. Por exemplo, trabalhadores de comércio e de ‘alojamento e alimentação’ têm atividade vinculada a aplicativos de entrega de comida e produtos. Provavelmente, trabalham em empresas que atendem pedidos por aplicativo, sendo encarregados não da entrega, mas sim de comercializar os produtos ou preparar as refeições. Assim, quando se tomam apenas os trabalhadores do setor especificamente de transporte que usam aplicativos de entrega de comida e produtos, o número total registrado pela PNADC cai para 252,2 mil. Já no caso de aplicativos de serviços pessoais ou profissionais, os trabalhadores de transporte nessa categoria são 43,9 mil.
A partir dos microdados do módulo especial da PNADC sobre as plataformas, pesquisadores do FGV IBRE (Fernando Veloso, Fernando de Holanda Barbosa Filho e Paulo Peruchetti) traçaram o perfil sociodemográfico dos profissionais que trabalham por meio de plataformas digitais no setor de transportes. Esses perfis foram comparados com o da PO como um todo. Ao contrário dos resultados do módulo especial da PNADC, que usou como base de comparação a PO com exclusão de funcionários públicos e militares, o perfil do FGV IBRE utilizou a PO total.
A seguir, focaremos nos 703,8 mil trabalhadores de aplicativo de transporte particular de passageiros ‘não-táxi’ (a partir da agora, vamos nos referir a eles como motoristas de aplicativo), dos quais uma parcela de 92,7% dirige automóveis e caminhonetes, e 6,9% dirigem motocicleta; e nos 252,2 mil entregadores de comida e produtos, dos quais 73,6% utilizam motocicletas, cerca de 7% usam bicicleta e 16,4%, automóveis, táxis e caminhonetes.
Uma primeira característica dos trabalhadores plataformizados de transportes captada pela pesquisa do FGV IBRE com base no módulo da PNADC é que eles são esmagadoramente do sexo masculino. Dentre os motoristas de aplicativo, homens são 93,3% e, dentre os entregadores, 96,4%. Já na PO total do Brasil, homens são 57,1%.
A composição etária traz uma primeira diferença importante entre o típico motorista de aplicativo e o típico entregador de comida e produtos. A idade média do primeiro grupo, de 39,6 anos, é próxima daquela da PO, de 39,2. Mas os entregadores têm uma idade média bem inferior, de 32,8 anos. Entre os entregadores, 46,4% têm até no máximo 29 anos, comparado a 27,2% na PO e apenas 20,9% entre os motoristas de aplicativo.
Em termos educacionais, a escolaridade média dos motoristas de aplicativo é de 11,8 anos, superior à da PO, de 11,2. Já a dos entregadores, de 11,3 anos, é bem próxima daquela da PO. A menor escolaridade média dos entregadores pode se explicar parcialmente pela juventude, já que uma parte mais significativa deles ainda pode estar estudando.
Uma diferença educacional que chama a atenção é que a parcela de trabalhadores de aplicativo com ensino médio completo ou superior incompleto – 65,5% para os motoristas, e 65% para os entregadores – é muito maior que a da PO como um todo, de 42,2%. De forma congruente, há subrepresentação dos dois grupos nos extremos da distribuição, na comparação com a PO. Na PO, 35,1% dos trabalhadores só estudaram no máximo até o médio incompleto, proporção que cai para 29,3% entre entregadores; e 22,4% entre os motoristas. Já 22,8% da PO têm ensino superior completo, comparado a 5,3% para entregadores; e 12,2% para motoristas.
Em termos de renda, os motoristas de aplicativo têm menos profissionais ganhando até dois salários mínimos (59,7%) ou ganhando mais que cinco salários mínimos (1,9%) quando comparados com a PO, com respectivamente 67,8% e 7,2%. Na faixa de mais de dois e menos de cinco salários mínimos, os motoristas têm 38,4%, e a PO, 25%.
Mas salta aos olhos que os entregadores, em termos de renda, estão pior em todos os ângulos. Na comparação com a PO, estão sobrerepresentados entre os que ganham até dois salários mínimos (75,3%) e subrepresentados em termos de 2-5 salários mínimos (23,3%) e, sobretudo, de mais de 5 salários mínimos, com apenas 1,4%. Em termos médios, a renda da PO é de R$ 2.727 mensais, maior que a dos motoristas de aplicativo (R$ 2.367) e bem maior que a dos entregadores (R$ 2.011).
Pela análise do perfil socioeconômico e demográfico dos trabalhadores de transporte por aplicativo realizada até agora, já fica claro que se trata de um contingente que enfrenta dificuldades. No caso dos dois grupos em foco nesta Carta, os motoristas têm maior escolaridade média, mas menor rendimento médio, comparados à PO. Já os entregadores têm escolaridade equivalente (ligeiramente maior) e rendimentos bem menores do que os da PO.
Mas é quando se analisa a questão previdenciária que o tema se torna um importante problema de política pública. Enquanto 64,7% da PO contribui para a Previdência, essa proporção cai para 22,6% nos motoristas de aplicativo e 25,4% entre os entregadores.
Há evidências de que os trabalhadores de transporte em aplicativo contribuem para a Previdência particularmente pouco mesmo quando comparados a trabalhadores de plataformas digitais fora da área de transporte. Mais acima, esta Carta notou que, quando se analisam os trabalhadores ligados a aplicativos de entrega de comida e produtos, há um contingente nessa classificação que não é de transporte, como por exemplo, os de comércio. Esse grupo específico tem uma taxa de contribuição para a Previdência de 70%. Há também os de alojamento e alimentação, com 54,5%. Já dentre os de transporte, isto é, os entregadores propriamente ditos, só 25,4% contribuem, como já mencionado.
Uma vez constatada a situação nada privilegiada dos trabalhadores de transporte por aplicativo em termos socioeconômicos e sua baixa contribuição previdenciária, os economistas do IBRE envolvidos na confecção desta Carta, mencionados acima, desenvolveram uma visão geral sobre o tema e têm algumas recomendações de princípios a oferecerem ao debate sobre o tema no seu aspecto previdenciário.
Em particular, a baixa cobertura de Previdência exige um debate mais profundo sobre programas previdenciários que poderiam dar maior proteção aos trabalhadores por plataforma no Brasil. É importante ressaltar, nesse contexto, que a contribuição dos trabalhadores de plataforma não é facultativa, mas mandatória. A contribuição é obrigatória para todos os trabalhadores que exercem atividade remunerada, seja com ou sem vínculo empregatício (lei 8.213 de 1991). São considerados contribuintes obrigatórios do INSS os empregados com carteira assinada, empregados domésticos, contribuintes individuais (autônomos), trabalhadores avulsos e segurados especiais. Ou seja, a legislação corrente demanda a contribuição do trabalhador de aplicativo como de qualquer outro ocupado, e o País já possui leis que permitem a incorporação desses trabalhadores à Previdência Social.
Especificamente em relação ao tema desta Carta, em 2018 o Congresso aprovou legislação que exige que os motoristas de plataformas digitais se registrem na Previdência Social como contribuintes individuais (Lei 13.640). E, em 2019, um decreto do governo federal (Decreto 9.792) estabeleceu que motoristas de plataforma também poderão se cadastrar como MEI.
No entanto, mesmo essa opção barata de contribuição do MEI, de somente 5% do salário mínimo (embora dando direito a um benefício previdenciário de apenas um salário mínimo), não atraiu os trabalhadores de transporte plataformizados, como fica evidente nas baixas proporções de contribuintes apresentadas nesta Carta. Não à toa, segundo Camelo et al. (2022)[1], há 126 projetos legislativos no Congresso relativos à proteção social e trabalhista dos trabalhadores de plataformas digitais no Brasil, incluindo 24 propostas relativas à seguridade social desse contingente, com foco em entrega e transporte de passageiros.
Para os economistas do IBRE, qualquer mudança previdenciária voltada aos trabalhadores por aplicativo deveria incluir benefícios de risco, como auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez, por motivo óbvio: tanto motoristas quanto entregadores por aplicativo se submetem na sua atividade profissional a riscos não desprezíveis, inerentes à atividade de transporte.
Outro ponto importante é a solvência previdenciária. A alíquota de contribuinte individual, de 20%, deveria ser vista como um piso para os plataformizados, porque mesmo ela hoje embute subsídios aos trabalhadores que a pagam. O ideal é que houvesse contribuições tanto do trabalhador quanto das plataformas, e que fossem deduzidas, ambas, de forma automática, pelas próprias plataformas. Pensando em termos de economia comportamental, deduções previdenciárias automáticas por parte de empresas (no caso, de plataformas) podem induzir grau mais elevado de contribuição entre os trabalhadores.
Também seria uma boa ideia separar a remuneração bruta do valor líquido recebido pelo trabalhador de transporte com aplicativos. Evidentemente, há custos de aquisição e manutenção de veículos, combustível etc., que têm que ser deduzidos da receita bruta para que se chegue ao rendimento efetivo de cada trabalhador dessa área. Como não seria nada prático fazer um cálculo caso a caso desses custos, o ideal seria arbitrar um percentual da receita considerada como líquida, e fazer as contribuições automáticas pelas plataformas (tanto da parte delas mesmos como da parte do trabalhador) incidirem sobre essa parte líquida do faturamento.
Finalmente, e de especial importância, é o fato de que a contribuição deveria focar na oferta de benefícios superiores ao salário mínimo. A razão é que o salário mínimo parece pouco atraente como benefício previdenciário para os trabalhadores por aplicativo em transporte, em particular os motoristas, já que, mesmo tendo a oportunidade barata (e fortemente subsidiada) de garantir o salário mínimo com a pequena contribuição do MEI, a enorme maioria opta por não o fazer.
Os pesquisadores do FGV IBRE lembram que, mesmo que o número total de trabalhadores de plataformas, comparado com a PO, ainda possa não parecer dos mais impressionantes (embora esteja muito longe de insignificante), o impulso tecnológico da economia contemporânea é no sentido de que essas proporções aumentem. O problema de condições difíceis de trabalho acopladas à cobertura previdenciária muito baixa, portanto, tende a se agravar.
A hora certa de uma resposta a esse desafio é agora. Mas essa resposta deve ser dada com amplo conhecimento do problema, de forma sustentável sob o ponto de vista fiscal e adequada tanto para a geração de emprego por parte das plataformas quanto em relação aos direitos socioeconômicos dos trabalhadores.
Esta é a Carta do IBRE de dezembro/2023, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Camelo, A., Silveira, A., Bispo, A., Bícego, B., Klafke, G., Aquino, G. e Pasqualeto, O. (2022). Futuro do Trabalho e Gig Economy: Questões Regulatórias sobre Tecnologia e Proteção Social. FGV Direito São Paulo.
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