Crise inédita e reveladora

Mescla de medo e oportunismo caracterizou, no primeiro momento, reação da direita tradicional a ataque feroz e exigências inaceitáveis de Trump ao Brasil, ataque e exigências coordenados explicitamente com a família Bolsonaro.
Nunca é demais repetir: a atual crise entre o Brasil e os Estados Unidos não tem precedente na história do relacionamento entre os dois países. Sim, os americanos já interferiram na política brasileira, mas jamais da maneira pela qual Trump está fazendo.
Aqui vão alguns bons exemplos. Durante o período que se segue ao golpe militar de 15 de novembro de 1889, belonaves da marinha dos EUA estavam na Baía da Guanabara prontas para intervir, caso as potências europeias tentassem apoiar as forças políticas brasileiras contrárias à derrubada da monarquia. A partir de 1940, Washington montou uma ampla operação cultural para atrair o Brasil para o lado americano na disputa com a Alemanha nazista por influência geopolítica na América do Sul. Porém, a operação tinha a anuência do governo de Getulio Vargas. Em março de 1964, navios da marinha dos EUA estavam novamente à espreita, caso o golpe militar que seria desfechado pelo Exército brasileiro contra o governo de João Goulart não tivesse êxito imediato. Numa reversão da política externa dos EUA, o governo de Jimmy Carter (1977-1981) pressionou enfaticamente as autoridades brasileiras contra as violações de direitos humanos cometidas pelo regime militar. Todavia, Carter jamais se alinhou abertamente com algum partido brasileiro, procurando respeitar os protocolos diplomáticos. O presidente Joe Biden (2021-2025), por meio de visitas ao Brasil de Jake Sullivan, chefe do Conselho de Segurança Nacional, e Lloyd Austin, Secretário da Defesa, mostrou às Forças Armadas brasileiras, de forma discreta, que a Casa Branca não apoiaria qualquer tentativa de golpe de Estado por parte do bolsonarismo.
A carta de Trump a Lula foi transmitida, no dia 9 de julho, via redes sociais, não pelos canais oficiais de comunicação entre chefes de Estado. Na missiva, Trump ameaça explicitamente o presidente, o Poder Judiciário e a economia do Brasil. Tudo isso para defender – escancaradamente – Jair Bolsonaro do processo que enfrenta por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Trump acusa o Brasil de promover uma caça às bruxas. Cumpre destacar que o ataque da Casa Branca ao Brasil foi estimulado ativamente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, autoexilado há meses nos EUA.
O ataque de Trump, além de gerar um conflito diplomático inédito, tem sido muito revelador das reais preferências e do quilate de vários líderes e grupos políticos brasileiros.
Em primeiro lugar, a bandeira do patriotismo, sempre empunhada pelos Bolsonaro, foi por eles despedaçada publicamente. Como pode um autoproclamado patriota instigar ou apoiar ataque perpetrado por potência estrangeira ao próprio país? Essa questão persistirá por muito tempo. Já está corroendo, e corroerá mais ainda, a imagem e os ativos políticos da família.
A primeira reação dos governadores de direita que querem disputar a presidência herdando os votos do bolsonarismo – Ronaldo Caiado (GO), Tarcísio Freitas (SP), Ratinho Júnior (PR) e Romeu Zema (MG) – foi completamente equívoca. Ou apoiaram o ataque de Trump ao Brasil ou culparam Lula ou ficaram em silêncio. A reação inicial que mais chocou foi a do líder do maior estado do país: Tarcísio Freitas apoiou Trump. Ainda que tenha mudado sua forma de comunicação posteriormente, Tarcísio mostrou que não tem faro político. Como pode o governador de São Paulo alinhar-se a favor de um ataque brutal contra seu próprio país e estado?
Esse ato de Tarcísio, porém, não foi falho. Ele continua chafurdando na extrema-direita, ao contrário do que imaginam algumas almas ingênuas que veem nele potencial representante de uma direita moderada. Mais recentemente, o governador de São Paulo prometeu, caso eleito presidente em 2026, indulto a Bolsonaro, se este for condenado pelo STF por tentativa de golpe de Estado, além de afirmar não confiar na Justiça brasileira. Apoiar o ataque de Trump, prometer indulto a Bolsonaro e desconfiar publicamente do Judiciário – estas são posições de extrema-direita pura e dura.
O ataque ao Brasil seria a grande oportunidade para a chamada direita tradicional, cuja essência é o centrão, afastar-se de Bolsonaro. Deu-se o contrário. No dia 2 de setembro, os líderes dos partidos União Brasil (UB) e Progressistas (PP), os principais do centrão, decidiram deixar o governo Lula e apoiar a anistia a Bolsonaro[1].
Por que é tão difícil para a direita tradicional distanciar-se de Bolsonaro? Há várias explicações possíveis, várias delas muito bem discutidas por Fernando Abrucio em recente artigo[2]. Acrescento aqui mais duas: em primeiro lugar, a direita tradicional tem medo da máquina digital de ódio pilotada pela família Bolsonaro. Responder às ofensas que lhe são frequentemente dirigidas pelos filhos de Bolsonaro seria romper com o bolsonarismo, o que, por sua vez, geraria mais insultos e humilhações promovidos pela máquina de ódio.
Em segundo lugar, desde 1989, ano da primeira disputa direta pelo Palácio do Planalto após o fim do regime militar em 1985, a direita tradicional jamais ganhou a eleição presidencial com candidato puro sangue. Fernando Collor, vencedor do pleito de 1989, concorreu como candidato de direita populista e antipolítica, vindo a governar como tal. Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994 e 1998, é um intelectual progressista, tendo governado como presidente de centro. Michel Temer, político conservador, só chegou à chefia do Executivo graças a manobras políticas de baixo calão que levaram à remoção de Dilma Rousseff em 2016. Finalmente, Bolsonaro, o extremista de direita mais radical eleito presidente, chegou ao Planalto em 2018 não apenas bradando o antipetismo e o anticomunismo, mas também investindo pesadamente contra a classe política, cujo núcleo duro é justamente o centrão.
Em 2026, deverá ser a mesma coisa. Dificilmente haverá candidato presidencial da direita tradicional competitivo. Terão que ou apoiar um nome de extrema-direita (provavelmente, Tarcísio) ou ficar com Lula ou o candidato de Lula. Dada a grande potência eleitoral do conservadorismo no Brasil e no mundo hoje em dia, o centrão tende a atrelar-se à extrema-direita no ano que vem.
Em suma, uma mescla de medo e oportunismo caracterizou, no primeiro momento, a reação da direita tradicional ao ataque feroz e às exigências inaceitáveis de Trump ao Brasil, ataque e exigências coordenados explicitamente com a família Bolsonaro. O ataque também mostrou que Tarcísio Freitas continua sendo um dos próceres da extrema-direita brasileira.
Com o início do julgamento de Bolsonaro e de vários generais por tentativa de golpe de Estado, muita água ainda vai passar pelo moinho e muitas atitudes e posturas do campo da direita mudarão. Mas há que se registrar: a reação inicial de vários dos seus líderes aos absurdos atos da Casa Branca contra o Brasil constitui um dos mais tristes e patéticos episódios da história republicana.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] Ver Victoria Azevedo e Raphael Di Cunto, “União Brasil e PP decidem deixar governo Lula e apoiar anistia a Bolsonaro”, Folha de São Paulo, 02/09/2025, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/09/uniao-brasil-e-pp-decidem-de....
[2] Ver Fernando Abrucio, “Bolsonaro vai mesmo morrer politicamente?”, Valor Econômico, 29/08/2025, disponível em https://valor.globo.com/eu-e/coluna/fernando-luiz-abrucio-bolsonaro-vai-....
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