Dilemas dos Estados Unidos

Não há um desequilíbrio macroeconômico americano pelo fato de os EUA emitirem a moeda de curso global. Desindustrialização deriva essencialmente do padrão de especialização da economia americana, como os serviços sofisticados.
O atual chefe da consultoria econômica de Trump, o doutor em economia por Harvard, Stephan Marin, publicou em novembro de 2024, quando ainda ocupava a função de estrategista sênior da Hudson Bay Capital, o texto “A user’s guide to restructuring the global trade system”[1]. Nele, o assessor estabelece as linhas gerais do que seria a política econômica de Trump, inclusive com a apresentação do diagnóstico que a sustenta.
O diagnóstico é que, desde o pós-guerra e com a guerra fria, os EUA têm procurado abrir a economia para o comércio, sem demandar, necessariamente, reciprocidade. Essa tendência continuou no período posterior à queda do muro de Berlim.
Adicionalmente, o papel especial que o dólar tem no mercado internacional gera, como fenômeno de equilíbrio, uma moeda artificialmente valorizada. Isto é, o câmbio americano de equilíbrio é mais valorizado do que aquele que equilibra o saldo das contas externas – a soma do saldo da balança comercial de bens e serviços e da balança de rendas – ao longo do tempo. Nas palavras do chefe da assessoria de Trump:
A resposta está no fato de que existem (pelo menos) dois conceitos de equilíbrio para moedas. Uma está enraizada em modelos de comércio internacional. Nos modelos comerciais, as moedas se ajustam a longo prazo para equilibrar o comércio internacional. Se um país tiver um superávit comercial por um período prolongado, ele recebe moeda estrangeira por seus produtos, que então vende por sua moeda nacional, fazendo com que sua moeda nacional suba. Esse processo ocorre até que sua moeda fique forte o suficiente para que suas exportações diminuam e as importações aumentem, equilibrando o comércio.
O outro conceito de equilíbrio é financeiro e vem dos poupadores selecionando alternativas de investimento entre diferentes nações. Nesse conceito de equilíbrio, as moedas se ajustam para tornar os investidores indiferentes entre manter ativos denominados em moedas diferentes, em uma base ajustada ao risco ex ante.[2]
Segundo Marin, o papel especial dos EUA na oferta internacional de ativos de reservas quebra a relação entre os dois conceitos. Há uma demanda por dólares, como meio de pagamentos, e sobre esta se soma uma demanda por títulos do Tesouro Americano de curto prazo (treasury bills), como reserva de valor. A liquidez e o seguro são dois atributos importantes que são demandados por não residentes. A demanda por esses serviços depende do crescimento do comércio internacional e da economia mundial, fatores relativamente descolados dos fundamentos da economia e do comércio americanos. Consequentemente, o câmbio de mercado não é o câmbio que equilibra, ao longo do tempo, o saldo das transações correntes.
O câmbio mais valorizado causa a desindustrialização. A indústria migra para outros países. O desemprego industrial desaparece e comunidades inteiras que tinham uma vida de classe média – o sonho americano do pós-guerra – empobrecem. Os trabalhadores do chão de fábrica viram trabalhadores desqualificados no setor de serviços. Irão trabalhar no McDonalds, Walmart ou nos centros de distribuição da Amazon.
Antes de continuar a apresentação do argumento de Marin, é útil elaborar o que se sabe da relação entre comércio e desindustrialização. A referência é o trabalho “On the Persistence of the China Shock” de David Autor, David Dorn e Gordon Hanson, publicado no fascículo do outono de 2021 do Brookings Paper on Economic Activity. Seguem no mesmo fascículo os comentários de Marianne Bertrand e de Edward Glaeser, bem como as notas da discussão geral.
Há fortes evidências de que o comércio com a China destruiu comunidades inteiras. O maior problema foi o grau de especialização regional que a indústria tinha logo antes do choque. Apesar de o efeito agregado sobre os EUA não ter sido muito grande e, evidentemente, o comércio ser benéfico em geral e em termos agregados, algumas comunidades foram sim muito atingidas. Principalmente para os homens com mais de 40 anos, baixa ou média escolaridade e com certa imobilidade, pois o choque desvalorizou o principal ativo que era o valor da moradia – a capacidade de se deslocar para outro local e reiniciar a vida era muito baixa. Essas pessoas e suas famílias, quando os filhos ainda eram dependentes, foram muito afetadas. Essencialmente, a baixa escolaridade em regiões muito especializadas gerou uma grande vulnerabilidade das famílias e da região ao choque comercial chinês.
Voltando ao diagnóstico de Marin, ele me parece errado. A impressão do leitor é que o déficit em transações correntes de equilíbrio é artificialmente produzido pela demanda por títulos do Tesouro. Desde 2009, a média dos déficits anuais de transações correntes foi de 2,6%. Se os EUA crescem mais e se a taxa de juros é maior do que em países centrais, como é o caso da zona monetária do euro e do Japão, é natural haver um fluxo permanente de capital para os Estados Unidos. O mesmo fato ocorre com a Austrália, que apresenta crescimento maior e juros maiores. A média dos déficits de transações correntes para a Austrália entre 1981 e 2016 foi de 4,3% do PIB. Não há um desequilíbrio macroeconômico americano pelo fato de os EUA emitirem a moeda de curso global. Se houve algum desequilíbrio maior, esse ocorreu nos anos imediatamente anteriores à grande crise global. Entre 2001 e 2009, a média dos déficits de transações correntes americanos foi de 5,1% do PIB. Nesse período, a fortíssima demanda da China por acumulação de reservas pode ter produzido um dólar artificialmente forte. Mas olhando os números com cuidado, o fato é muito menos geral e estendido no tempo do que sugere a análise de Marin.
Como vimos no parágrafo anterior, dado o diferencial de crescimento e de rentabilidade do investimento entre os EUA e outras economias centrais, o déficit de transação correntes de 2,6% do PIB observado desde 2009 não parece excessivo. E como explicar a desindustrialização? Essencialmente, ela é fruto do padrão de especialização da economia americana. Se compararmos o comércio bilateral EUA-China com o comércio bilateral Alemanha-China, veremos que os EUA exportam serviços tecnologicamente sofisticados para a China, enquanto a Alemanha exporta bens industriais. O padrão de comércio dos EUA com a China é fruto de os Estados Unidos produzirem inovação no setor de serviços, terem as grandes marcas mais relevantes, produzirem patentes etc. É possível que esse padrão de especialização produtiva gere uma maior desigualdade, e é possível que a ausência de um Estado de bem-estar tenha pesado particularmente sobre algumas comunidades em função do comércio com a China. Mas não parece haver um problema macroeconômico.
A ideia de Marin para conseguir resolver o problema macroeconômico – que, como vimos, não me parece existir – é operar com dois instrumentos, tarifas e câmbio. Há, no entanto, elementos geopolíticos no diagnóstico de Marin: em um mundo bipolar ou multipolar, é necessário reorganizar as cadeias globais de valor e praticar políticas que reindustrializem a economia americana em função de objetivos de segurança nacional. E um terceiro elemento, ligado a este último, é que a redução da participação da economia americana na economia mundial tem aumentado o custo relativo de ser polícia do mundo. Trump deseja renegociar com as nações aliadas os termos desse contrato. Para que o argumento faça sentido, teríamos que observar uma elevação do gasto militar como proporção da economia americana. Não é isso que ocorre. Para os dez anos terminados em 1960, o gasto militar era de 12,9% do PIB. Para os dez anos terminados em 2020, foi de 4,2% do PIB. A queda entre as décadas é monotônica. Para os dez anos terminados em 1970, foi de 10,3% do PIB, e de 6,8% do PIB para os terminados em 1980. A média do gasto militar como proporção da economia de 1995 até hoje é de 4,4%. Simplesmente a tese de que o papel de polícia do mundo tem sido mais pesado aos EUA com o passar do tempo não passa em um teste simples de observação da série histórica.
Com relação às tarifas, há base conceitual para que os EUA as elevem. Se a economia americana, em função de seu poder, conseguir aumentar as tarifas sem que haja retaliação, cálculos de Costinot e Rodriguez-Clare (2014)[3] indicam que 30% seria muito próximo da tarifa ótima. Geraria um ganho de 1% no consumo em relação à tarifa zero. Os autores consideram modelos com cadeias globais de valor e competição imperfeita. Mesmo se houver retaliação, o poder de barganha da economia americana é muito elevado. No mesmo texto, os autores calculam que uma tarifa de 40% entre todos os países gera uma perda de bem-estar para todos. No entanto, as perdas são assimétricas: de 10% a 20% para a China, por exemplo, enquanto os EUA perdem 1%. Se considerarmos que a tarifa, adicionalmente, gera receita para o setor público, parece que a elevação de tarifas veio para ficar.
O segundo elemento do pacote de medidas de Marin trata das políticas que afetam a cotação da moeda americana contra os principais parceiros. Adicionalmente, trata-se de criar mecanismos para que os EUA possam cobrar pelos seguros que eles ofertam. Para desvalorizar a moeda, o caminho são as intervenções esterilizadas. O Fed precisa comprar títulos emitidos pelo tesouro alemão, japonês, chinês, inglês e, com isso, desvalorizar o dólar frente a essas moedas. Para que a medida não expanda a base monetária, o Fed emite títulos com compromisso de recomprar, o que no Brasil chamamos de operações compromissadas, de forma a esterilizar o impacto da acumulação de reservas sobre a base monetária.
A acumulação de reservas esterilizadas reduzirá muito o prazo médio de vencimento da dívida no mercado. Para compensar, o governo americano pode “forçar”, isto é, empregar seu poder, para convencer os bancos centrais das economias amigas, isto é, que estão sobre o guarda-chuva da proteção militar americana, a trocar as reservas por títulos de longo prazo. Para as nações que não aceitassem a troca, o Fed poderia cobrar uma tarifa pelo emprego das reservas. O Tesouro americano, ao pagar os juros aos bancos centrais pelo carregamento das reservas, pagaria menos do que a taxa contratada. A diferença seria por conta de uma tarifa.
Ao arranjo que envolve esse pacote – acumulação de reservas, troca dos títulos para elevar o prazo médio de vencimento das reservas internacionais, e cobrar uma tarifa pelo uso das reservas –, as pessoas têm chamado de acordo Mar-a-lago. Mar-a-lago é o nome de um resort de Trump. É comum as conferências de reforma da arquitetura das finanças internacionais ocorrerem em resorts ou grandes hotéis, como Plaza em Manhattan, em 1985, ou mesmo Bretton Woods em 1946.
A acumulação de reservas é uma política que faz sentido. Para funcionar sem pressionar o mercado de dívida pública, o ideal é que haja uma elevação da poupança pública. Com ela, o Tesouro pode comprar as reservas. As outras duas medidas me parecem que não têm chance de funcionar. Elevadíssima dose de heterodoxia.
De qualquer forma, se o problema maior for o déficit externo americano, há somente duas formas de ele se reduzir. Primeiro, haver uma elevação da poupança americana. Segundo, haver uma redução da poupança chinesa. Difícil imaginar uma ação do governo americano que possa induzir os consumidores chineses a consumirem mais. Por outro lado, difícil imaginar que Trump pratique uma política fiscal apertada com vistas a elevar a poupança pública.
A aposta da coluna é que a política econômica de Trump causará muito ruído mas não terá bons resultados. Quem viver verá.
Esta é a coluna Ponto de Vista, da Conjuntura Econômica, de abril/2025.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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