Macroeconomia

Duas visões distintas sobre o risco inflacionário do pacote de Biden

8 mar 2021

A economia norte-americana deve ter forte recuperação em 2021, segundo a maioria das previsões, depois de recuar 3,5% em 2020, resultado bem melhor do que as projeções em meados do ano passado. Em relação a 2021, na ponta mais otimista, o Goldman Sachs prevê crescimento de 6,8% este ano. A média das estimativas é de 4,5%, segundo a revisão recente do Survey of Professional Forecasters, uma espécie de Focus dos EUA. A campanha de vacinação avança celeremente nos Estados Unidos e, para além de todos os estímulos monetários e fiscais concedidos em 2020, o governo de Joe Biden, majoritário nas duas casas do Congresso, prepara novo impulso superior a US$ 1 trilhão (a proposta de partida é de US$ 1,9 trilhão).

É sabido que a inflação nos Estados Unidos e nos países ricos em geral está em níveis muito baixos há mais de uma década, assim como os juros. O crescimento efetivo e potencial dessas economias também caiu. O fenômeno, chamado de estagnação secular, tem múltiplas causas, que serão abordadas à frente nesta Carta.

Uma questão fundamental, inclusive para o Brasil, é saber se o aquecimento da economia americana em 2021 pode reviver pressões inflacionárias de forma mais contundente nos Estados Unidos. Se isso ocorrer, as taxas de juros americanas podem subir de forma abrupta, o que desestabilizaria países emergentes com fragilidades macroeconômicas, como o Brasil.

Dois pesquisadores do FGV IBRE, Samuel Pessôa e José Júlio Senna, têm visões distintas sobre o tema. Embora não prevejam inflação iminente nos Estados Unidos, Pessôa enxerga no pacote de Biden um risco inflacionário maior do que Senna.

Pessôa concorda com os argumentos que embasam a tese da estagnação secular, e que levaram a taxa real neutra de juros americana ao nível muito reduzido de 0,5%. Em algumas contas, esse indicador aparece até como negativo. Em particular, o pesquisador relembra a grande dificuldade de retomada da atividade econômica nos EUA, assim como em outros países ricos, nos anos que se seguiram à crise financeira global de 2007-2009.

Mas argumenta que é preciso separar o aspecto estrutural do conjuntural. Assim, a carência de demanda agregada estrutural não garante que o pacote de estímulos não trará pressão no mercado de bens e serviços. Adicionalmente, Pessôa avalia que a recuperação econômica da pandemia será plena nos Estados Unidos (e nos países em geral), e o nível do PIB retornará ao ponto da trajetória em que estaria caso não houvesse o evento da Covid-19. Em outras palavras, o impacto da pandemia na atividade não deixará resíduo na série histórica.

Pessôa destaca como esse prognóstico é diferente do ocorrido após a crise financeira global. Naquele caso, problemas de regulação no setor de crédito hipotecário para a baixa renda e o mau uso de inovações financeiras levaram a um crescimento excessivo e artificial da economia americana, que puxou a global. Assim, na retomada não só não se voltou ao ponto da trajetória em que se estaria no caso de ausência da crise, como a própria tendência de crescimento se desacelerou. Tratou-se de uma crise endógena, produzida pelo próprio funcionamento do sistema econômico, cujas distorções e excessos levaram à penosa recuperação que se seguiu.

Segundo o pesquisador, a pandemia é um choque econômico totalmente distinto. A reconstituição do tecido econômico após a Covid-19 é mais fácil. Restaurantes quebraram e funcionários ficaram desempregados por causa das quarentenas e lockdowns. Quando o setor de serviços retomar plenamente, como efeito do controle da pandemia pela vacinação, haverá demanda por novos restaurantes e aquela mão de obra será recontratada. Alguns segmentos, como viagens aéreas, podem sofrer efeitos mais duradouros, mas serão mudanças localizadas. Já no caso da crise financeira global, setores inteiros da economia, como o imobiliário e financeiro, foram redimensionados para baixo de forma permanente. Isso afeta definitivamente a demanda. Tomando-se como exemplo restaurantes cuja demanda dependia do consumo de profissionais daqueles setores, não há volta depois da recuperação.

O economista acrescenta que o fato de a retomada ser ou não “em V” não é tão importante, e depende da forma, menos ou mais eficaz, com que cada país lidou com a pandemia. A China, por exemplo, que foi bem-sucedida em suprimir a Covid-19 em seu território, está experimentando inequivocamente uma recuperação em V. Já nos Estados Unidos e em muitos países do mundo, houve forte retomada no terceiro trimestre de 2020, mas a força da segunda onda e seu impacto negativo na mobilidade e nos serviços pode provocar novas flutuações. Ainda assim, ao fim e ao cabo, a vacinação levará ao fim da pandemia e a economia retornará à tendência anterior e ao ponto da trajetória em que estaria sem o novo coronavírus.

É nesse contexto que Pessôa analisa o potencial inflacionário dos muitos estímulos que se acumulam na economia norte-americana. Um pacote fiscal de cerca de 10% do PIB, como o de Biden na mais modesta hipótese, mesmo se considerando multiplicadores pequenos, representa, na visão do pesquisador, um impulso bem maior que a atual ociosidade de fatores nos Estados Unidos. Segundo suas estimativas, o mercado de trabalho no quarto trimestre de 2021 estará um ponto percentual mais apertado do que o vigente no mesmo período de 2019. Como o economista escreveu em recente coluna da Folha de S.Paulo, “o equilíbrio estrutural com carência de demanda agregada e estagnação secular não significa que a economia suporta sem inflação qualquer impulso de demanda. Em 2021 os limites da economia americana serão testados”.

José Júlio Senna, por seu turno, considera que a pandemia deve reforçar alguns fatores da estagnação secular, enquanto outros permanecerão inalterados. Em balanço, portanto, as forças desinflacionárias permanecerão, e os efeitos dos pacotes fiscais sobre a demanda e, possivelmente, a inflação serão temporários. Ele prevê continuidade do crescimento modesto e da inflação e dos juros baixos nos países ricos nos próximos anos.

Senna aponta que a estagnação secular tem causas demográficas e tecnológicas que não devem ser alteradas pela pandemia. O menor crescimento populacional, por exemplo, inibe investimentos em infraestrutura. Os projetos modernos de expansão nas empresas de ponta, como de tecnologia, são pouco intensivos em capital. O baixo crescimento da produtividade nos últimos anos também inibe investimentos.

Por outro lado, a piora da concentração de renda dentro dos países aumenta a poupança, pois a propensão marginal a consumir dos ricos é menor. O aumento da expectativa de vida também incentiva a poupança, pois as pessoas têm que planejar para um período maior de vida sem rendimentos do trabalho. A combinação de maior vontade de poupar e menor de investir faz com que sobrem fundos nos mercados financeiros, reduzindo os juros de equilíbrio simultaneamente ao enfraquecimento da atividade econômica. A capacidade da política monetária de estimular a demanda, que já é mais problemática que a de contê-la, se reduz ainda mais com os juros perto de zero.

Senna nota que a pandemia, que afetou mais os serviços, especialmente nos segmentos mais tradicionais, que empregam mão de obra menos qualificada, acentuou a desigualdade, assim como os ganhos recentes nos mercados acionários, que são mais canalizados para os ricos, tiveram idêntico efeito. Esse, portanto, é um fator que reforça uma das causas da estagnação secular.

Adicionalmente, a pandemia aumenta a insegurança e as incertezas, o que inibe o consumo e estimula a poupança precaucional. Mesmo após o controle da Covid-19 pela vacinação, permanecerão dúvidas sobre o futuro da mobilidade e das viagens internacionais, com o advento da massificação do home office, que podem afetar o consumo, os investimentos e contratação de mão de obra nos setores atingidos. Segundo o economista, o grande desafio econômico pós-pandemia no mundo todo, incluindo Brasil e Estados Unidos, é a geração de emprego, que liquidamente tornou-se nula nos últimos meses na economia americana.

Senna pensa que a vacinação não terá o poder de eliminar rapidamente as incertezas, que devem perdurar por bastante tempo. Há problemas como a lentidão das campanhas de imunização mesmo em vários países avançados, como os da Europa continental, e a resistência de determinados segmentos da população em se vacinar. Em consequência dessa lentidão, a segunda onda continua a se alastrar e surgem novas cepas do coronavírus, em relação às quais a eficácia das atuais vacinas não é necessariamente a mesma.

Já a produção em massa de vacinas, que contêm componentes biológicos, é sujeita a complexos problemas que dão ao processo uma previsibilidade menor do que a de medicamentos puramente químicos. Assim, não surpreendem os atrasos nas entregas a países de vacinas e seus componentes por parte de diversos laboratórios. A criação de vacinas para a Covid-19 em menos de um ano, ressalva Senna, é um fantástico avanço para a humanidade, mas isso não quer dizer que vá eliminar de uma hora para a outra as grandes incertezas atuais.

Ele cita ainda estudo de Jordà, Singh e Taylor que sugere, com base em 19 pandemias do passado, que a taxa natural de juros tendeu a cair após esses eventos. Evidentemente, nos casos examinados não houve a rápida disponibilização de uma vacina, como atualmente, mas, ainda assim, fica claro que a incerteza associada a grandes pandemias é baixista para atividade e juros.

Por todas essas razões, Senna não enxerga terreno para a inflação ganhar força no mundo pós-pandemia. Ele nota que os planos de estímulo de Biden têm duas vertentes. A primeira, que se discute no momento, é de um “rescue plan”, plano “de resgate”. Como tal, visa compensar perdas na base de “one-shot”, ou de iniciativas por curto período, como recursos para reabertura de escolas ou cheques de US$ 600 e 1.400 de seguro-desemprego. Não se trata, portanto, de um plano keynesiano de impulsão à demanda, que poderia vir no segundo momento com o “recovery plan”, mas sobre o qual ainda pouco se fala. Esse caráter especificamente pontual das medidas atualmente discutidas reforça o fato de que impulsos fiscais, como lembra Senna, não alteram a trajetória de crescimento das economias.

Por outro lado, o pesquisador reconhece o volume extraordinário do pacote proposto por Biden, cujos efeitos já se sentem em dados divulgados de renda e consumo nos Estados Unidos (nesse segundo caso, como era de se prever, mais no mercado de bens do que no de serviços). Senna considera que o estímulo vai impulsionar o crescimento e pode até afetar a inflação no curto prazo.

Mas ele vê o efeito inflacionário se dissolvendo rapidamente, por causa das forças desinflacionárias já mencionadas, ligadas à estagnação secular, que têm algumas causas que a pandemia pode reforçar. Em particular, discordando de Lawrence Summers, que reintroduziu a expressão “estagnação secular” no atual debate econômico, mas que é um dos que alertam contra o risco inflacionário do pacote de Biden, Senna não vê sentido na comparação do atual cenário com a estagflação dos anos 70.

O pesquisador do FGV IBRE observa que a inflação na década de 70 “não nasceu da noite para o dia”, e teve múltiplos e continuados fatores, como expansões fiscais prolongadas e inflacionárias na “guerra à pobreza” do presidente Lyndon Johnson e no financiamento da guerra do Vietnã; dois choques do petróleo; o colapso do sistema de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods; e até uma experiência naturalmente fracassada de controle de preços e salários na primeira metade dos anos 70 nos Estados Unidos.

Isso é bem diferente de uma expansão fiscal na esteira de uma pandemia de enorme impacto econômico negativo, num período em que os jovens americanos nem sabem o que é inflação alta, o que é benéfico para as expectativas. Nos últimos 10 anos, a alta anual de preços média de 1,5% ficou sistematicamente abaixo da meta inflacionária de 2%.

De qualquer maneira, menciona o pesquisador, a alta recente da rentabilidade dos títulos do Tesouro americano de 10 anos para 1,5%, nível que vigorava antes da pandemia, sinaliza que há algum temor de inflação, o que desestabilizou as bolsas nas últimas semanas. Mas Senna não vê razão para preocupações maiores, e pensa que o estresse deve ser passageiro.

Ele observa que, se de fato o mercado estivesse apreensivo com a perspectiva de inflação mais alta nos Estados Unidos e a consequente alta de juros, o dólar se fortaleceria. O “dollar index”, porém, que mede a cotação do dólar frente às moedas mais relevantes, desvalorizou-se desde a alta inicial na pandemia, com um repique muito modesto recentemente.

Finalmente, mesmo que a inflação implícita entre juros pré e pós fixados nos Estados Unidos tenha subido recentemente para 2,2% para o prazo de 10 anos, Senna ressalta que a inflação implícita “nos 5 anos após os próximos 5 anos” é de 2%, exatamente a meta do Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA). O pesquisador fez o mesmo cálculo para o juro real. Em 10 anos é de -0,8%, e nos 5 anos após 5 anos de 1%.

Na interpretação de Senna, a hipótese implícita nesse padrão é de que o mercado projeta que o Fed reaja à inflação em alta subindo os juros. Dessa forma, a inflação não se eleva exatamente porque se espera uma reação do Fed – algo que Senna vê faltando nas análises sobre possível descontrole inflacionário em função do pacote de Biden.

Em resumo, Senna pensa que as características da pandemia acentuam forças que já estavam em curso antes do coronavírus nas economias avançadas, e que se traduzem por grande desejo de poupar e pequeno de investir, jogando para baixo crescimento, inflação e juros. Para ele, pode até haver susto inflacionário, mas que não se perpetuará.


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Esta é a Carta do Ibre de março de 2021, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

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