Macroeconomia

Como usar os militares no combate à Covid-19?

3 abr 2020

A pandemia global da Covid-19 é potencialmente catastrófica, requerendo, portanto, ação imediata e efetiva de governos e cidadãos, sob pena de aumentar enormemente a taxa de letalidade associada a essa doença. Em 18 de março, o governo brasileiro publicou uma portaria colocando os militares em prontidão para diversas atividades na resposta governamental à crise. O Presidente Jair Bolsonaro chegou a considerar a decretação o Estado de Sítio, o que potencialmente envolveria a presença de tropas policiando as ruas para que as pessoas não saiam de suas casas e violem protocolos de quarentena e distanciamento social.

Dito isso, em que é recomendável que se utilize os militares na presente emergência causada pela Covid-19? Governos precisam ser enormemente cuidadosos com o que pedem de seus militares, sob pena de ordenar tarefas em que soldados serão ineficientes, gerando consequências perniciosas para os cidadãos.    

A função precípua das Forças Armadas é a defesa contra ameaças externas. Em casos de emergência, elas também servem como reserva estratégica de capacidade estatal. São instadas por governos a atuarem na repressão de levantes, no restabelecimento da ordem pública e na ajuda humanitária. Dada a necessidade de preencher a lacuna de capacidade estatal numa crise como a atual, os governos têm em mãos um instrumento político valioso. Afinal, os militares possuem um grande contingente de servidores públicos distribuídos em todo o território nacional, operando em formações de combate, com enorme capacidade logística, envolvendo planejamento e distribuição de suprimentos e materiais e operando e sob um rígido sistema de comando e controle, regido pelos princípios da hierarquia e disciplina, como bem mostra um recente livro de David Pion-Berlin (Military Missions in Democratic Latin America).

É necessário refletir sobre a efetividade do emprego dos militares nessa crise, de modo a se evitarem abusos aos direitos humanos e se promover o uso eficiente dos recursos públicos. Especialistas argumentam haver considerável probabilidade de sucesso quando as novas missões se baseiam em capacidades organizacionais e estruturais compatíveis com tarefas precipuamente militares. Em outras palavras, sempre que a liderança política pede dos militares algo que já faz parte de seu conjunto de ferramentas, as Forças Armadas tendem a ter um bom desempenho. Por outro lado, quando os militares têm que ir muito além de seu treinamento, doutrina e experiência prévia, será baixa a eficácia das Forças, não sendo recomendável seu emprego.

De fato, há uma série de tarefas a serem consignadas aos militares para mitigar os efeitos da Covid-19. Portanto, convém ordená-las em termos de eficácia. São elas (1) a segurança das fronteiras, (2) a construção de hospitais de campanha e triagem, (3) o transporte e distribuição de suprimentos para hospitais e cidadãos, (4) a reorientação das indústrias de defesa a para produção de medicamentos e suprimentos, (5) os cuidados médicos de alta complexidade, e (6) as missões de policiamento com o fito de manter quarentenas e o distanciamento social.

A segurança das fronteiras é o que há de mais próximo da defesa contra ameaças externas, uma vez que são raros os conflitos interestatais na América Latina. Assim sendo, a eficácia prevista em tais missões, no contexto de prevenção de fluxos migratórios que possam impedir esforços de quarentena, é alta. A montagem de hospitais de campanha é tarefa para a qual as Forças Armadas não somente são treinadas e equipadas, mas que também conseguem empreender aproveitando-se de enorme memória organizacional. Logo, há alta eficácia nesse tipo de tarefa. O transporte e a distribuição de suprimentos para hospitais e cidadãos apresenta um cenário curioso: os militares possuem grande capacidade logística – afinal, é com logística eficiente que os modernos conflitos armados são vencidos. No entanto, a distribuição de suprimentos será tanto mais eficaz quanto mais centralizada em hospitais e grandes armazéns for. Portanto, pode não ser uma boa ideia determinar que soldados distribuam suprimentos diretamente aos cidadãos.

Três tarefas em especial são as mais distantes de atividades tipicamente militares e, portanto, tendem a gerar menor eficácia. Primeira. é prerrogativa governamental ordenar que indústrias de defesa produzam medicamentos, como fez o presidente Bolsonaro. No entanto, o uso de tais indústrias para produtos não eminentemente militares pode produzir problemas como ineficiência nos gastos públicos, perversão de função e fortalecimento político indevido dos militares. Segunda, às Forças Armadas pode se dar a missão de prestar cuidados médicos. Aqui, cabe uma distinção. As Forças Armadas possuem profissionais de saúde de altíssimo nível, mas sua função precípua é exercer a medicina em combate, não sendo recomendável que se envolvam em assistência médica de alta complexidade. Terceira, há a possibilidade de emprego dos militares em missões de policiamento em caso de operação de garantia da lei e da ordem ou decretação do Estado de Sítio, missões previstas na Constituição e já velhas conhecidas do Rio de Janeiro. Caso não seja observada máxima atenção a protocolos e não haja escrutínio por parte dos órgãos de controle, abre-se uma enorme janela para violações de direitos humanos. Enquanto policiais devem usar gradual e limitadamente a força, militares têm como atividade-fim a eliminação de inimigos sob a direção política do governo. Em democracias sólidas, essas funções não se podem misturar. Militares no policiamento, só em casos extremos e sabendo-se dos riscos aí envolvidos. A última coisa que se quer – nesse grave momento – é que os militares repliquem algumas falhas atrozes cometidas quando instados a policiar as ruas das comunidades no Rio de Janeiro, enquanto a população adoecida e encastelada padece desamparada.

Em conclusão, governos que podem contar com uma corporação profissional e disciplinada, com as vantagens logísticas que as Forças Armadas possuem, sentem-se tentados a, em momentos de crise, usá-las como reserva de capacidade estatal, determinando que estas ajam em diversas tarefas que não a sua função precípua. Seu emprego não deve, no entanto, ser uma panaceia. Algumas tarefas podem gerar consequências perniciosas para os cidadãos e para o Erário. Tarefas mais próximas das atividades que já são função precípua das Forças Armadas serão executadas de maneira mais eficaz. Quanto mais distante da memória operacional que já possuem as Forças, menos recomendáveis serão certas missões. Assim, missões de segurança das fronteiras, a construção de hospitais de campanha e triagem médica e o transporte e a distribuição de suprimentos são as tarefas mais recomendáveis a se pedir da caserna nessa crise. De maneira complementar, há que ter cuidado ao se tentar reorientar a indústria de defesa, prestar assistência médica de alta complexidade e enorme cuidado ao se ordenar que os militares exerçam missões de policiamento na eventual decretação do Estado de Sítio.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV

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