Fiscal

É fundamental utilizar bem o grande ganho de receita pública que virá do setor extrativo até 2030

8 jun 2022

As receitas públicas associadas ao setor extrativo deverão ser 1,2 ponto porcentual (pp) do PIB maiores, ao ano, na média 2022-30, comparativamente à média 2011-20. Esse “windfall” tributário tem que ser bem empregado.

Em 2021, arrecadação bruta total da União chegou a 22,3% do PIB, bem acima da média de 2014-2019, de cerca de 21% do PIB, aproximando-se da média observada em 2011-12, de 22,4% do PIB.

Boa parte desse desempenho em 2021 deveu-se ao fato de que a arrecadação somada de royalties, participações especiais, dividendos pagos à União pela Petrobrás e tributos federais pagos pela indústria extrativa mineral (excetuando-se contribuições previdenciárias) atingiu 1,85% do PIB, comparado a médias de 1,06% do PIB em 2018-2020 e de 0,92% do PIB das mesmas receitas em 2011-2020.

Em outras palavras, a alta das receitas públicas federais associadas à extração de recursos naturais, sobretudo petróleo, gás natural e minério de ferro, foi responsável por um salto substancial, de quase 1% do PIB, na arrecadação bruta federal do ano passado.

Olhando um pouco mais para trás, a arrecadação total da União caiu de cerca de 22,5% do PIB em 2011 para aproximadamente 21% em 2014. Boa parte dessa queda pode ser explicada pelo aumento do “gasto tributário federal” (renúncias fiscais), que saltou de 3,5% para 4,5% do PIB naquele período (em 2019, foi de 4,3% do PIB).

Entre 2014 e 2018, a arrecadação federal oscilou em torno de 21% do PIB. Em 2019, superou 22%, mas a razão foi um ingresso atípico e expressivo de receitas associadas ao leilão da chamada cessão onerosa, da ordem de 0,95% do PIB.

Em 2020, com as desonerações/diferimentos e expressiva queda na atividade, a arrecadação despencou para pouco acima de 19,5% do PIB, recuperando-se de forma espetacular para 22,3% do PIB em 2021.

Esse impacto da extração de recursos naturais, sobretudo petróleo e gás natural, na arrecadação federal é um fenômeno extremamente relevante no horizonte à frente, mas que aparentemente tem passado ao largo do radar da maioria dos analistas.

As receitas com royalties e participações especiais (recursos naturais em geral, incluindo a Compensação Financeira pela Exploração Mineral, CFEM) cresceram significativamente entre 2001 e 2021, passando de 0,35 ponto percentual (p.p.) para 1,08 p.p. do PIB.

Já os dividendos pagos pela Petrobrás à União corresponderam a 0,09% do PIB em 2001, mantiveram-se no intervalo entre 0,05% e 0,16% do PIB até 2011, e a partir daí caíram. De 2015 a 2017, com a crise da Petrobrás e a forte queda da cotação internacional do petróleo (que chegou a cerca de US$ 30 no começo de 2016, vindo de cerca de US$ 100 em meados de 2014), a conta foi zerada, e depois ficou em apenas 0,01-0,02% do PIB em 2018-20. Em 2021, no entanto, os dividendos saltaram para 0,24% do PIB, o valor mais alto do período analisado, iniciado em 2001.

Finalmente, há os tributos federais pagos pelo setor de extração mineral (petróleo inclusive), o que exclui royalties, participações especiais e receitas previdenciárias. Trata-se da soma de IPI, IRPJ, IRRF, IOF, PIS-Pasep, COFINS, CSLL, dentre outros.

Esse conjunto de tributos arrecadou 0,44% do PIB em 2011 e chegou a um nível mínimo no período recente de 0,13% do PIB em 2016. Em 2021, trouxe 0,52 p.p. do PIB para os cofres da União, crescendo em relação aos 0,27 p.p. do PIB de 2020.

Exposta a evolução das receitas associadas ao setor extrativo nas últimas duas décadas, a grande questão é saber o que acontecerá daqui para a frente como a trajetória dessa arrecadação.

O economista Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE, que levantou os números já apresentados nesta Carta, realizou um trabalho detalhado de projetar as receitas federais advindas do setor extrativo no período de 2022 a 2030.

Segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031 (PDE 2031), da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a extração de petróleo e gás no Brasil deverá crescer pouco mais de 80% até 2030. Dessa forma, a produção de petróleo deve saltar de 2,9 milhões de barris por dia (b/d) em 2021 para 5,2 milhões de b/d em 2029, volume que será mantido em 2030 e 2031. O aumento é oriundo do pré-sal. Já a produção bruta de gás está projetada para sair de 134 milhões de metros cúbicos por dia (m3/d) em 2021 para 277 milhões de m3/d em 2031. Novamente, toda a alta vem das áreas do pré-sal.

Essas projeções estão alinhadas àquelas da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês pela qual é reconhecida internacionalmente) e da FGV Energia. A alta projetada da produção doméstica de petróleo e gás vem na esteira de crescimento de 50% na última década e de 150% em 20 anos – que fez, inclusive, com que o Brasil passasse a ser exportador líquido de petróleo e derivados a partir de 2016 (o saldo comercial nessa conta foi superavitário em US$ 19 bilhões em 2021). Já a produção de minério de ferro deverá crescer cerca de 30% até 2030, tomando como referência o “guidance” corporativo da Vale.

Quando se pensa no potencial arrecadatório associado à extração de petróleo e gás nos anos à frente, é preciso levar em consideração também o “óleo-lucro”, o petróleo que cabe à União nos contratos de partilha. O regime de partilha foi criado em 2010, mas a produção sob esse tipo de contrato começou somente em 2018. Na prática, a partilha introduziu um aumento da taxação sobre a extração de petróleo e gás natural – no jargão internacional, aumentou o “government take”.

Essa receita associada ao óleo-lucro, quase irrelevante até 2021, deverá ter crescimento robusto até 2030. Segundo projeções publicadas em janeiro deste ano pela PPSA (a estatal criada para representar a União nos contratos de partilha e para comercializar o óleo-lucro), o “government take” deve sair de 26 mil barris por dia 2022 para 1,127 milhão b/d em 2031.

Dessa forma, quando se projeta a soma da arrecadação de royalties e participações especiais (do setor extrativo em geral, incluindo CFEM etc.), dividendos pagos pela Petrobras à União e o óleo-lucro da partilha, chega-se a uma receita que deve atingir em média 1,7% do PIB entre 2022 e 2030, comparado com 0,7% do PIB na média de 2001 a 2021. Em 2021, essa receita foi de 1,33% do PIB (1,08% de royalties etc., 0,24% de dividendos e 0,01% de óleo-lucro). Para 2030, a projeção é de 2,25% do PIB (respectivamente, 1,19%, 0,16% e 0,90% nos três componentes mencionados acima).

Na verdade, como acrescenta Borges, o aumento da arrecadação do setor extrativo pode ser ainda maior, já que o Brasil tem a terceira maior reserva de níquel do mundo, um dos minerais mais demandados na transição energética. Hoje o país produz pouco níquel, mas isso pode mudar diante da demanda crescente.

Já em termos dos tributos federais pagos pelo setor extrativo – incluindo petróleo e gás, carvão mineral, minérios metálicos e não metálicos e atividades de apoio a esses setores, mas excluindo royalties e receitas previdenciárias –, saltou-se de uma média de 0,24% do PIB de 2011 a 2020 para 0,52% do PIB em 2021 (ante 0,27% em 2020). A projeção é de um pico de 0,62% do PIB em 2022, seguido de queda para um patamar por volta de 0,40-0,45% do PIB até 2030 (para quando a previsão é de precisamente este último número).

Finalmente, chega-se à soma de todas as receitas federais associadas ao setor extrativo: royalties etc., dividendos da Petrobras, óleo-lucro e tributos federais.

Segundo Borges, mesmo apresentando alguma volatilidade por conta da expectativa de reversão parcial dos atuais preços do petróleo em 2023-24, após o choque da guerra entre Rússia e Ucrânia, as receitas anuais associadas ao setor extrativo deverão ser 1,2 p.p. do PIB maiores, ao ano, na média 2022-30, comparativamente a média 2011-20.  De uma média de 0,92% do PIB em 2011-20, projeta-se elevação para 2,11% do PIB em média em 2022-30. Esse conjunto arrecadatório atingiu 1,85% do PIB em 2021 e deverá chegar a 2,31% do PIB em 2022.

Essa alta forte recente (em 2020 foi ligeiramente acima de 1% do PIB) deve-se em boa parte à escalada do preço das commodities – e do petróleo em particular – na saída da pandemia, com o choque altista adicional da guerra da Ucrânia. Assim, a projeção é de queda em 2023 e 2024 (ante 2022), na suposição de normalização dos mercados, com a receita ligada ao setor extrativo chegando a um mínimo na próxima década de 1,6% do PIB em 2024. A partir desse ponto, ela voltaria a subir, levada basicamente pelo aumento da produção doméstica de petróleo e gás. Em 2030, chegaria a 2,71% do PIB.

Esse cenário base de Borges conservadoramente leva em conta uma cotação do barril de petróleo do tipo Brent de US$ 65 a partir de 2024 (a preços de 2021), alinhada à média real efetivamente observada em 1980-2021. O pesquisador observa que projeções de consenso mais recentes indicam cotação do petróleo tipo Brent em torno de US$ 70 o barril no médio prazo, a preços de hoje. No caso do minério de ferro, ele admite uma cotação de US$ 80 no médio prazo (a preços de 2021), metade do observado na média do ano passado.

Numa análise de sensibilidade, o economista aponta que preços do barril de petróleo do tipo Brent de US$ 45, US$ 55, US$ 75 e US$ 85 a partir de 2024 (a preços de 2021) levariam a arrecadação total da União vinculada à indústria extrativa a atingir em 2030 valores correspondentes a, respectivamente, 2%, 2,3%, 3,1% e 3,4% do PIB (vale lembrar os percentuais históricos de 0,92% do PIB na média 2011-20 e 1,06% em 2018-20).

Borges aponta que, curiosamente, esse “commodity windfall” (isto é, receita adicional proveniente de fatores temporários, ainda que duradouros) não parece estar incorporado às projeções fiscais mais recentes do FMI para o Brasil (abril de 2022), que estimam queda significativa das receitas federais primárias entre 2022 e 2027, em percentual do PIB. De forma semelhante, a Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, em sua mais recente atualização das projeções fiscais de longo prazo, publicada em maio deste ano, projeta queda da receita bruta da União de 22,3% para 20,4% do PIB entre 2021 e 2031. Finalmente, nas projeções do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2023, a receita primária total do Governo Central passaria de 21,95% do PIB em 2022 para 21% em 2025.

As projeções de Borges, no entanto, mostram que o aumento das receitas associadas ao setor extrativo, observado em 2021, tende a persistir ao longo da próxima década, por conta sobretudo da forte expansão projetada da extração doméstica de petróleo e gás e do aumento do “government take” na produção sob o regime de partilha.

Contudo, ele nota que são receitas voláteis, em alguma medida contingentes e associadas à exploração de recursos naturais finitos. Dessa forma, não deveriam ser utilizadas para bancar aumentos permanentes de gasto nem, por outro lado, reduções permanentes de carga tributária. Isso é ainda mais imperativo tendo-se em conta a situação fiscal brasileira ainda bastante frágil.

Segundo o economista, esse contexto criado pelas receitas do setor extrativo indica que não se pode pensar apenas no teto de gastos, possivelmente reformado, como principal regra fiscal. É preciso também dispor de metas de resultado primário bem calibradas, que na prática definam um piso para a carga tributária, pelos menos até o final da década (evitando assim reduções “populistas” da carga tributária em períodos eleitorais). Idealmente, essas metas de primário deveriam ser ajustadas ao ciclo econômico e estar ligadas umbilicalmente a um “guidance” de médio prazo para a trajetória da dívida líquida do governo geral como proporção do PIB.

Seria útil também, na visão do economista – ecoando sugestão de Nelson Barbosa, pesquisador associado do FGB IBRE – a criação de uma rubrica discriminando as receitas associadas à exploração de petróleo e gás natural na contabilidade pública, para dar transparência ao impacto desse fator na arrecadação geral, dada a relevância crescente que elas tendem a ter daqui em diante.

Levando em conta a questão da equidade intergeracional, Borges se pergunta se o “windfall” extrativo não deveria ser reservado, pelo menos até 2030, para viabilizar a consolidação fiscal necessária e/ou impulsionar a infraestrutura e o capital humano, em vez de ser dispersado em gastos menos vitais para o desenvolvimento econômico e social.

Ele argumenta que vários estudos vêm apontando o mal uso das receitas de royalties pelos municípios recipientes e mesmo por alguns estados, como o Rio de Janeiro. A Lei 12.734, de 2012, buscou repartição mais igualitária dos royalties do petróleo, sobretudo daqueles associados à produção offshore (no mar), mas não está em vigor em função da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 4917, impetrada pelo Estado do Rio, e que aguarda julgamento pelo STF. Finalmente, em relação às receitas de óleo-lucro sob o regime de partilha, há o direcionamento para o Fundo Social, da União, devendo ser gastas em educação (75%) e saúde (25%), de acordo com a Lei 12.858 de 2013. O fato, porém, como nota o economista, é que tem havido várias tentativas de apropriação de parte dessa receita por outras esferas (como, por exemplo, um “jabuti” incluído em Projeto de Lei recente aprovado pelo Congresso e vetado pelo presidente Bolsonaro, que destinava 30% dessas receitas para estados e municípios e outros 20% para a criação de uma nova estatal de gasodutos)

Já o economista Manoel Pires, pesquisador associado do FGV IBRE, reforça que é preciso muita cautela para evitar a ideia de que as receitas associadas ao petróleo serão uma panaceia para os problemas fiscais brasileiros. Em Cartas do Ibre recentes, das quais participou, defendeu-se a visão de que o Brasil está passando por uma melhora fiscal surpreendente no curto prazo, mas que persistem problemas sérios a resolver no médio e longo prazo.

Há, por exemplo, o forte aumento dos juros, que vai se manifestar de forma crescente como impulsionador do déficit nominal, que se transmite diretamente para relação dívida/PIB. E é também bom lembrar, como já notado, que após a alta forte em 2021/22, a arrecadação ligada ao petróleo, supondo a normalização dos mercados, recuaria em 2023 e 2024, só voltando a superar 2% do PIB a partir de 2027 no cenário base traçado por Borges. Assim, é prudente não contar demais com essa receita como viabilizadora do ajuste fiscal no próximo mandato presidencial.

É verdade que a receita voltaria a crescer na segunda metade da década, até nível muito expressivo em 2030 (quase três vezes maior do que aquele observado em 2018-2020). Mas aí, como ressaltam tanto Pires quanto Borges, será vital fazer um bom aproveitamento desse “commodity windfall”. A história de inúmeros países nas últimas décadas mostra a frequência com que o “presente dos céus” representado pela extração de recursos naturais pode ser tornar uma “maldição”, que mais atrapalha do que ajuda o desenvolvimento econômico e social.


Esta é a Carta do Ibre de junho/2022, publicada pela Conjuntura Econômica.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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