Macroeconomia

É preciso enfrentar os desafios social e fiscal neste início de ano

6 jan 2021

O Brasil chega em 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.
 

Muitos analistas tendem a ver o crescimento econômico como o grande fio condutor para a solução dos problemas nacionais, mas os eleitores demandam soluções específicas para suas dificuldades do dia a dia, anseios esses que, em muitos casos, não são atendidos pelo simples desempenho satisfatório do PIB – o que torna a questão da coordenação de expectativas e ações extremamente complicada para o sistema político de uma jovem e conturbada democracia como a brasileira.
 

Como vem sendo reiterado em diversas Cartas do IBRE, apesar de todo o pessimismo, o Brasil tem feito avanços apreciáveis. Desde a redemocratização, o país conquistou relativa estabilidade macroeconômica e explodiram o exercício da cidadania e a reivindicação de espaço e de direitos pelos grupos e movimentos que compõem a vida sociopolítica nacional. Evidentemente, as crescentes expectativas e seu impacto na pauta política do país são sintomas de uma democracia funcional e vibrante, ainda que turbulenta. E notáveis avanços sociais foram registrados, especialmente na primeira década do milênio.
 

A segunda década, que acaba de se encerrar, entretanto, foi um período especialmente difícil, em que o mau desempenho dos principais indicadores econômicos foi marcante, culminando no penoso abalo causado pela pandemia da Covid-19. Como tratado na Carta de dezembro, a pauta econômica de 2019, na qual a questão fiscal parecia encaminhada e as atenções se voltavam ao tema do crescimento e da eficiência, foi pelos ares. O choque sanitário revelou uma enorme lacuna da rede social brasileira, atingindo grande massa de trabalhadores informais que não são amparados nem pelos programas de transferências voltados aos muito pobres do Cadastro Único – dos quais o principal é o Bolsa Família – nem pela Previdência direcionada aos trabalhadores formais.
 

O auxílio emergencial, um programa maciço de transferência para os informais, foi montado às pressas, e se revelou decisivo para amparar dezenas de milhões de brasileiros durante o lockdown provocado pela presença do vírus. Adicionalmente, o novo programa sustentou o consumo das famílias e contribuiu para que o recuo do PIB nacional em 2020 fosse relativamente modesto, em comparação à média dos emergentes atingidos de forma intensa pela pandemia.
 

O auxílio emergencial, porém, chegou ao fim em dezembro de 2020, e agora o Brasil enfrenta uma difícil encruzilhada de riscos sociais e fiscais, que se contrapõem entre si. Na visão simplificadora dos economistas, trata-se de um caso clássico de choque distributivo, que se resolve pela disputa em torno do orçamento. Na prática, entretanto, encontrar espaços orçamentários não é uma tarefa simples. Afinal, ninguém está disposto a ceder. 
 

O desafio é costurar um mínimo de consenso entre Executivo, Legislativo, Judiciário e sociedade civil em torno de um programa de governo que atenda na medida do possível as antigas e novas demandas sociais, sem comprometer a retomada de um ajuste gradual e estrutural das contas públicas. A discussão do teto de gastos e de possíveis modificações do mecanismo insere-se nesse debate, mas não é o tema específico desta Carta. É importante notar, porém, que a economia política do teto e da discussão orçamentária acabou por jogar para fevereiro todos os debates mais difíceis nas áreas social e fiscal.
 

Neste contexto, há uma visão que vem ganhando força: a retomada do crescimento econômico esperada para 2021 será suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preencham a lacuna a ser deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, por essa abordagem, não seria dramático. Em outras palavras, como o crescimento do PIB em 2021 compensará, em larga medida, as perdas de 2020, aqueles trabalhadores informais que ficaram desprotegidos com a pandemia conseguirão retomar sua condição de vida de antes da chegada do novo coronavírus. Segundo as projeções do Boletim Macro do FGV IBRE, o PIB brasileiro deve ter caído 4,7% em 2020 e crescerá 3,6% em 2021. Não se trata de uma recuperação espetacular, mas suficiente para a normalização gradual do mercado de trabalho, trazendo o quadro socioeconômico de volta para perto do que prevalecia antes da pandemia – nenhuma bonança, por certo, mas uma situação em que as famílias poderiam seguir suas vidas sem o auxílio emergencial.
 

Contudo, como explica Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE, a retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual entre setores. Chegou-se a criar a expressão “recuperação em k” para se referir ao fato de que, enquanto a indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza. Um exemplo dessa heterogeneidade está dentro do próprio setor de serviços, em que aqueles prestados às famílias (que empregam muito), medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia de fevereiro, enquanto os de tecnologia da informação registravam avanço de 12% na mesma comparação. Esses últimos, claro, beneficiados pela onda de comunicação a distância na educação, trabalho e vida pessoal em função do isolamento social.
 

A recuperação desigual e desequilibrada traz o risco bastante real de que, nos primeiros meses de 2021, grandes contingentes da população permaneçam desempregados ou auferindo renda muito abaixo do habitual, e sem o anteparo do auxílio emergencial (que já foi reduzido à metade em setembro). Também acabam os programas de sustentação de emprego, como o BEm que, por meio dos recursos do seguro-desemprego, preservou postos de trabalho de empregados que deixaram de trabalhar ou passaram para a jornada parcial. Neste início de ano, a pandemia ainda deve estar presente e a vacinação nas suas etapas iniciais (na melhor das hipóteses), mas os trabalhadores informais terão que lutar pela sobrevivência numa economia que permanecerá travada em setores mais dependentes da normalização completa da circulação de pessoas. O risco de uma grave emergência social é visível.
 

E 2021 também será, claro, um ano em que gastos atípicos terão que ser realizados em função da pandemia ainda presente, o que torna ainda mais complexa a situação fiscal. Na área médica, a interrupção do atendimento normal, com adiamento de cirurgias eletivas e exames de rotina, criará um aumento de demanda por procedimentos no futuro próximo. O pior problema, segundo Mônica Viegas, professora e especialista em temas de saúde da UFMG, é a interrupção da atenção continuada a doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Para ela, isso pode acarretar uma alta significativa das complicações ligadas a essas enfermidades que chegarão ao sistema médico em 2021 e além.
 

Mas o orçamento, como já mencionado, está extremamente apertado, com um nível de investimento que não cobre nem a depreciação do capital público. Quanto mais se cortam despesas discricionárias, para acomodar o crescimento dos gastos obrigatórios, mais se atingem áreas-chave em que o custo da redução adicional de gasto é crescente. Toda a “gordura” já foi consumida, e é preciso podar as áreas mais nobres e essenciais do funcionamento do Estado. É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós Covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social. 


O texto é resultado de reflexões apresentadas em reunião por pesquisadores do IBRE. Dada a pluralidade de visões expostas, o documento traduz minhas percepções sobre o tema. Dessa feita, pode não representar a opinião de parte, ou da maioria, dos que contribuíram para a confecção deste artigo.

Esta é a Carta do Ibre de janeiro de 2021, publicada na revista Conjuntura Econômica do mesmo mês.

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Leonardo Oliveira

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