Política Monetária

A curiosa interpretação global da política monetária

11 abr 2024

Paralelos traçados por Campos Neto entre conjuntura inflacionária nos Estados Unidos e no Brasil contêm alguns exageros, seja em relação à inflação de serviços, seja na influência da desinflação americana sobre a brasileira.

A pandemia de covid-19 causou uma interrupção das cadeias globais de suprimento.  Isto teve como consequência um aumento de preços de bens e matérias primas, o que resultou por sua vez em uma inflação que atingiu muitos países do mundo.  Dessa maneira, tivemos um fenômeno externo que foi originador de um movimento internacional de bancos centrais combatendo a inflação simultaneamente em diversas partes do mundo. 

Como se sabe, o Banco Central do Brasil foi um dos primeiros a elevar os juros para fazer frente ao surto inflacionário.  A primeira subida da selic foi em 17/3/2021, de 2% para 2,75% ao ano.  Os juros continuaram a se elevar até 4/8/2022 (chegando a 13,75%)     , quando ficaram então parados por um ano neste patamar, até que 3 de agosto do ano passado iniciou-se o processo de queda dos juros.  Para se ter ideia, o FED só começou o processo de aumento dos juros nos EUA em 17/3/2022, exatamente um ano após o primeiro aumento no Brasil.  E o processo terminou em 26/7/2023, quase que exatamente na data que o Bacen cortava os juros aqui pela primeira vez.  De forma similar o Banco Central Europeu começou o processo de elevação de juros em 27/7/2022 e parou em 20/9/2023.  Como se vê, há de fato uma coordenação de medidas monetárias.  Mas, a causa essencial foi a grande inflação de bens causada pela covid-19. 

Na quarta-feira passada o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, fez uma apresentação no 10º Brazil Investment Forum do Bradesco BBI em que ressalta algumas peculiaridades que estão acontecendo no mundo em razão desta coordenação de políticas monetárias anti-inflacionárias.  É de se esperar que a inflação tenha comportamento parecido no mundo, já que a causa básica é comum.  No entanto, o paralelo que foi traçado por ele entre a situação no Brasil e no exterior, principalmente nos EUA, foi um pouco longe demais. Entre as várias comparações, Campos Neto frisou que a inflação de serviços nos EUA está mais persistente que imaginado, o mesmo que está sendo observado aqui.  Ora, no artigo que escrevi para o Broadcast no mês passado, mostrei por que a inflação de serviços estaria mais resistente aqui.  Recapitulando o argumento, baseei-me no trabalho de Daniel Duque que foi publicado no boletim macro do FGV IBRE de outubro de 2023.  Duque mostra que a taxa de participação no mercado de trabalho está caindo, justamente pelo aumento do valor e da amplitude de aplicação dos auxílios sociais básicos do governo (bolsa família e/ou auxílio Brasil).  Em si este resultado não é uma surpresa, como pode ser atestado pela publicação de minha coluna no Broadcast de outubro de 2023, que foi publicada antes do artigo em questão. O que é novo é o diagnóstico que Duque faz sobre as consequências desta diminuição na taxa de participação.  O mais relevante para nós agora é que a menor taxa de participação fez com que os salários dos trabalhadores menos qualificados subissem.  No entanto, este efeito de aumento nos salários causado pelo aumento do bolsa família está concentrado nos 25% menores salários.  Estes salários estão em geral atrelados ao setor de serviços básicos (como foi definido por Duque: comércio, alojamento, alimentação fora do domicílio, outros serviços e serviços domésticos).  Este setor por sua vez é muito importante no núcleo de serviços subjacentes, acompanhado de perto pelo Bacen.  Pode ser que haja fenômeno semelhante nos EUA, mas certamente não há um bolsa família, principal causador do aumento dos salários neste setor aqui em nosso país.  Ou seja, ao comparar problemas nas inflações de serviços aqui e lá, foi deixado de lado que tal fenômeno tem causas distintas nas duas economias.

Em outra fala, Campos Neto enfatiza (AE NEWS, 3/4/2023 10:44:10, por Marianna Gualter, Eduardo Laguna e Francisco Carlos de Assis): “‘Temos a taxa de juros alta nos Estados Unidos, mas vemos a economia pujante, o emprego forte, a produção industrial que caiu recuperou e os serviços subindo’, disse. ‘Quando olhamos para as condições de liquidez da economia americana, mesmo com juros altos, a liquidez está lá.’  Esse cenário, salientou, faz pensar sobre o processo de desinflação.”

Aqui também parece que o paralelo traçado entre as condições de nossa economia e da economia dos EUA foi um pouco exagerado.  Com efeito, o processo de desinflação no EUA poderá afetar o processo de desinflação aqui.  Porém, uma queda mais lenta dos juros nos EUA somente influencia a economia brasileira (para efeito de política monetária) se houver impacto na taxa de câmbio relevante.  Ou seja, se o dólar mantiver seu bom comportamento, que tem sido observado pelo menos até aqui, não há razão para esperar que o processo de desinflação nos EUA venha a afetar a trajetória de queda da taxa Selic.


Esta coluna foi publicada originalmente pelo Broadcast da Agência Estado, em 9/4/2024, terça-feira.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Fábio
Longe de querer emitir opinião sobre assunto que não domino, acho que pelo menos em um ponto concordo com o artigo. A bolsa família alterou o mercado de trabalho e renda da classe baixa. Isso impacta na forma de analisar o mercado de trabalho e seus reflexos na composição da inflação daquela classe. Pelo jeito o banco central ainda não percebeu isso, mas o articulista sim.

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