Política Monetária

Corte dos juros não precisa da convergência das expectativas para a meta

17 nov 2023

Real sem desvalorização forte, queda de inflação e núcleos, arrefecimento da atividade e expectativas relativamente bem comportadas indicam que Copom pode e deve continuar a cortar Selic, mesmo que inflação fique acima de 3%.

Quando o presidente Lula assumiu seu primeiro mandato em 2003, houve uma grande mudança da composição da diretoria do Bacen.  Especificamente, dentre aquelas pessoas que atuavam mais diretamente na política monetária.  A partir daí começa a ficar claro um posicionamento do Copom de postura muito conservadora.  Consiste na máxima que somente depois que houvesse a convergência das expectativas para a meta para a inflação é que a Autoridade Monetária poderia iniciar o corte dos juros.  Esta visão ultraconservadora do funcionamento do sistema de metas tem como consequência que antes da queda é necessário haver uma dose bem forte de aperto monetário, seja por meio de uma elevação excessiva da Selic, ou seja com a manutenção do juro por período prolongado acima do neutro.  Até que a convergência ocorra.  Só então é que se dão os cortes.  As consequências de tal postura conservadora são claras.  Primeiro, de fato a inflação acaba caindo.  Segundo, a um custo de PIB maior do que o desejado, já que a taxa real de juros acaba por ficar em média mais alta do que ocorreria caso tal princípio conservador não fosse observado.

Esta visão mais conservadora do processo de atuação na política monetária teve idas e vindas.  Com efeito, conquanto o presidente Lula em seus dois primeiros mandatos tenha respeitado de forma bastante razoável a autonomia técnica do Banco Central para manter a inflação sob controle, esta não parece ter sido a postura de sua sucessora, a presidente Dilma Roussef.  Assim que há o afastamento da presidente, mesmo antes da decisão final sobre o impeachment, que só ocorreria em 31 de agosto de 2016, o presidente Michel Temer muda a composição da diretoria do Bacen.  A partir daí, a postura ultraconservadora volta a ser observada. Com um agravamento: a meta para a inflação, que passara muitos anos em 4,5% ao ano, foi sendo alterada para 3% ao ano. 

O presidente Bolsonaro escolheu outra diretoria, que agora tem mandatos fixos.  Esta composição do Copom mostrou-se bem ousada e cortou a Selic para níveis nunca antes vistos no Brasil, de 2% ao ano.  Com a volta da inflação, que atingiu o mundo na pandemia e no pós-pandemia, o Banco Central corretamente respondeu com presteza e elevou as taxas de juros antes de outros bancos centrais.  A Selic atingiu 13,75% em agosto do ano passado.  Manteve esta taxa fixa até o mês de agosto deste ano, quando começou um processo de redução dos juros.  A regra que é usada do horizonte de política monetária em geral é um horizonte de um ano e meio à frente – infere-se isto pela leitura das atas do Copom.  As metas de 2024 para a frente encontram-se fixadas em 3% ao ano.  Ao fim de julho de 2023 o horizonte seria o fim de janeiro de 2025.  Desta forma, quando o Copom tomou a decisão de cortar os juros 0,5% em agosto deste ano, a expectativa da inflação de 2024 estava em 3,89% (só para constar, a inflação esperada para 2025 também estava acima da meta, em 3,5%).  Estas expectativas estão certamente acima das metas.  Analisando pelas decisões de corte de juros passadas, vê-se que um desvio abaixo de 0,30% da meta é visto como pouco relevante.  O desvio atual está bem maior que isto.  Portanto, fica claro que a atual composição do Copom não partilha da visão ultraconservadora do sistema de metas para a inflação.  Fica, é claro, uma dúvida: até que ponto a Autoridade Monetária admite um desvio em relação à meta?  Mas também, deve-se dizer que em países com fragilidade fiscal, como o caso do Brasil, as metas para a inflação devem ser mais elevadas, como tenho enfatizado há muito tempo, inclusive em artigos no Broadcast.  Desta maneira, sabidamente estamos com metas muito apertadas.  De que adianta termos uma meta mais baixa (3% ao ano ao invés de 4,5% como vigeu entre 2005 e 2018) se o Banco Central não pode assegurar que a inflação fique na meta, sob risco de colocar o Brasil numa recessão muito profunda?  Por outro lado, a decisão de não alterar a meta na reunião do CMN de junho deste ano foi acertada.  Isto porque ainda temos uma enorme incerteza fiscal.  Assim que o horizonte fiscal mostrar um controle bom da relação dívida/PIB, o CMN deveria mudar a meta para algo mais palatável, como 4 a 4,5% ao ano. 

Mas, este não é tópico central deste artigo.  O principal é perceber que não precisamos esperar a convergência das expectativas para meta para fazer cortes de juros.  E que esta composição do Copom parece entender isto muito bem.  A questão da velocidade da queda é outra história.  Se a inflação e seus núcleos mantiverem-se sob controle, e se a atividade econômica estiver arrefecendo, parece que o ritmo de cortes poderá ser mantido ou até mesmo intensificado.  O que pode fazer isto mudar?  Além dos choques de oferta usuais, hoje os riscos grandes estão na nossa política fiscal e nos juros norte-americanos.  Estes fatores afetam a inflação por quatro meios.  Primeiro, pode haver uma desvalorização forte de nossa moeda, que impactaria diretamente a inflação.  Segundo, o estímulo fiscal está muito expansionista, o que torna necessário haver cautela (como o Bacen tem demonstrado) no corte dos juros, já que a economia pode não se desaquecer o suficiente para que a política monetária tenha efeito sobre a inflação.  Terceiro, juros externos elevados e política fiscal frouxas podem alterar o juro real neutro da economia brasileira (que está em 4,5% na visão do Copom).  Quarto, as expectativas de inflação podem deteriorar-se de modo relevante.  Note que até agora: (1) o real não teve desvalorização forte, ao contrário; (2) a inflação e seus núcleos continuam em queda; (3) a atividade econômica tem mostrado arrefecimento, e (4) as expectativas estão bem comportadas, embora não convergindo para a apertadíssima meta de 3%.  Portanto desde que estas condições persistam, a despeito dos percalços fiscais e dos juros externos, o Copom pode e deve continuar seu caminho de corte da Selic.  A inflação provavelmente não ficará em 3%, mas o Copom não terá precisado fazer a economia sofrer com juros altos por mais tempo que o necessário.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 14/11/2023, terça-feira.

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