Crise argentina: Macri tentou a receita liberal?
A Argentina vive mais um capítulo de seu conturbado histórico de crises externas.
Para muitos, as dificuldades do governo Macri demonstram o insucesso da agenda de ajuste econômico. Para a coluna é o contrário. As medidas tomadas pelo governo Macri não o caracterizam como um governo liberal. Longe disso.
Não houve ajuste fiscal no primeiro biênio da gestão Macri, 2016 e 2017. Nesse período, o déficit primário foi de respectivamente 4,7% e 4,2% do PIB, vindo de 3,4% e 4,4% do PIB no biênio anterior. Houve somente ajuste fiscal em 2018, déficit de 2,2% do PIB, após a Argentina precisar do auxílio do FMI.
Adicionalmente, não houve a percepção da gravidade do problema fiscal. Apostou-se que o crescimento econômico que adviria das medidas liberalizantes geraria receita suficiente para ajustar o problema das contas públicas.
Havia, segundo a leitura do governo Macri, um problema fiscal transitório que seria financiado pelo endividamento externo.
A partir de uma situação que era ruim, a continuidade do endividamento externo (agora possível, pois a Argentina voltou aos mercados com Macri), ou interno em moeda estrangeira, agravou o descasamento de moeda no passivo externo líquido. Elevou a sensibilidade do passivo do governo argentino à cotação da moeda doméstica em relação à moeda norte-americana.
Essencialmente, o governo Macri criou uma narrativa baseada em uma “travessia”, que encobria o agudo conflito distributivo vigente naquela economia.
O acesso aos mercados externos – aqui sim, o propalado liberalismo deu espaço de manobra – permitiu que, durante dois anos, os problemas fossem empurrados para o futuro. A cantilena da travessia enganava os mercados.
Vale a pena recuperar a história econômica de nosso vizinho ao sul desde o início do século.[1]
A Argentina saiu da paridade do câmbio em janeiro 2002, no governo de Eduardo Duhalde. Crise econômica profunda: expansão do desemprego para 21,5%, inflação ao consumidor de 41% e retração econômica entre 99 a 2002 de 19,5%.
O governo Néstor Kirchner, que assumiu em 2003, beneficiou-se de três fatos, além de receber a casa arrumada pela administração Duhalde/Lavagna.
Primeiro, havia elevadíssima ociosidade. O espaço para o crescimento era amplo – de fato, entre 2003 e 2008 a expansão anual média foi de 8,4%. Segundo, o governo Menem (1989 até 1999), na gestão do ministro da Economia Domingos Cavallo, promoveu, além da paridade fixa da moeda, uma série de reformas liberalizantes em diversos mercados. As reformas não geraram impactos relevantes sobre a produtividade pois o regime cambial, inapropriado principalmente em um momento de choque negativo de termos de troca, como ocorrera entre 1997-2000, impediu o pleno funcionamento da economia. Terceiro, o cenário mundial se inverteu, a China “bombou” e as perdas de termos de troca se transformaram em um longo período de ganhos.
Esses três fatores produziram um longo período de crescimento da economia argentina, com inflação relativamente baixa para os padrões do país (média anual de 7,9%a.a. entre 2003 e 2008) e, muito em função do ajuste e das reformas de Cavallo, confortável situação fiscal.
Inicialmente a política monetária foi frouxa. Juros muito baixos. O que gerou aceleração da inflação mesmo com a política fiscal em ordem. Com o tempo, em que pese o enorme crescimento da receita de impostos, a situação fiscal se deteriorou. Foi se construindo um déficit primário e, ao mesmo tempo, a aceleração inflacionária ganhou corpo.
O país não tinha acesso aos mercados internacionais de capital em função do calote que dera na dívida externa em meio à crise. Não pôde se endividar externamente.
A deterioração econômica produziu, ao longo do período da presidência de Cristina Kirchner, redução do crescimento com aceleração da inflação. Cristina legou para Macri economia com baixo crescimento, inflação em 25% ao ano, déficit primário na ordem de 4,4% do PIB, déficit externo de 2,7% do PIB e dívida pública de 52% do PIB, sendo uma parcela de 35 pontos percentuais (pp) do PIB denominada em moeda estrangeira.
Macri teria muita dificuldade. Ajuste fiscal de 4,4 pontos percentuais do PIB significa refazer o pacto social. Macri não avisou a população. Teria que liderar essa repactuação.
Tomou outro caminho. Como argumentei no início da coluna, o otimismo com o país gerou novo espaço para o endividamento externo. A crença em ganhos de produtividade – com a melhora da política econômica e a elevação do investimento público e privado – levou o governo a traçar um cenário de forte aceleração do crescimento. O ajuste fiscal viria principalmente desse crescimento. Os economistas ortodoxos de Macri com a cabeça de nossos heterodoxos.
De fato, o investimento cresceu: a taxa de investimento estabilizou-se ao redor de 19% do PIB no primeiro biênio de Macri, contra 17% no biênio anterior. Mas esse crescimento foi financiado por meio de poupança externa. O déficit externo, que era de 2,7% do PIB em 2015 e 2016, subiu para 4,9% em 2017. No fechamento de 2017, a dívida pública tinha crescido, em relação ao fechamento de 2015, 4 pp do PIB, de 52% do PIB para 56%, todo este crescimento em dívida denominada em dólares. A dívida externa e a interna denominadas em dólares atingiram 39% do PIB em dezembro de 2017.
O problema é que reformas que liberalizam o funcionamento dos mercados custam a gerar crescimento econômico.
O cenário só ficava de pé com a bonança internacional. O crescimento não veio da forma esperada, o ajuste fiscal foi lento, a dívida externa cresceu, a dívida interna também (especialmente a denominada em moeda estrangeira), o déficit em conta corrente explodiu e a inflação ficou teimosamente acima de 25%a.a.
A necessidade de dólares para fechar as contas e a menor disponibilidade do mundo em ofertá-los jogaram a economia nos braços do FMI. A Argentina assinou um acordo com o Fundo que disponibiliza US$ 57 bilhões em quatro anos, condicionados a um conjunto de metas. Voltamos aos anos 80!
Há dois ensinamentos da experiência argentina. O primeiro é que desequilíbrio fiscal não se arruma com crescimento econômico.
Segundo ensinamento, que os argentinos já deveriam saber. Como nos ensinou Mário Henrique Simonsen, inflação aleija, mas o câmbio mata: países emergentes com histórico de crises externas não podem nunca assumir passivos em outra moeda. Talvez o liberalismo possa ser criticado nesse item.
O tema importante, e que está diretamente associado à conjuntura brasileira, é que não há saída técnica para uma sociedade que passa por uma crise fiscal aguda. A crise fiscal aguda requer que os políticos, com a liderança da presidência da República, encontrem bases tributárias e uma estrutura de gasto público que conversem entre si.
A crise da Argentina não é a crise do liberalismo ou do intervencionismo. É a crise de os políticos se negarem a cumprirem seu papel de mediadores dos conflitos e da construção de consensos. Quando os políticos falham a inflação aparece. Se a falha persiste, vamos para a hiperinflação e dela para guerra civil: de Argentina para a Venezuela.
Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de maio de 2019.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] A reconstrução da trajetória econômica da Argentina desde 2002 acompanha o texto de minha coluna na Folha de 30 de setembro de 2018.
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