Macroeconomia

De onde vem nossa crença no Estado onisciente?

22 mai 2017

Em excelente artigo publicado no jornal Valor Econômico em 5 de maio, Armando Castelar Pinheiro, utilizando-se do ferramental de Yuval Harari em "Sapiens: Uma breve história da humanidade", atribui o sucesso do homo sapiens em relação a outros homos que o antecederam ou que com ele conviveram à sua capacidade de compartilhar narrativas imaginadas e tratá-las como se realidade fossem. 

Utilizando o instrumental proposto por Harari, Armando se pergunta por que o Brasil não consegue sair da prolongada estagnação em que mergulhou no início dos anos 1980. Por que um país que, nas primeiras oito décadas do século XX multiplicou sua renda per capita por 12, só conseguirá elevá-la em meros 30% nos 40 anos seguintes? Harari enfatiza a criação de coisas imaginárias que ajudaram os humanos a progredir, mas também é possível a uma sociedade acreditar em coisas imaginárias que atrapalham o progresso ou que, depois de favorecê-lo por algum tempo, deixaram de ser funcionais e passaram a atrapalhá-lo.

Afirma Armando que no Brasil essa "realidade virtual" está construída em torno do papel do Estado e da crença de que ele tem todas as soluções para nossos problemas econômicos. Ele situa a partir dos anos 1930 essa construção do mito em torno do Estado onisciente, levando à bem-sucedida transição de uma economia agrária-exportadora para um país urbano e industrializado, com padrão de vida muito mais alto.

Segundo ele, essa construção imaginária foi adaptada nos anos 1980 para lhe dar um foco mais social, mas de outra forma, permaneceu igual. Ocorre que essa construção imaginária perdeu sua funcionalidade, mas em vez de se reconhecer isso se buscam culpados para explicar por que ela não mais dá resultados.

A minha preocupação neste texto é a de mapear como essa construção imaginária se propagou e se propaga no âmbito da economia, ao longo da nossa história. Certamente a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe)  e os cursos do ILPES (Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social) foram os grandes formuladores e propagadores dessa construção imaginária: os textos da CEPAL e os professores formados pelo ILPES a disseminaram. Evidentemente, a esquerda se assenhorou dessa construção e, no processo de aparelhar os Conselhos Regionais de Economia, tornou-a hegemônica no ensino de economia do País. Curiosamente, seus seguidores intitulam o ensino de teoria econômica de “pensamento único”, quando de fato a formulação da esquerda é o pensamento único em nossas universidades federais.

Um exemplo oportuno dessa construção imaginária sobre a importância do Estado está no Jornal dos Economistas, do Corecon-RJ, no. 331 de março recente. São quatro artigos dedicados a denunciar o Desmonte do Estado. O primeiro “Leviatã dobra-se a  Moloch”, de autor egresso da Unicamp, critica as reformas que estão sendo feitas com vistas ao ajuste fiscal – “Tomadas em conjunto, as ações e propostas do atual governo mais que sugerem, posto que já em marcha acelerada, um voraz desmantelamento do ainda tímido Estado Social brasileiro. ”

O segundo artigo, “A reestruturação dos bancos federais: motivos e impactos”, de autoria de uma economista do Dieese, critica que “desde o ano passado está em curso nos dois grandes bancos federais – Banco do Brasil e Caixa –  um amplo processo de reestruturação que implicará o redimensionamento de sua estrutura e atendimento e de pessoal. Lembra a economista que, em 2009, esses bancos evitaram, junto com o BNDES o agravamento dos reflexos da crise internacional no país, mantendo a oferta de crédito. Esqueceu-se de dizer que isto endividou famílias e empresas ao limite.

O terceiro artigo, “Resgate da Petrobrás e do pré-sal para a sociedade” ,de um conselheiro do Clube de Engenharia (entidade que continua com a campanha do Petróleo é nosso da década de 50) e do Crea-RJ,  critica a política de reestruturação da Petrobrás, que todos sabemos foi destruída por roubo e má-gestão.

O quarto artigo “Desmonte do Estado ou outro Estado?”, de um professor da PUC-SP, critica que a “política atual de ‘desmonte’ deste Estado na verdade não significa o fim do Estado, ou ‘menos Estado e mais mercado’. O que se desmonta não é o Estado, mas determinada estratégia materializada em determinadas política sociais e desenvolvimento.”

Essa construção imaginária está entranhada e arraigada em todas as Faculdade de Economia das Universidades Federais e Estaduais, (entre as quais Campinas e UFRJ são expoentes) em maior menor grau, e até mesmo em algumas Faculdades privadas. Particularmente, eu me formei dentro dessa tradição, quer como aluno de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), quer como estagiário da CEPAL, para onde fui indicado pelo então diretor do ILPES no Brasil, de quem fui aluno na UFF. E, mesmo tendo sido exposto a diferentes formações, já que fui aluno de economistas do IPEA, do BNDES e mesmo de egressos do mestrado da EPGE, dela não me afastei até 20 atrás.

Curiosamente, no CENDEC – um curso de pós-graduação de cunho neoclássico, associado ao IPEA –, tive como colegas alunos de economia da UFRJ, todos com ideologia semelhante, mas o mesmo não ocorria com colegas que advinham dos cursos de engenharia ou de matemática ou estatística. Lá fui aluno de professores da EPGE-FGV e de alguns outros, tais como Afonso Celso Pastore e Carlos Geraldo Langoni. Embora fosse muito bom aluno na UFF, lá não fui tão bem classificado, ficando os primeiros lugares para os alunos de ciências exatas, não contaminados pelo pensamento estruturalista.

Atualmente, os cursos de economia no Brasil, salvo poucas exceções, são formadores de economistas nessa linha de pensamento; vários formados avançam nas suas pós-graduações das Universidades onde se graduaram e lá se tornam professores, se reproduzindo em moto contínuo. No período recente, eles ocuparam todos os escalões de governo e buscaram colocar em prática o que aprenderam, ampliando o papel do Estado na vida econômica e social brasileira, com as desastrosas consequências que todos sabemos.

Mas, de fato, esse não é o problema: essa construção imaginária está presente em cada milímetro de nossa vida e se expressa das mais diferentes formas desde a nossa Constituição até qualquer panfleto de cunho eleitoral.  Experimente conversar sobre essa questão, com qualquer pessoa de qualquer nível econômico e social, e com qualquer nível de educação – ela estará lá e teremos que lidar com ela por muitos e muitos anos ainda.

Nossa esperança reside em que se consiga ter nos ministérios econômicos economistas de formação ortodoxa, que implementem políticas racionais que nos permitam escapar dessa armadilha ideológica e avançar para superarmos a recessão e o desemprego que essa ideologia nos causou.

 

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