Dois anos após a greve, a importância dos caminhoneiros reaparece na pandemia
Em 2018 a greve dos caminhoneiros impactou fortemente a economia brasileira trazendo à tona nossa grande dependência do transporte rodoviário de carga. No período anterior a greve, a mediana da expectativa de crescimento do PIB para aquele ano começou em 2,7% em janeiro e chegou a ser de 2,9% no final de março, passando para 2,5% poucas semanas antes da greve. No final de maio já estava em 2,3% e, um mês depois já era de 1,6%. Os Gráficos 1 e 2 sinalizam os efeitos do impacto econômico desta greve pela ótica das expectativas (Gráfico 1) e pelo que efetivamente aconteceu com o PIB brasileiro, segundo o Monitor do PIB-FGV (Gráfico 2).
Naquele momento, foi exposta uma importante fragilidade da nossa economia ressaltando a ideia de que por mais que a atividade de transporte tenha representação direta de 3,8% na economia brasileira (média do período 2010 a 2017), sua importância não fica apenas restrita a esse percentual. O setor de transporte é extremamente importante para toda a economia com forte impacto em quase todas as atividades econômicas. Com a greve dos caminhoneiros, a incerteza em um setor fundamental abalou as expectativas de crescimento e os índices de confiança no país.
Atualmente a situação é bem diferente. A economia brasileira, assim como o mundo, passa por uma grave crise, sem precedentes, em que todas as atividades econômicas têm sido impactadas por uma crise na saúde e as incertezas quanto ao desempenho da atividade econômica não se baseiam mais, como em 2018, em se o PIB vai crescer 3, 2 ou 1%, mas sim se vai cair 3, 4, 5% ou até mais.[1] Enquanto a greve dos caminhoneiros deixou clara a fragilidade econômica do Brasil, a pandemia de COVID-19 expôs a fragilidade de saúde, socioeconômica entre outras tantas a nível global. Curiosamente, o transporte rodoviário de carga, que foi o principal choque negativo enfrentado pela nossa economia em 2018, nos dias atuais é uma das atividades que garante, até o momento, alguma normalidade a economia brasileira neste ano.
O transporte e entrega de cargas em geral foi considerado, pelo Governo Federal, um dos serviços essenciais que não podem ser paralisados na quarentena para que não haja a interrupção do fornecimento de insumos e de materiais necessários à sobrevivência, saúde, abastecimento e segurança da população.[2] Devido a sua importância, neste texto, foi calculada estimativa da representatividade do transporte terrestre de carga na economia através da inter-relação entre as atividades econômicas. Além desta introdução há mais três seções que abordam: (i) a participação do transporte terrestre de carga no PIB; (ii) a apresentação das abordagens utilizadas para estimar o alcance do transporte terrestre rodoviário, em termos de PIB e, por fim, (iii) a relação que o desempenho do setor tem com a economia, evidenciando uma provável retração mesmo em uma atividade que não foi interrompida pela pandemia e é fundamental na economia.
Participação do transporte rodoviário de carga no PIB
Nas Contas Nacionais, a atividade de transportes é composta por quatro setores: (i) transporte terrestre, (ii) transporte aquaviário, (iii) transporte aéreo e, (iv) armazenamento, atividades auxiliares dos transportes e correio. Desses setores, o transporte terrestre é o mais importante participando com 64% do valor adicionado da atividade (média de 2010 a 2017).
De acordo com os dados da Pesquisa Anual de Serviços (PAS), a maior parte do valor adicionado do transporte terrestre é composta pelo transporte rodoviário de cargas (55,6%), na média de 2010 a 2017. Como a PAS coleta informações no âmbito das empresas, os caminhoneiros autônomos não estão computados por essa pesquisa; sendo, portanto, referente apenas aos empregados das empresas transportadoras. Na análise das Tabelas de Recursos e Usos, do IBGE, estima-se que o valor adicionado gerado pelos autônomos em todo o transporte terrestre é em torno de 18% do valor adicionado total da atividade, na média de 2010 a 2017. Pela ausência de maiores informações sobre o valor adicionado gerado especificamente pelos autônomos na atividade de transporte rodoviário de cargas, adotou-se a participação do transporte rodoviário de carga obtida pela PAS, como englobando todo o transporte realizado pelos caminhoneiros.
A partir dos dados de valor adicionado das Contas Nacionais e da PAS, estimou-se que o transporte rodoviário de carga correspondia a 35,7% do valor adicionado do total do transporte, na média de 2010 a 2017. Ou seja, dos 3,8% que o total de transportes representava na economia, entre 2010 e 2017, em torno de 1,4 p.p. era devido ao transporte rodoviário de cargas.
Estimativas da representatividade do transporte rodoviário de carga na economia
Apesar dessa aparente pequena representação na economia, o transporte realizado pelos caminhoneiros é extremamente relevante ainda mais em um país de dimensões continentais como o Brasil, que não conta com uma malha ferroviária expressiva, ligando os principais mercados do país. A importância econômica do transporte terrestre de carga deve ser medida pela sua própria função como meio de ligação na complexa dinâmica econômica. O transporte como um todo, mais especificamente o transporte rodoviário de carga atua como uma fase fundamental do processo produtivo. Caso haja uma paralisação ou ruptura de seu fornecimento, todo o processo produtivo pode ser comprometido, em diversos graus, não apenas no que se refere a locomoção da produção final do mercado produtor para o consumidor, porém em várias fases que envolvem desde a chegada da matéria prima até a distribuição de bens intermediários e diversas outras ligações a depender da complexidade de cada processo produtivo.
Nesta seção buscou-se mensurar o tamanho da economia que, de certa forma, depende do transporte terrestre de carga. A estimação do quanto este tipo de transporte representa não é trivial, uma vez que não há essas informações disponíveis de forma direta nas Contas Nacionais. Através de alguns indicadores listados abaixo torna-se possível ter uma noção do quanto a atividade representa na economia em termos de PIB, mas a sua real importância não é possível de ser mensurada pela complexidade das relações econômicas e pela dispersão de seu alcance entre vários setores.
A despeito das fragilidades que esse tipo de análise incorre, estimou-se que, a importância do transporte realizado pelos caminhoneiros é algo em torna de 29% do PIB brasileiro. Para chegar à esta conclusão, foram analisadas três tipos de abordagens[3]: (i) a análise do consumo intermediário do transporte terrestre de carga[4] como insumo no processo produtivo das atividades econômicas de maneira a mensurar a dependência desse modal na economia, (ii) a análise das inter-relações para frente (forward linkages) da atividade de transporte terrestre[5], a fim de mensurar o quanto que o transporte terrestre é demandado pelas demais atividades econômicas e, (iii) a análise da representatividade no PIB de uma seleção intuitiva, a cargo da autora, de atividades que mostram certa dependência desse tipo de modal em algum momento do processo produtivo.
Análise da estrutura do consumo intermediário
A análise com base na estrutura de consumo intermediário do Brasil, disponível nas Tabelas de Recursos e Usos (TRUs) divulgadas pelo IBGE, mostrou que o transporte terrestre de cargas foi utilizado, em 2017, como insumo no processo produtivo de 66 atividades no conjunto total de 68 atividades econômicas. Essa observação já mostra a relevância deste modal para a economia como forma de suporte para que as relações econômicas aconteçam, particularidade que também pode ser observada em outras atividades como é o caso da energia e saneamento entre outros segmentos essenciais.
O transporte terrestre de carga foi o 6º insumo mais utilizado no processo produtivo de um total de 128 insumos disponíveis na economia, na média de 2010 a 2017 correspondendo a 3,1% de todo o consumo intermediário. Como praticamente todas as atividades utilizam esse insumo, foi necessária adotar uma hipótese para medir a sua representatividade na economia, a partir das atividades que são mais impactadas. A hipótese adotada foi a de que as atividades mais impactadas pelo transporte terrestre de carga são aquelas em que a utilização deste insumo era, em termos relativos, maior que o percentual médio do consumo intermediário deste modal.
Obviamente a hipótese adotada é forte pois, mesmo que uma atividade não utilize o transporte terrestre de cargas de forma significativa em termos percentuais, este modal ainda pode ser considerado fundamental para a produção dessa atividade. A despeito dessa fragilidade não captada e, da consequente subestimação da representatividade, chegou-se à conclusão que, de 2010 a 2017, a representatividade do transporte terrestre de carga foi em média de 26% do PIB.
Análise das inter-relações entre as atividades
A Matriz Insumo Produto (MIP) divulgada pelo IBGE, permite analisar as relações existentes entre as atividades possibilitando identificar possíveis impactos que alterações em uma atividade gera na economia, uma vez que as atividades são inter-relacionadas.
Neste texto, a utilidade da MIP se dá nas relações que a atividade de transporte terrestre tem para frente, ou seja, o objetivo é analisar quais as atividades que são mais relacionadas com o transporte terrestre de carga do ponto de vista de fornecimento que esta atividade proporciona para elas. Por ser uma análise no âmbito das atividades e não mais dos insumos (produtos), não há disponível nas Contas Nacionais a desagregação entre as atividades de transporte terrestre de carga e de passageiros sendo, portanto, necessário analisar o transporte terrestre total.
O transporte terrestre é a terceira atividade com maior poder de encadeamento para frente no total de 67 atividades econômicas de acordo com a MIP do Brasil de 2015, evidenciando a grande dependência que a economia brasileira tem por esta atividade. Considerando-se a hipótese de que as atividades mais afetadas pelo transporte terrestre são aquelas que apresentam coeficiente médio dos forward linkages acima do coeficiente médio[6] da atividade, selecionou-se com base na estrutura da MIP de 2015, as atividades mais impactadas pelo transporte terrestre e, através das TRUs de 2010 a 2017, chegou-se à conclusão que a representatividade do transporte terrestre de carga foi de 29% do PIB, na média do período. Mais uma vez vale frisar a fragilidade dessa mensuração por não considerar atividades que o transporte terrestre tem encadeamento menor que seu coeficiente médio.
Análise intuitiva
Com base nas atividades apresentadas nas TRUs, de 2010 a 2017 foram selecionadas 37 atividades, de um conjunto de 68 que compõem a economia, como fortemente dependentes do transporte rodoviário de cargas. O critério considerado para essa seleção levou em consideração, a análise do processo produtivo de maneira a pontuar as atividades em que o transporte terrestre de carga aparenta ser mais relevante, seja na fase inicial do transporte dos insumos para serem transformados ou mesmo na fase final em que é necessária que a produção chegue ao mercado consumidor. Não foi utilizado nenhum indicador para balizamento nesta análise. Na média de 2010 a 2017, chegou-se à conclusão que a representatividade do transporte terrestre de carga foi de 32% do PIB, de acordo com esse critério de análise.
No Gráfico 5 estão apresentadas, de 2010 a 2017, as participações estimadas para a representatividade do transporte terrestre de carga, em termos de PIB, de acordo com as três abordagens utilizadas.
Em conjunto, as três análises mostram que o transporte terrestre, apesar de ter sido responsável por algo em torno de 1,4% do PIB, entre 2010 e 2017, tem representatividade muito maior (cerca de 29% do PIB), em termos do que transporta. No entanto, devido à complexidade de mensuração, esse impacto pode ser ainda mais elevado por este modal estar presente no processo produtivo de praticamente todas as atividades econômicas.
Transporte rodoviário de carga e a atual crise econômica
A atual crise econômica gerada pela COVID-19 difere das anteriormente vivenciadas no Brasil por ter origem fora do âmbito econômico (é uma crise de saúde), mas ter efeitos significativos na economia. Há ainda muita incerteza sobre o tamanho do impacto negativo do PIB para este ano; no entanto, praticamente todas as atividades econômicas estão sendo atingidas pelos efeitos econômicos da pandemia.
Conforme já mencionado, o transporte rodoviário de carga é considerado serviço essencial e não foi interrompido com as medidas de isolamento social. Inclusive, o pouco que a economia tem desempenhado e deve continuar desempenhado neste trimestre, deve-se muito aos caminhoneiros; mais até do que nos outros momentos em que essa atividade já era essencial, mas agora, mais uma vez, dois anos após a greve dos caminhoneiros, eles mostram sua força e agora não somente no âmbito econômico.
Apesar da continuidade na realização da atividade, é inevitável que ela também será afetada pela atual crise econômica por ser altamente demandada por diversas atividades. Como espera-se uma retração da economia nesse ano, muito provavelmente a atividade de transporte terrestre (carga + passageiros) também deve retrair dada a alta correlação entre esta atividade com o PIB, conforme evidenciado na análise da variação anual dessas duas séries, no Gráfico 6.
A importância das informações apresentadas neste texto não está na mensuração aproximada dos números em si, até mesmo pela dificuldade de precisão, tanto do impacto que o transporte rodoviário de carga representa no PIB, como do quanto os efeitos da pandemia atingirão o setor. O mais importante da análise, portanto é entender o quanto o processo produtivo e o mercado consumidor brasileiro são altamente dependentes do transporte realizado pelos caminhoneiros. Por estas razões, o transporte rodoviário de cargas é considerado uma das atividades chave para a economia brasileira. A relevância da atividade é bem mais ampla do que sua participação direta no PIB representa. Buscar compreender a inter-relação econômica é muito mais importante e efetiva para a análise. E, na atual conjuntura em que se espera forte retração da economia, nem mesmo a atividade de transporte rodoviário de carga, que não sofreu interrupção com as medidas de isolamento social, deve fugir desse padrão.
Quadro 1 - Atividades econômicas impactadas pelo transporte terrestre de carga
Abordagens apresentadas |
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Análise do consumo intermediário |
Análise das inter-relações para frente |
Análise intuitiva |
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Agricultura, inclusive o apoio à agricultura e a pós-colheita |
X |
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X |
Pecuária, inclusive o apoio à pecuária |
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X |
Produção florestal; pesca e aquicultura |
X |
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X |
Extração de carvão mineral e de minerais não-metálicos |
X |
X |
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Extração de petróleo e gás, inclusive as Ativ. de apoio |
X |
X |
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Extração de minério de ferro, inclusive benefic. e a aglomeração |
X |
X |
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Extração de minerais metálicos não-ferrosos, inclusive benefic. |
X |
X |
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Abate e prod. de carne, inclusive os prod. do laticínio e da pesca |
X |
X |
X |
Fab. e refino de açúcar |
X |
X |
X |
Outros prod. alimentares |
X |
X |
X |
Fab. de bebidas |
X |
X |
X |
Fab. de prod. do fumo |
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X |
Fab. de prod. têxteis |
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X |
X |
Confecção de artefatos do vestuário e acessórios |
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X |
Fab. de calçados e de artefatos de couro |
X |
X |
X |
Fab. de prod. da madeira |
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X |
X |
Fab. de celulose, papel e prod. de papel |
X |
X |
X |
Impressão e reprodução de gravações |
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X |
Refino de petróleo e coquerias |
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X |
X |
Fab. de biocombustíveis |
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X |
X |
Fab. de químicos orgânicos e inorgânicos, resinas e elastômeros |
X |
X |
X |
Fab. de defensivos, desinfestantes, tintas e químicos diversos |
X |
X |
X |
Fab. de prod. de limpeza, cosméticos/perfumaria e higiene pessoal |
X |
X |
X |
Fab. de prod. farmoquímicos e farmacêuticos |
X |
X |
X |
Fab. de prod. de borracha e de material plástico |
X |
X |
X |
Fab. de prod. de minerais não-metálicos |
X |
X |
X |
Produção de ferro-gusa/ferroligas, sider. e tubos de aço sem costura |
X |
X |
X |
Metalurgia de metais não-ferrosos e a fundição de metais |
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X |
X |
Fab. de prod. de metal, exceto máquinas e equip. |
X |
X |
X |
Fab. de equip. de informática, prod. eletrônicos e ópticos |
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X |
Fab. de máquinas e equip. elétricos |
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X |
X |
Fab. de máquinas e equip. mecânicos |
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X |
X |
Fab. de automóveis, caminhões e ônibus, exceto peças |
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X |
X |
Fab. de peças e acessórios para veículos automotores |
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X |
X |
Fab. de outros equip. de transporte, exceto veículos automotores |
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X |
X |
Fab. de móveis e de prod. de indústrias diversas |
X |
X |
X |
Comércio e reparação de veículos automotores e motocicletas¹ |
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X |
X |
Comércio por atacado e a varejo, exceto veículos automotores¹ |
X |
X |
X |
Transporte terrestre |
X |
X |
X |
Armazenamento, Ativ. auxiliares dos transportes e correio |
X |
X |
X |
Alimentação |
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X |
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Edição e edição integrada à impressão |
X |
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¹ As atividades de Comércio listadas não são apresentadas na MIP, mas foram consideradas mesmo nessa abordagem dada a importância que o transporte tem com esta atividade.
Fonte: IBGE Contas Nacionais. Elaboração própria.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
[1] A mediana das expectativas de mercado, segundo o Boletim Focus de 30/04, indica queda de 3,76% do PIB. O FGV IBRE projeta recuo de 3,4% da atividade econômica e a projeção do FMI é de -5,3%.
[3] Ao final do texto, no Quadro 1, são apresentadas as atividades consideradas em cada umas das abordagens.
[4] Por não ter informação disponível especificamente do transporte rodoviário de carga, o transporte terrestre de carga foi analisado como proxy. Mais da metade transporte terrestre corresponde ao transporte rodoviário de carga (55,6%), segundo dados da PAS, de 2010 a 2017.
[5] Conforme mencionado na nota anterior, o transporte terrestre foi utilizado como proxy do transporte rodoviário de carga.
[6] Não foi incorporado o próprio transporte terrestre para a obtenção do coeficiente médio da atividade pois seu valor destoa do restante das observações.
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