Macroeconomia

A degradação do presidencialismo

24 abr 2020

Não é de hoje. Apesar do reiterado apego ao presidencialismo demonstrado pelos brasileiros no plebiscito de abril de 1993, há um bom tempo a Presidência da República, centro de gravidade do nosso sistema de governo, vem sendo degradada.

O presidencialismo é um regime que investe o Poder Executivo na “pessoa” do Presidente da República, estabelecendo uma estrutura vertical de gestão do governo. O presidente é, simultaneamente, chefe de Estado – isto é, é o supremo representante do país perante o mundo e o comandante-em-chefe das Forças Armadas – e chefe de governo – isto é, é o chefe da administração pública federal. De maneira coerente com aquela estrutura, os ministros precisam da confiança presidencial – não da parlamentar – para serem nomeados e mantidos nos seus cargos. Donde decorre que atributos da personalidade presidencial são fatores muito relevantes para o bom funcionamento do presidencialismo.

Some-se ao dito no parágrafo acima o fato de haver, sob o presidencialismo, uma separação radical entre o processo de escolha do chefe de governo e o processo de governo. Basta lembrar que a escolha do chefe de governo se dá por meio de eleição popular direta em outubro de cada quadriênio e o processo de governo se inicia um pouco mais de dois meses depois, com a posse do presidente eleito. O processo de governo significa não apenas a gestão vertical da administração pública federal, mas também a condução – num plano horizontal – do relacionamento do Poder Executivo com o Congresso e o Poder Judiciário. Cumpre reiterar que são processos muito distintos, gerando um grande potencial de conflito entre ambos, sobretudo quando o presidente não dispõe de maioria legislativa e reivindica para si uma legitimidade superior à do Poder Legislativo por ter sido sufragado pela maioria popular, como alertou o grande politólogo espanhol Juan Linz. O presidencialismo de coalizão foi a solução que se encontrou, no Brasil e em alguns outros países latino-americanos, para minimizar tais choques. Na ausência ou fracasso dessa solução, o último recurso constitucional é a suspensão do mandato presidencial, o chamado impeachment, um lento e penoso processo judicial e político. Por isso mesmo, deve ser raramente utilizado.

Foi esse o sistema de governo que, de maneira democrática, adotamos com a promulgação da Constituição de 1988 e o plebiscito sobre o sistema de governo, em 21 de abril de 1993. Por que tem sido degradado?

Quanto aos atributos da personalidade presidencial, em quatro das oito eleições presidenciais diretas realizadas desde 1989, escolheram-se pessoas ineptas para o exercício vertical e horizontal do Poder Executivo: Fernando Collor em 1989, Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e Jair Bolsonaro em 2018.

Collor, como ele próprio já reconheceu, errou muito no seu relacionamento com o Congresso e os partidos. Porém, soube delegar – tarefa fundamental tanto para gerir a administração pública federal quanto para montar coalizões partidárias – quando nomeou o Embaixador Marcílio Marques Moreira para o Ministério da Fazenda em maio de 1991 e quando formou um gabinete de notáveis em abril de 1992. Apesar de ter sido destituído seis meses depois, aquele gabinete, num primeiro momento, tinha plenas condições de estabilizar a frágil situação política de Collor. Sua presidência só começaria a ruir para valer a partir de maio, quando Pedro Collor, seu irmão, fez graves denúncias contra o chefe de Estado. De qualquer modo, ficou a lição: delegar é preciso, governar unilateralmente não é preciso.

Dilma Rousseff, eleita em 2010 porque se beneficiou da popularidade do então Presidente Lula, era, sabidamente dentro do PT, uma pessoa sem vocação para o exercício do Poder Executivo. Em 2014, reelegeu-se, mas à custa de levar as contas públicas à bancarrota. Como ficou claro ao longo dos seus cinco anos e quatro meses e meio no Palácio do Planalto, não sabia nem lidar com seus subordinados na administração pública federal nem se relacionar com seus aliados na coalizão partidária que, apesar de tudo, lhe dava uma ampla maioria parlamentar. Não à toa, foi destituída em abril de 2016.

Jair Bolsonaro, eleito em 2018 no rastro do antipetismo e de uma facada, também já tornou explícito ser dono de um padrão previsível de ação, padrão mantido chova ou faça sol e que se caracteriza por quatro táticas: (1) transferir os custos de decisões presidenciais de monta para outros, (2) identificar supostos inimigos que conspiram contra ele (dentro e fora da administração pública federal, inclusive seus próprios ministros), (3) atacar os supostos inimigos, e (4) criar cortinas de fumaça para mascarar fatos associados à sua gestão que gerem más notícias. Se, antes de março de 2020, já era deprimente constatar que o Brasil tinha um presidente robótico, que chocava, mas não surpreendia, o país agora está diante de uma tragédia, pois é com aquele repertório limitado e perigoso que Bolsonaro enfrenta a pandemia do Covid-19 e uma recessão chegando a galope. Não à toa, já se fala – muito seriamente – na destituição ou renúncia de Bolsonaro. O atual presidente brasileiro, tal qual Dilma Rousseff, é inepto no que toca tanto ao exercício vertical quanto ao horizontal do Poder Executivo.

Se Bolsonaro for alvo de um processo de suspensão de mandato, será o terceiro desde a posse de Collor em 1990. Serão três ao longo de aproximadamente trinta anos, uma frequência muito alta, evidência eloquente de degradação do presidencialismo. Entre 15 de março de 1990, dia da posse de Collor, e 15 de abril de 2020, fomos governados por presidentes ineptos durante aproximadamente 30% do tempo. É muito tempo para um país em desenvolvimento. Não somos ricos como os EUA para dar-nos o luxo de termos tais presidentes por um período tão longo.

Há mais. Conquanto a destituição de Rousseff fosse por todos esperada a partir de dezembro de 2015, o dia 31 de agosto de 2016 nos reservou uma surpresa: a decisão do Senado de não punir a mandatária com a suspensão dos seus direitos políticos por oito anos, ao contrário do que ocorrera com Collor. A deposição de Dilma sem perda de direitos políticos é mais uma evidência do amesquinhamento das instituições do presidencialismo em nossa terra. Este supõe a existência de uma couraça constitucional que proteja o mandato do chefe de governo diretamente eleito ou o puna duramente caso viole a lei. Essa couraça é um dos elementos distintivos do presidencialismo vis-à-vis ao parlamentarismo. Por isso, a suspensão do mandato presidencial implica (i) a abertura de um processo por crime de responsabilidade – e não uma moção de desconfiança política, como se dá sob o parlamentarismo; (ii) a necessidade de maioria qualificada para a aprovação da admissibilidade do processo pela Câmara dos Deputados – e não uma maioria absoluta, tal qual requerem os sistemas parlamentaristas para que o primeiro-ministro seja defenestrado; e (iii) em caso de condenação e suspensão definitiva do presidente, a aplicação de uma punição legal – e não a mera perda do cargo, como se dá sob o parlamentarismo quando o primeiro-ministro é “desinvestido” pela maioria parlamentar. Ou seja, o dia 31 de agosto de 2016 testemunhou a ruptura do terceiro pilar da couraça constitucional do presidencialismo.

Há mais. Em fevereiro de 2016, Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, em decisão monocrática, a nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil da então Presidente Dilma Rousseff. Em janeiro de 2018, o juiz Leonardo da Costa Couceiro, titular em exercício da 4ª Vara Federal de Niterói, decidiu suspender a nomeação de Deputada Federal Cristiane Brasil para chefiar o Ministério do Trabalho. A decisão foi mantida pelos tribunais por tempo suficiente para desmoralizar politicamente a deputada e inviabilizar a nomeação. Como afirmam os juristas Diego Arguelhes, Eduardo Jordão e Thomaz Pereira, “[...] ambas as decisões nos parecem juridicamente equivocadas, e insustentáveis. Tecnicamente, não estamos sequer diante de precedentes do Supremo. Em nenhum dos casos houve decisão colegiada do tribunal sobre essas decisões, em mais um claro sinal de sua heterodoxia”.[1] Diga-se mais: ambas as decisões feriram mais um dos pilares do presidencialismo, o poder presidencial de livremente nomear e demitir ministros. Mais uma evidência, portanto, de degradação.

Em suma, o presidencialismo tem sido degradado pela frequente eleição de presidentes ineptos e pela ação direta do Legislativo e do Judiciário. Ou paramos de degradar nosso sistema de governo ou é melhor trocá-lo por outro.

Este artigo faz parte do Boletim Macro IBRE de abril de 2020. Leia aqui a versão integral do BMI Abril/2020

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

 

 

[1] Ver Diego Arguelhes, Eduardo Jordão e Thomaz Pereira, “Para a insensatez presidencial, a Constituição não tem remédio, mas pode ter vacina”, Jota, 06/04/2020, disponível em https://www.jota.info/stf/supra/insensatez-presidencial-constituicao-remedio-vacina-06042020.

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