Energia

Como vencer a miopia dos subsídios cruzados no Brasil

14 dez 2023

Há esgotamento do modelo de financiamento de políticas distributivas pela cobrança aos usuários. Parte importante desses subsídios hoje se dirige ao financiamento de tecnologias que já são competitivas, como geração distribuída.

Em torno das discussões da COP 28, avançaram no Congresso propostas legislativas para marco para hidrogênio e eólicas offshore (OW). No esteio desta última, um conjunto de emendas-jabuti foi apensada ao projeto de lei (PL 11.247). Os benefícios se estenderiam –  não surpreendentemente – a quem não precisa ou merece, caso do carvão, micro e minigeração distribuída. A reação da sociedade veio na forma de artigos e manifestos da mídia. Mas produzir resultado e mudança demanda mais que isso, como discuto nesse artigo.

Reforma de subsídios é coisa séria e objeto de preocupação há tempo. A traumática Medida Provisória 579/12 (pacote de eletricidade de Dilma Rousseff) foi motivada pela busca de competitividade – políticas distributivas pressionavam preços e tarifas, comprometendo a competitividade da indústria e prejudicando a economia.  Crise vai, crise vem e as distorções se empilham, agravando esse quadro. Esse é o caso das mudanças nas condições operativas no pós-579 – que resultaram em aumento de geração termelétrica cara; da recessão do biênio 2015-16; da Conta Covid; e da crise hídrica de 2021.

Apesar das boas intenções, tudo faz elevar a conta do consumidor. Os reflexos aparecem então nos subsídios cruzados que compõem a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE). A projeção desse encargo para 2024 é de R$ 37,168 bilhões, o que representa um aumento de 6,2% em relação aos R$ 34,986 de 2023.  A pole position dos itens de despesas da Conta, antes ocupada pela Conta de Consumo de Combustíveis, agora é assumida pelos descontos tarifários de uso das redes de distribuição e transmissão para tecnologias que a Agência Internacional de Energia não cansa de dizer que já são competitivas.

Em preparação para mesa redonda recente, consultei apresentação preparada em 2018 para discussão internacional sobre reformas de sistemas de subsídios de energia. O organizador, ESMAP do World Bank, tem uma facility para ajudar países que pretendem enfrentar o problema. Engraçado que as preocupações presentes à época apenas se magnificam, sem perspectivas de solução.

As reformas de eletricidade por aqui estabelecem que as receitas para financiar a operação e expansão do setor são provenientes da cobrança aos usuários. Contamos com encargos que muitas vezes são na verdade subsídios cruzados e cuja responsabilidade não compete ao contribuinte. A esmagadora maioria dos demais países faz uso extensivo de subsídios fiscais.

Estamos diante de um esgotamento desse modelo de financiamento de políticas distributivas através da cobrança aos usuários. Uma parte importante desses subsídios hoje se dirige ao financiamento de tecnologias que já se tornaram competitivas, caso da geração distribuída. Combustíveis fosseis também são beneficiados, caso do carvão – que não perde uma oportunidade de pleitear extensão de benesses.

A revolta manifestada por grupos e veiculada na imprensa, tem mérito, mas está longe de ser capaz de produzir resultado – como revela a aprovação por muito ampla maioria do PL turbinado da OW na Câmara (403 votos favoráveis e 16 contrários).

O que fazer se o modelo de financiamento se esgotou e o Congresso e Executivo não reagem à indignação manifesta? Há um conjunto de motivações importantes para uma Reforma no Sistema de Subsídios de Energia, que incluem itens como eficiência: a transição energética demanda sinais de preços adequados; ao contrário, tarifas de eletricidade muito ou ineficientemente elevadas inibem a eletrificação de outros usos, pilar da descarbonização com que o Brasil reafirma compromisso.

Em âmbito internacional o momento é adequado: phase-out dos combustíveis fosseis começa com preços que refletem custos. Mas a CDE incorpora cerca de R$ 10 bilhões de CCC, carregando muita ineficiência no consumo desses combustíveis, além de incentivos a carvão mineral. Isso sem contar que parte desses combustíveis recebe ainda benefícios fiscais há décadas – que são inclusive desconhecidos por muitos.

Outra motivação pode vir dos impactos em grupos também poderosos – tanto na MP 579, quanto nas manifestações atuais, grandes consumidores de energia pleitearam reduções de preços e aumento de competitividade.

Não menos importante, do ponto de vista distributivo é evidente o esgotamento da capacidade de pagamentos dos usuários em um regime de subsídios cruzadas que, em 2024, vai representar, apenas na CDE, R$ 50,00/MWh para usuários nas regiões Sul e Sudeste. Sabemos que grupos de menor renda e usuários em regiões de menor IDH têm sido crescentemente afligidos por pobreza energética e dificuldades de capacidade de pagamento.

Como fazer?

Reformar sistemas de subsídios não é ciência de foguete. Dá para buscar inspiração nas lições da facility do ESMAP.

Fundamental empregar um bom desenho que atente para os parâmetros chave do processo de mudança. Estes incluem escopo (alcance, ou quem se beneficia) e medidas compensatórias para proteger segmento mais vulneráveis. Regras de transição podem ser úteis para mitigar oposição, mas atenção para não as perenizar.

Boas políticas de subsídios demandam focar benefícios em quem precisa. Importante atentar para a identificação dos beneficiários – no Brasil existe já um cadastro de pessoas inscritas em programas de assistência do governo. Pode haver problemas de exclusão, mas o setor tem experiência com o tema, caso da Tarifa Social de Energia Elétrica.

A ideia é abandonar um sistema universal de subsídios como a CDE, que afeta a determinação dos preços, em favor de um regime transparente que alcança usuários que precisam.

No lado da governança do processo, é essencial alinhar o desenho da reforma ao contexto do país. As condições para a sucesso incluem engajamento ou suporte político; e senso de oportunidade – períodos pré-eleitorais e crises são momentos de escassa motivação política e potencial maior resistência da população.

Reformas envolvem custos e enfrentam oposição de grupos não necessariamente numerosos, mas que podem ser muito articulados, como ensina a tramitação do PL das OW. Políticos ou agentes da reforma precisam encontrar ou desenvolver mecanismos que deixem claros os benefícios das reformas para construir a necessária credibilidade.

Protestar contra ineficiências que assolam os preços e tarifas de eletricidade é legítimo e meritório, mas as soluções ainda não estão no horizonte. Se é para ir além da narrativa de que o consumidor está no centro da transição energética, urge desenhar boas reformas dos sistemas de subsídios de energia e partir para a prática.


Esta coluna foi publicada originalmente em 12/12/2023, terça-feira, pelo Broadcast da Agência Estado.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva da autora, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

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