Cenários

É hora de rebalancear o ajuste fiscal

28 jun 2024

Desde 2015, se debate se ajuste fiscal deve ser todo pela receita ou todo pela despesa. Na verdade, dois lados devem ser abordados e ajuste não pode ser “nem tão rápido que seja impossível, nem tão lento que ninguém acredite”

O governo estabeleceu uma nova programação fiscal, reduzindo a meta de 2025 e dos anos seguintes. A mudança se justificou por uma confluência de fatores. Em primeiro lugar, o ambiente político, num contexto de eleições municipais, desfavorece o ajuste. Adicionalmente, há um processo de desgaste da relação entre o Executivo e o Legislativo no âmbito federal. Finalmente, o resultado fiscal de 2024 está baseado em muitas receitas não recorrentes e em grande esforço de aumento da arrecadação, num ritmo que deve se reduzir nos próximos anos. Com tudo isso, a distância para o cumprimento da meta original de superávit de 0,5% do PIB em 2025, a partir do resultado previsto em 2024, é superior a R$ 100 bilhões.

A nova programação de resultados primários adia em um ano a melhora fiscal e distribuiu o ajuste para a frente de forma mais gradual. Dessa forma, a meta de 2025, de zerar o primário, era, na programação anterior, a meta de 2024. Adicionalmente, em vez de progredir a partir desse ponto com 0,5% do PIB de melhora por ano (superávit de +0,5% do PIB em 2025 e +1% em 2026) como na programação anterior, o ritmo agora é mais gradativo: +0,25% em 2026, +0,5% em 2027 e +1,0% do PIB em 2028. Em torno das metas, permanece uma banda de tolerância de 0,25% do PIB para mais e para menos.

Na visão de Manoel Pires, pesquisador do FGV IBRE, existe um conjunto de razões pelas quais o governo, na programação inicial (mudada recentemente, como explicado acima), definiu uma trajetória mais arrojada de superávits primários. Em primeiro lugar, o economista vê uma tentativa de superar a desconfiança do mercado com relação ao governo de esquerda, apresentando uma agenda que seria bem-vista pelo mercado, gerando o benefício da dúvida. Outra explicação é que o esforço fiscal maior no início do governo aproveita o período de maior popularidade. Também houve a ideia de coordenar a política macroeconômica para facilitar a redução da taxa de juros, com um esforço fiscal mais significativo. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, costumava se referir a esse último fator como a “harmonia entre política fiscal e monetária”. Finalmente, a trajetória mais rápida de ajuste fiscal na primeira programação de saldos primários era um reconhecimento tácito de que o problema das contas públicas é, de fato, potencialmente sério.

Quanto a esse último ponto, Pires apresentou na preparação desta Carta uma série de dados e análises que confirmam a gravidade das dificuldades fiscais. O déficit primário acumulado em 12 meses até março de 2024, de 2,44% do PIB, é muito próximo do período de crise econômica de 2015 e 2016.O mesmo ocorre com o déficit nominal, de 9,24% do PIB em março de 2024 que, para Pires é um número compatível com períodos de crise. A despesa no presente com juros nominais, de 6,8% do PIB, permanece elevada. A razão para isso é que, mesmo com a queda dos juros, a dívida líquida passou, em termos aproximados, de 30% para 60% do PIB entre a crise de 2015-16 e o período atual.

Tanto a dívida líquida quanto a dívida bruta do setor público estão em tendência de crescimento, atingindo, em março de 2024, respectivamente 75,5% e 60,9% do PIB. A tendência de alta não parece explosiva, mas é preciso levar em conta que o PIB tem crescido num ritmo relativamente forte no pós-pandemia. O fato de que, mesmo assim, a relação dívida/PIB aumente preocupa, porque parece não haver espaço para estabilizá-la via crescimento do denominador, isto é, do PIB.

Quando se toma a piora do endividamento público em 2015-16, é preciso levar em conta que o hiato do produto caiu a quase -5% à época. É natural numa economia com mais capacidade ociosa e em recessão que a receita do governo caia e a demanda por política social aumente, com ampliação dos déficits. O problema agora é que, com o hiato do produto até ligeiramente positivo (como projeta a Instituição Fiscal Independente), o déficit público é próximo dos níveis dos tempos de crise de 2015-16, o que é muito preocupante. Também segundo a IFI, o Brasil em 2023 teve praticamente o mesmo déficit estrutural (-1,65% do PIB) do que em 2016 (-1,67% do PIB).

Pires nota ainda que, ao contrário de momentos do passado, em que governos nessa situação usavam receitas não recorrentes para conter o déficit, hoje despesas não recorrentes estão estimulando a economia, como o pagamento de precatórios no final do ano passado.

Com a reprogramação de resultados primários, o ajuste ficou mais lento, como já mencionado. Mas o pesquisador do FGV IBRE nota que mesmo a ideia de que haverá melhora do resultado fiscal a cada ano ficou comprometida. A meta para 2025 é de saldo primário zero, mas com a margem de tolerância até déficit de 0,25% do PIB e ainda a possibilidade de descontar o pagamento de precatórios, estimados em R$ 39 bilhões. Na prática, o déficit primário em 2025 pode ser da ordem de R$ 70 bilhões – possivelmente pior que o resultado de 2024, que deve surpreender positivamente com as receitas extraordinárias.

Um segundo problema é que as despesas obrigatórias estão crescendo numa velocidade maior que a permitida pelo novo arcabouço fiscal, o que comprime as despesas discricionárias. Com isso, surgem dúvidas sobre a sustentabilidade do arcabouço fiscal no médio prazo, e até mesmo em 2025 e 2026. Assim, é possível pensar que, se o arcabouço fiscal está em risco, talvez nem o ajuste mais lento agora programado pelo governo seja realizado. No PLDO de 2025, o governo está prevendo despesas obrigatórias de 16,87% do PIB em 2024 e de 17,24% do PIB em 2025, com crescimento de mais de 0,3 ponto porcentual (pp) do PIB. A projeção de despesa discricionária em 2025, de 1,4% do PIB, é menor do que o nível da pandemia, de 1,5% do PIB (e cai gradativamente até 0,68% do PIB em 2028). É, na visão de Pires, uma projeção que coloca em dúvida a viabilidade do arcabouço fiscal. Na sua opinião, se essa previsão se confirmar, é possível que já em 2025 haja mudança do arcabouço.

O pesquisador acrescenta que o governo tem tomado várias decisões que aumentam a rigidez do orçamento. Ele cita inicialmente a política permanente de valorização do salário mínimo, que, pela primeira vez, foi aprovada sem prazo de duração. Outro problema é o aumento das concessões de benefícios previdenciários, que estão crescendo mais velozmente do que antes da reforma da Previdência. Pires cita ainda a ampliação do Bolsa-Família e o aumento dos gastos vinculados à receita, como os mínimos constitucionais de saúde e educação e emendas parlamentares. Finalmente, o novo arcabouço fiscal criou o piso de investimentos.

O economista ressalva que todas essas medidas têm méritos quando analisadas individualmente, mas o conjunto é difícil de compatibilizar com qualquer regra fiscal. Os gastos do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), por exemplo, cresceram de 7,87% do PIB em 2021 para projetados 8,32% em 2024. Há alguns problemas evidentes, como o fato de que o número de benefícios emitidos de auxílio doença cresceu 43,1% entre março de 2023 e março de 2024. A quantidade total de benefícios previdenciários cresceu 4,1% no mesmo período, comparado a 3,6% antes da reforma da Previdência. O número de benefícios assistenciais, basicamente o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado a idosos e deficientes que sejam pobres), cresceu 11,9% entre março de 2023 e o mesmo mês de 2024. Pires observa que, quando se considera que esses benefícios acompanham o salário mínimo, com uma regra de crescimento real, a pressão fiscal torna-se muito forte.

As despesas de pessoal, incluindo ativos e inativos, é o único item de despesa que apresentou queda recente, saindo de um patamar de 4,2-4,3% do PIB de 2017 a 2020 para o nível de 3,4%, que prevalece de 2022 a 2024. Com essa estabilização, e considerando as greves no setor público e as negociações do funcionalismo com o governo, o espaço para mais economia nesse item parece esgotado, havendo inclusive o risco de alguma recuperação como proporção do PIB. Já as chamadas “outras despesas obrigatórias” estão crescendo (3,6% do PIB em 2024) quando são incluídos os precatórios, e as despesas obrigatórias com controle de fluxo, onde está o Bolsa-Família, saltaram de 1,6% do PIB em 2021 para 3,03% projetados para 2024.

Segundo Pires, no Brasil o ajuste fiscal não pode ser rápido. Ele nota que a carga tributária no Brasil é elevada para o nível de desenvolvimento do País, e não é trivial fazer mais uma rodada de aumento de 3 a 4 pontos porcentuais (pp) do PIB de uma vez só, o necessário para se obter equilíbrio fiscal estrutural. Em segundo lugar, a despesa é muito rígida, e todo ajuste pela despesa tem que ser negociado com o Congresso. O economista lembra uma frase de Fernando Resende, conhecido especialista em orçamento, segundo o qual “a nossa rigidez [orçamentária] é mais rígida do que a rigidez em outros países”. Faz parte do ordenamento jurídico de qualquer país ter o gasto público regido por leis. Mas, no Brasil, boa parte dessas regras é constitucional, o nível de rigidez mais alto possível.

“Esse é um problema estrutural, que faz com que o ajuste tenha que ser lento mesmo”, pondera Pires.

Outro fator é que, durante o período de baixo crescimento e dívida elevada, a política fiscal se torna “esquizofrênica”: o governo defende a contenção para controlar a dívida, mas também a expansão para ajudar a fechar o hiato do produto. Por exemplo, os precatórios se tornaram instrumento de gestão cíclica, com aceleração do pagamento para se estimular a economia. “Não vamos encontrar nada parecido em nenhum lugar que seja referência de boas práticas de gestão fiscal”, comenta o pesquisador do IBRE.

Dessa forma, em função da dificuldade de ajustar receita e despesa, as melhorias fiscais ocorrem muito gradualmente, e sujeitas à reversão conforme os choques e conflitos políticos ocorrem. O caso do apoio federal à reconstrução do Rio Grande do Sul após a calamidade climática no Estado é um bom exemplo de choque sobre a política fiscal.

No final das contas, na visão de Pires, estratégias que forçam uma aceleração do ajuste fiscal são revertidas, causando frustração no mercado e enviando mensagens contraditórias para o Congresso Nacional, dividido entre aprovar aumento de receita, para fechar as contas, ou de gasto, para dar conta das inúmeras demandas da sociedade.

Por outro lado, Pires nota que, entre 2010 e 2022, enquanto a média dos países da OCDE teve expansão de carga tributária de 3,5pp do PIB, de 31,5% para 34%, a alta no Brasil foi de apenas 0,8pp do PIB, de 32,2% para 33,1%. Assim, parece haver algum espaço para ajuste fiscal no Brasil pelo lado do aumento de carga, como tentado e realizado pelo atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Porém, dadas as resistências políticas, dificilmente se conseguirá fazer um ajuste de 3pp do PIB via receita muito rapidamente.

Finalmente, a diferença entre a despesa total e a despesa obrigatória (incluindo precatórios) tem diminuído. Em 2016, a diferença era de 2,2pp do PIB, com 19,9% do PIB de gasto total e 17,7% de gasto obrigatório. Em 2024, a projeção é de uma diferença de 1,7pp do PIB, com 20% do PIB de despesa total e 18,3% de obrigatória. Pires finaliza a sua análise com algumas lições na área fiscal. O objetivo da política fiscal, na sua visão, é ter um planejamento que controle a dívida pública, sem que isso signifique efeito negativo na taxa de crescimento do PIB, nem impacto altista nos juros. A ideia, portanto, é combinar esses três vetores – dívida, PIB e juros – da forma mais benigna possível para o País. Dessa forma, um primeiro ponto crucial é a credibilidade do programa. Se todo o ajuste for no curto prazo, a economia se contrai, se ficar muito para o longo prazo, não é crível. Pires adapta célebre frase do senador da República Velha Pinheiro Machado, concluindo que o ajuste não pode ser “nem tão rápido que seja impossível, nem tão lento que ninguém acredite”.

No caso do novo arcabouço fiscal aprovado por Lula, houve o problema da falta de credibilidade, no sentido de que o mercado nunca acreditou nas metas de resultado primário estabelecidas, que acabaram sendo de fato modificadas para uma trajetória de ajuste mais lento que o prometido inicialmente. Assim, pensando daqui para a frente, um ponto crucial é a composição do programa fiscal. Pires observa que, desde 2015, discute-se se o ajuste deve ser feito todo pela receita ou todo pela despesa, o que não faz sentido, já que o programa deve abordar os dois lados, um ponto detalhado por Bráulio Borges, pesquisador do FGV IBRE, em recente artigo no Observatório de Política Fiscal, que teve grande repercussão, sendo recomendado por Haddad. Borges enfatiza também que a boa prática de ajuste fiscal é tentar preservar os investimentos, que impactam mais a demanda agregada, e cortar os gastos mais ineficientes.

Pires aponta que, no caso do Brasil, saiu-se de uma tentativa de ajuste totalmente pela despesa, com o teto de gastos, para outra basicamente pela receita, com a agenda tributária de Haddad a partir de 2023. “O problema é que, quando se ataca só de um lado, o outro fica frouxo, o que aconteceu nos dois episódios – durante o teto, houve perda de receita tributária, por indiferença ou até participação do Executivo; já na volta de Lula, a receita melhorou, mas está se deixando correr meio solto a questão da despesa”, aponta o economista.

Seguindo nas recomendações, do ponto de vista da arrecadação, devem-se fechar as brechas para planejamento tributário como, aliás, veio sendo feito pelo atual governo.

Um último ponto de Pires é o de que alguns ajustes estruturais podem ter grande efeito sobre as expectativas e dinamizar o crescimento econômico de curto prazo, como no caso das reformas tributária e da Previdência. São medidas que melhoram a situação fiscal no longo prazo ao mesmo tempo que criam uma visão mais positiva do país para os investidores, melhorando as expectativas econômicas. Nesse sentido, a aprovação da reforma tributária e, agora, a tramitação dos projetos de lei sobre a reforma trazem o debate sobre a situação econômica para um terreno positivo e contribuem para bons resultados na atividade. Após a tributária, na visão de Pires, a “bola da vez” seria a reforma administrativa ou uma tentativa mais estrutural de viabilizar o arcabouço, discutindo as vinculações. Assim, criar expectativas fiscais positivas em torno da tramitação de reformas ajuda a suprir, em certa medida, a falta de resultados fiscais melhores no curto prazo, comprando tempo para se realizar o restante do ajuste.

Esta é a Carta do IBRE de junho 2024, da Conjuntura Econômica.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.

Deixar Comentário

To prevent automated spam submissions leave this field empty.