Complexo de fracasso
A proximidade do prazo de envio do orçamento federal elevou a incerteza acerca da reação à crise. A área econômica alimenta ruídos fiscais sugerindo que o governo quer estourar a boca do balão. O governo, segundo informações preliminares, destinará mais recursos para a defesa do que para a educação. O Senado Federal retirou recursos do Fundo Social (destinados para saúde e educação) para transferir para Estados e Municípios. O teto cujo cumprimento já seria difícil, balança, mas o jogo mal jogado das expectativas, com tantas ações despropositadas, mostra dificuldade de acertar o passo na crise o que piora tudo.
Em um recente manifesto sobre a defesa do teto de gastos alguns economistas cometeram a projeção de que o teto pode ser mantido, pois no próximo quadrimestre a pandemia estará controlada. No artigo “Recuperação dependerá da política econômica” publicado em 08 de julho neste espaço, argumentei que o principal consenso no mundo acerca das políticas para a saída da crise é que elas ensejam uma retirada gradual dos estímulos criados. Nunca é demais lembrar, mas a pandemia segue sem controle.
Outros analistas na tentativa de defender o teto preferem incorrer no que o economista Albert Hirschmann chamou de “complexo de fracasso” e realçam as dificuldades nacionais em implementar políticas para justificar a paralisia. O complexo de fracasso foi um termo cunhado pelo referido economista depois de estudar políticas públicas em três países latinos, dentre eles, o Brasil. Ele notou que as análises locais eram muito mais negativas do que as avaliações dos programas indicavam.
Se nossa reação à crise mostra algo é o oposto. O país criou um programa emergencial para trabalhadores informais em curto espaço de tempo. A redução da jornada de trabalho, inspirada na versão alemã do programa, salvou milhões de empregos. Os programas de crédito para micro e pequenas empresas, depois de alguns ajustes, funcionam e ajudarão na retomada. Vários desses programas têm defeitos e não são poucos, mas quem é atento ao debate da política econômica percebe que não há nada muito diferente do que vemos em outros países.
Nas últimas semanas, alguns argumentos contra o aumento do investimento público ganharam mais forma. O primeiro deles é a tese de que demora para gerar efeitos. É muito comum ver analistas confundirem defasagem com ineficácia.
Para quem gosta desse argumento, seria interessante pensar que poucas coisas possuem mais defasagens do que as reformas estruturais. Seria possível, portanto, concluir que as reformas são desnecessárias? Outra forma de pensar sobre o tema, seria imaginar que o Banco Central poderia usar essa lógica para não reduzir a taxa de juros. Esse argumento é muito fraco e nada razoável.
O segundo tipo de raciocínio é que só podemos aumentar o investimento público depois de várias reformas. Imaginem se decidíssemos adotar o regime de metas de inflação, pouco experimentado até então, depois de esgotarmos todas as evidências empíricas possíveis? Ou se perdêssemos a oportunidade para acumular reservas internacionais aguardando para avaliar seus efeitos em outros países emergentes?
Muitas das reformas defendidas não têm poder de resolver todos os problemas do investimento público. Uma das ideias é criar um banco de projetos para acelerar os investimentos, mas muitos projetos envelhecem e têm que ser refeitos a partir de tecnologias novas ou restrições ambientais mais recentes.
Outra ideia é que os projetos sejam feitos pela iniciativa privada. No Reino Unido, por exemplo, as tentativas de envolver o setor privado por meio dos procedimentos de manifestação de interesse não evoluíram bem e outros instrumentos de gestão privada foram criados com maior participação do setor público. De todo o modo, vários projetos no Brasil já possuem estruturação privada.
Em alguns casos, essas propostas ajudam bastante, mas em outras nem tanto. O fato é que a implementação de políticas públicas é um processo de repetição e correção. Não fazer os investimentos esperando resolver todos os assuntos antes, significa não conhecer onde os aperfeiçoamentos precisam ser feitos e não realizar os investimentos. Colocar tantos empecilhos sem propor nada é a forma mais esperta de protelar soluções.
Um limite global de valor e novos aperfeiçoamentos na governança deveriam ser as contrapartidas exigidas pela área econômica para evitar desvios políticos. É importante garantir princípios importantes na saída da crise como foco em regiões com taxa de desemprego mais elevada e nas populações com maiores dificuldades sanitárias. É desejável priorizar obras em andamento e aquelas com os projetos executivos já prontos. O investimento não repõe a depreciação do estoque de capital público há cinco anos seguidos e resolver isso é inevitável.
A mesma lógica de contrapartidas deveria ser aplicada para a reforma administrativa diante de outras demandas governamentais e políticas. Mas é importante ficar claro, que na política fiscal, o fundamental, nesse momento, é assegurar que será feito a medida exata do que a pandemia exige. Os economistas preocupados com a higidez fiscal fariam melhor se cobrassem uma resposta sanitária mais efetiva. Essa é, hoje, a única forma efetiva de controle fiscal.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 19/08/2020, quarta-feira.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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