É um erro desfazer todas as políticas no meio da crise
No final do ano passado, a expectativa de vacina criou esperanças de que a crise pudesse entrar na sua fase final. A dificuldade com a vacinação em escala global era previsível, no entanto. Faltam insumos para produção na escala necessária, existem problemas diplomáticos e logísticos. No Brasil, a imprudência governamental nos coloca no final da fila e a melhor previsão possível é que atinjamos um bom índice de imunização no final do semestre.
Há grande incerteza sobre o papel das novas cepas. Algumas são mais contagiosas, mas há muitas dúvidas se inibem a eficácia das vacinas e se são mais fatais. De todo o modo, o maior contágio aumentará a pressão sobre os sistemas de saúde como já vimos no Amazonas e Roraima.
Assim, a segunda onda chegou com força e observamos números de casos e mortes que voltaram a atingir picos similares à primeira onda. Uma diferença importante é a maior passividade governamental na aplicação de medidas de isolamento social. Parece existir a percepção de que não há mais espaço político para essas medidas.
Sem medidas mais contundentes de isolamento social, cabe perguntar como a segunda onda afeta o cenário econômico. Em uma pesquisa recente, pesquisadores da Universidade de Chicago concluíram que a atitude voluntária dos consumidores para evitar infecções foi o fator mais importante para o colapso da atividade econômica. Segundo seus resultados, as restrições governamentais tiveram importância menor em explicar os resultados econômicos da crise[1].
No Brasil, os indicadores econômicos já apontam para a redução da atividade. Todos os indicadores de confiança apresentaram queda no início do ano. As projeções de atividade, por sua vez, apontam para um primeiro trimestre negativo. Assim, mesmo sem contar com uma política governamental de suporte ao distanciamento social, o primeiro trimestre será muito ruim.
A segunda diferença importante é que a segunda onda surge com um trade off de política econômica mais desfavorável. Trade off é o termo usado pelos economistas para expressar uma situação em que existem objetivos antagônicos e que criam um conflito. Nesse caso, o trade off piorou com a elevação da inflação para além do que se esperava nos últimos meses.
A percepção de que o cenário de inflação é pior tem levado alguns analistas a anteciparem a normalização monetária. Observo, antes de mais nada, que a normalização já se iniciou com o encerramento de várias medidas quantitativas em dezembro. Em seu último encontro o COPOM retirou o forward guidance. A questão, portanto, é quando e em que velocidade o Banco Central deve elevar a taxa de juros.
Minha visão sobre isso é que é melhor aguardar os primeiros meses do ano porque existem muitos efeitos sazonais nesse período como reajustes de saúde e educação, a safra que afeta o preço dos alimentos e o regime de chuvas que afeta o custo da energia. Além disso, será possível verificar os efeitos desses eventos combinados com um mercado de trabalho mais fraco do que o esperado, dos estímulos monetários já retirados e a evolução da taxa de câmbio que hoje é o principal fator sancionador de uma inflação mais elevada.
Se por um lado, o cenário de inflação piorou, o cenário fiscal se mostrou muito melhor do que o esperado. No ápice da primeira onda, alguns analistas indicaram que a dívida bruta chegaria próximo a 100% do PIB. A dívida bruta terminou o ano em 89% do PIB e a dívida líquida, conceito mais correto de sustentabilidade, atingiu 67,1% do PIB em 2020.
Com parâmetros de endividamento muito melhores do que o esperado, é difícil argumentar que não haja espaço fiscal para se fazer nada. O auxílio emergencial pode ser mais eficiente de várias formas, com foco em determinados grupos mais vulneráveis e com diferenciação de valor em função do tipo de vulnerabilidade, mas a principal questão é que ele é necessário porque a segunda onda impede as pessoas de trabalhar.
O custo desses programas está longe de ser desprezível, mas há um erro clássico em análises econômicas que contabilizam o custo do aumento do gasto sem considerar seus efeitos indiretos como o ganho de arrecadação tributária advindo do maior consumo. Inflar o custo dos programas fiscais é o exercício preferido dos fiscalistas de planilha.
Um dos maiores equívocos na gestão de crises econômicas ocorre na decisão de retirar os estímulos. Isso ocorre porque essas decisões são tomadas em um ambiente de elevada incerteza e da dificuldade de saber como a economia reagirá. Temos exemplos históricos e bastante conhecidos na crise de 1929 e na saída da crise de 2008 em que a retirada prematura das políticas prolongou a crise na Zona do Euro.
Retirar todas as políticas ao mesmo tempo soa como reconhecimento de que a gestão da crise por parte do governo foi um grande erro. Não parece ser o caso porque o mundo inteiro, em maior ou menor escala, fez algo semelhante. Combinar ajuste monetário e fiscal, ao mesmo tempo, no meio da segunda onda é uma aposta temerária e socialmente perigosa. Não parece um risco razoável para o país assumir.
Este artigo foi publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 03/02/2020, quarta-feira.
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