A disseminação do risco fiscal e algumas sugestões para enfrentar o problema
Há quatro componentes da chamada “disseminação do risco fiscal”: governos subnacionais, empresas estatais, política de crédito público e despesas fora do orçamento público. Ponto mais difícil é questão das dívidas estaduais.
Com a emenda da transição e o novo arcabouço fiscal, o atual governo mudou profundamente o regime fiscal brasileiro no seu primeiro ano de mandato. Houve, simultaneamente, aumento de despesas, uma nova regra de crescimento do gasto (70% do aumento da receita, com piso real de 0,6% e teto de 2,5%) e foram estabelecidas metas ambiciosas de resultado primário até 2026.
Por outro lado, tem havido recorrentes surpresas de aumento do gasto primário, e o mercado projeta descumprimento das metas de primário nos próximos anos. O próprio estímulo à economia via aumento do gasto também gera desconfiança sobre a disposição de controlar despesas.
Finalmente, sem mudanças nas regras de algumas despesas obrigatórias, os gastos discricionários serão rapidamente comprimidos para níveis de ‘shutdown’, ameaçando a própria regra fiscal em vigor atualmente. As contas do próprio Tesouro implicam que, via ‘shutdown’, o arcabouço pode entrar em colapso já em 2026. Não é à toa, portanto, que a nova institucionalidade fiscal está em xeque do ponto de vista do mercado, e que um novo pacote fiscal para dar sobrevida ao arcabouço acaba de ser anunciado para tratar tais dificuldades.
Mas o foco desta Carta será avaliar um risco específico para as contas públicas e que também tem preocupado os agentes econômicos: a chamada “disseminação do risco fiscal”, que é a extrapolação dos riscos das contas públicas para as demais dimensões da política fiscal, algo que precisa ser mapeado de forma objetiva, para ser corrigido. Segundo Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV-IBRE, a percepção de que o risco fiscal está se disseminando é mais um elemento problemático no quadro já difícil de perspectiva de estabilização das contas públicas. Pires, junto com seu colega Bráulio Borges, também ligado ao Centro de Política Fiscal do FGV IBRE, fez a apresentação que deu base a esta Carta.
Pires vê quatro componentes do que chama de disseminação do risco fiscal: governos subnacionais, empresas estatais, política de crédito público e despesas fora do orçamento público. Este quarto componente reforça as dúvidas sobre a viabilidade do arcabouço, mostrando a dificuldade hoje existente em compatibilizar o ritmo de crescimento das despesas com os limites da regra fiscal.
Em relação aos governos subnacionais, o economista recorda que, quando o Brasil gerava resultados primários de forma substantiva, em volume mais do que suficiente para reduzir a relação dívida/PIB, Estados, municípios e estatais ajudavam no esforço do governo federal. Em 2008, por exemplo, para um superávit primário da União de 2,4% do PIB, os Estados acrescentaram 0,9% do PIB de resultado positivo, e as estatais, 0,5%. Assim, com mais 0,2% do PIB dos municípios, o superávit primário do setor público consolidado ficou em 3,9% do PIB em 2008. Esse desempenho contrasta com o resultado acumulado até setembro de 2024: déficit de 1,3% do PIB da União, com superávit de apenas 0,4% dos Estados. Os conjuntos deficitários dos municípios e das estatais subtraem, cada um, 0,1% do PIB do resultado do setor público consolidado, levando a um déficit de 1,1% do PIB.
“Existe uma tendência atual de colocar muito ônus em cima do governo federal para se fazer a estabilização fiscal”, comenta Pires.
Ele acrescenta que há uma descentralização muito grande de recursos para Estados e municípios nos últimos anos. O gasto federal real acumulado no trimestre – deflacionado pelo IPCA, dessazonalizado e excluindo todas as transferências para Estados e municípios – cresceu de R$ 466 bilhões (até dezembro de 2022) para R$ 626 bilhões, até dezembro de 2023. É um grande salto no primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, mas o acumulado em três meses já recuou para R$ 540 bilhões no terceiro trimestre de 2024. Numa perspectiva mais longa, o gasto federal real saiu de R$ 475 bilhões na média dos quatro trimestres de 2019 para os R$ 540 bilhões no terceiro trimestre deste ano, com avanço de 13,8%. Nesse mesmo período, o gasto real dos governos subnacionais disparou de R$ 458 bilhões para R$ 630 bilhões, numa alta de 38%.
Segundo Pires, “já está acontecendo algum controle de despesas em nível federal, mas não existe controle nenhum no nível regional, o que dificulta a gestão fiscal pela União, vista como grande responsável pelas contas públicas; isso acarreta, inclusive, problemas de coordenação com a política monetária”.
O aumento do gasto dos governos subnacionais ocorre na esteira – e não por coincidência, claro – da alta das transferências da União para Estados e municípios. Tomando-se apenas as transferências reais (deflacionadas pelo IPCA, a preços constantes de setembro de 2024) via Fundo de Participação dos Estados (FPE) Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e royalties e participações especiais (indústria extrativa-mineral), saiu-se de R$ 329,5 bilhões em 2017 para atingir, nos 12 meses até setembro de 2024, R$ 474,8 bilhões, com 44% de aumento real no período.
O salto fica ainda mais impressionante quando se acrescenta, para além do FPE, FPM, royalties e participações especiais, outros tipos de transferências federais para governos subnacionais – Fundeb, Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF), auxílio a Estados e municípios, Lei Kandir e “emendas Pix”, dinheiro direto para a conta dos municípios. Com esse acréscimo, em 2017 as transferências totais foram de R$ 350 bilhões e, nos 12 meses até setembro de 2024, de R$ 591 bilhões, um salto real de quase 70%.
Essa inclusão de transferências adicionais ao FPE, FPM, royalties e participações especiais fazia relativamente pouca diferença até 2007, mas em 2011 a diferença já chegava a R$ 21,1 bilhões e cresceu até R$ 79,3 bilhões nos 12 meses até setembro de 2024, sempre em termos reais. Algumas das causas dessa grande alta recente das transferências adicionais ao FPE/FPM/royalties/participações especiais foram o aumento dos aportes da União ao Fundeb (válido a partir de 2021) e as emendas Pix.
Outra faceta do aumento do gasto dos Estados foi a progressiva flexibilização dos acordos de renegociação da dívida estadual firmados na década de 90, tanto em novas rodadas de negociação com a União, como por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) favoráveis aos Estados. Menor pagamento de juros pelos Estados significa menos necessidade de obter superávits primários expressivos e, portanto, tende a reduzir a contribuição estadual para o resultado fiscal do setor público consolidado.
Pires nota que há um novo projeto de renegociação das dívidas estaduais, abordado na Carta do IBRE de setembro deste ano, que deverá levar a uma redução ainda maior do resultado primário dos Estados ao longo dos próximos anos – e que se constituirá em uma fonte de financiamento adicional para o aumento de despesas. As estimativas indicam que o impacto anual do projeto pode chegar a R$ 48 bilhões, sendo que o impacto no fluxo de caixa da União nos primeiros anos deve ser em torno de R$ 20 bilhões.
O segundo tópico da disseminação do risco fiscal são as empresas estatais. O governo federal apresentou proposta recentemente para dar independência a empresas estatais hoje dependentes do Tesouro, por meio de contratos de gestão. O total de receitas dessas empresas (que entram no orçamento) é de R$ 3 bilhões, e as despesas da STN com elas são de R$ 34 bilhões. Há, portanto, um déficit anual de R$ 31 bilhões. Como explica Pires, se essas empresas forem retiradas do Orçamento, o impacto de curto prazo é que a receita de R$ 3 bilhões deixa de entrar no Orçamento, e o aporte da STN cairia para R$ 31 bilhões. Ou seja, em termos líquidos, não faz nenhuma diferença.
No longo prazo, porém, complementa o pesquisador, o risco é reduzir o controle dessas estatais. Na prática, os contratos de gestão podem envolver metas de desempenho, mas não necessariamente exercerão o mesmo tipo de controle fiscal feito atualmente, o que poderá ampliar o risco para as contas públicas. Na avaliação de Pires, a proposta do governo poderia ser aperfeiçoada se a mudança fosse feita selecionando empresas com maior potencial de crescimento e desempenho, a partir de uma avaliação de mercado, mediante o alcance de metas.
A Petrobras, maior empresa brasileira – e estatal independente, claro – é um grande foco quando se pensa no risco fiscal associado às empresas públicas. O investimento (Capex) da Petrobras acumulado em 12 meses, em termos reais (valores de setembro/2024), de fato cresceu no terceiro mandato de Lula, saindo de R$ 50,8 bilhões no último trimestre de 2022 para R$ 76,3 bilhões no terceiro trimestre de 2024. Porém, como notam Pires e Borges, essa elevação se apequena considerando o pico de R$ 196 bilhões no último trimestre de 2013, do qual se caiu para o nível pouco acima de R$ 50 bilhões de meados de 2022. Hoje, o investimento acumulado em 12 meses da Petrobras está no mesmo nível do terceiro trimestre de 2003, há mais de 20 anos.
“Não há nenhum elemento hoje para achar que a alta recente do investimento da Petrobrás vá chegar ao mesmo ponto [na primeira metade da década passada] que levou a problemas de excesso de alavancagem”, avalia Pires. Ele nota que, adicionalmente, recente decisão do TCU, determinando que a Petrobras divulgue sua política de preços, objetiva refrear qualquer tipo de intervenção política na empresa.
A terceira fonte de disseminação de risco fiscal é o crédito público, e, como no caso da Petrobras, Pires crê que há exagero nas preocupações de certas correntes do mercado financeiro. Ele nota inicialmente que o orçamento público federal praticamente não tem espaço para investimentos. Com a redemocratização e a ampliação da seguridade social, o investimento público perdeu espaço. O investimento público total, considerando toda as esferas de governo e as estatais, caiu de um pico de mais de 10% do PIB na segunda metade da década de 70 para 2,61% em 2023. Pires ressalva que essa série histórica, um esforço de agregação do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público do FGV IBRE, tem mais comparabilidade a partir dos anos 90, mas ainda assim traz uma fotografia da queda do investimento do Estado no Brasil. Atualmente, o governo federal, com investimento de 0,3% do PIB em 2023, contribui com a menor parcela do investimento público total, comparado aos governos estaduais (0,72% do PIB em 2023), governos municipais (0,97%) e empresas públicas, com 0,62% do PIB.
Nesse sentido, continua o pesquisador, a válvula de escape atual é a política parafiscal. Assim, ele considera que o objetivo deveria ser o de ter uma política parafiscal razoável, e não de a estrangular. O governo tem uma meta de expandir o crédito do BNDES do nível atual de 1,1% do PIB para 2%. Mas, novamente, esse nível está muito distante dos 4,3% do PIB atingidos em 2010, no período em que de fato houve excessos parafiscais.
Adicionalmente, aponta Pires, a falta de funding é um fator impeditivo que torna bastante difícil que o governo consiga cumprir sua meta de 2% do PIB de financiamentos do BNDES. Assim, para aumentar esse funding, o governo tem criado novos instrumentos, o que tem gerado incertezas sobre até onde vai esse movimento. Para o economista do FGV IBRE, a forma de eliminar esse temor é “organizar a discussão”, isto é, mostrar como se pretende chegar aos 2% do PIB de desembolso. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se viabilizaria a meta, ela também seria reafirmada sem que fossem necessárias novas surpresas daqui em diante.
As concessões brutas de crédito direcionado em termos reais, por sua vez, chegaram a R$ 665,6 bilhões no acumulado de 12 meses até setembro de 2024, o que de fato é uma recuperação em relação ao nível em torno de R$ 405 bilhões entre meados de 2018 e fevereiro de 2020, no imediato pré-pandemia. A partir deste segundo ponto, o crédito direcionado começou a se recuperar. No entanto, a história se repete: os números atuais permanecem muito abaixo do pico real acima de R$ 900 bilhões no início de 2014. E, é bom notar, o BNDES contribuía com apenas 14% do crédito direcionado nacional em setembro deste ano, comparado a quase 40% em fevereiro de 2014. Já quando se tomam as concessões de crédito no sentido amplo, incluindo o bancário e emissões primárias do mercado de capitais doméstico, em agosto de 2024 o crédito direcionado representava apenas 12% daquele total, e o BNDES, 2%.
Em conclusão, os economistas do FGV IBRE têm algumas recomendações de política fiscal para conter a disseminação do risco das contas públicas. Assim, o pacote fiscal recém anunciado (as discussões que deram base a esta Carta ocorreram antes do anúncio) deveria ter como principal objetivo reduzir o risco de descumprimento do novo arcabouço. Adicionalmente, seria desejável que o pacote fosse suficiente para incorporar no orçamento as políticas públicas que são financiadas por fora (o quarto dos componentes da disseminação do risco fiscal, listados no início desta Carta). Neste caso, os economistas se referem em particular ao programa Pé de Meia, de incentivo à permanência e à conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio ou na educação de jovens e adultos (EJA) de escolas públicas; e ao auxílio gás, que deveria ser consolidado com o Bolsa Família, a exemplo do ocorrido quando este importante programa (BF) foi criado.
Outra recomendação é a de vincular a independência das empresas estatais a metas de desempenho e à redução de seu impacto fiscal negativo para o Tesouro Nacional. Pires sugere que esse programa seja implementado em fases, pelas quais as empresas selecionadas se tornariam independentes de forma gradativa, à medida que conseguissem cumprir as metas estipuladas em contratos de gestão.
O ponto mais difícil da lista de sugestões, na visão dos pesquisadores, está ligado à questão das dívidas estaduais. Para eles, é fundamental amenizar o impacto negativo da renegociação de dívidas estaduais, vinculando o acordo às medidas de abertura de espaço fiscal (com metas de ajuste das contas públicas estaduais), de modo a recuperar o resultado primário dos entes subnacionais. É importante interromper o processo de descentralização de recursos fiscais para impedir a descoordenação entre a política fiscal e a política monetária.
O último ponto, finalmente, é o de revisar o sistema de funding das operações de crédito ligadas ao setor público de forma estrutural, para torná-lo mais perene e evitar seguidas medidas pontuais e insuficientes, que têm levado incerteza aos agentes econômicos.
Como se vê, as recentes dúvidas em relação à disseminação de riscos fiscais envolvem questões que são gerenciáveis por parte do governo. Mas o antagonismo federativo permanece como o problema de mais difícil solução, fruto de um conflito político que, por enquanto, não parece ter desfecho claro, mas que requer bastante atenção.
Esta é a Carta do IBRE de dezembro de 2024, da Conjuntura Econômica.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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