Trabalho

Efeitos da difusão dos aplicativos nos resultados do mercado de trabalho

17 nov 2025

A expansão do trabalho por meio de aplicativos pode reconfigurar o mercado de trabalho em suas múltiplas margens: composição setorial, formas de inserção (conta-própria vs. empregado), horas e rendimentos, bem como a geografia da ocupação.

Introdução

Segundo edições suplementares da PNAD Contínua, em 2022, havia cerca de 1,44 milhão de pessoas trabalhando por aplicativos. Em 2024, esse contingente subiu para 1,79 milhão, um aumento de quase 25% em dois anos. Em termos setoriais, o uso dos aplicativos é mais intenso em transportes (de cerca de 700 mil para 900 mil), com avanços menores em entregas (de 550 mil para quase 600 mil) e forte expansão em outras modalidades (de 193 mil para 294 mil). Em conjunto, os trabalhadores de aplicativo passam a representar parcela visível da força de trabalho urbana.

Esses trabalhadores correspondem a uma fração em torno de 1,7%-1,8% dos ocupados. Essa média, no entanto, esconde uma heterogeneidade marcante entre grupos demográficos. Entre homens de 25-29 anos, por exemplo, a participação se aproxima de 4%, superando amplamente a de mulheres na mesma faixa etária. A distribuição por idade também sugere uma curva em “meia-idade jovem”, com picos entre 25-39 anos e declínio a partir dos 40-54 anos.

Percentual de Trabalhadores em Aplicativos por Sexo e Faixa Etária (2024)

Fonte: Elaboração própria com dados da PNADC 2024T3

A heterogeneidade geográfica é igualmente forte. Nas capitais e regiões metropolitanas, a incidência do trabalho por aplicativos se aproxima de 4% dos ocupados, em contraste com valores bem menores no interior e no restante dos estados. Mapas em nível de estrato revelam bolsões de alta intensidade em eixos urbanos conectados e corredores logísticos, sugerindo complementaridade com densidade demográfica, demanda por mobilidade/entrega e melhor infraestrutura digital.

Percentual de Trabalhadores (14%) ocupados com aplicativos (2024)

Fonte: Elaboração própria com dados da PNADC 2024T3

Esses números importam porque a expansão do trabalho por aplicativos pode reconfigurar o mercado de trabalho em múltiplas margens: composição setorial, formas de inserção (conta-própria vs. empregado), horas e rendimentos, bem como a geografia da ocupação. Ao deslocar oportunidades para grupos específicos, a difusão de apps pode alterar trajetórias de emprego, dinâmica de salários e risco de baixa renda em domicílios.

Este artigo investiga como a difusão dos aplicativos afeta resultados do mercado de trabalho. Usando a PNAD Contínua, combinamos (i) as informações diretas das suplementares 2022T4 e 2024T3, (ii) a série trimestral regular desde 2012 e (iii) proxies ocupacionais, para estimar efeitos causais da introdução/expansão dos aplicativos sobre ocupação, rendimentos e composição da inserção laboral. A estratégia empírica é um diferenças-em-diferenças que contrasta grupos mais expostos e menos expostos à adoção de aplicativos, explorando variação temporal e espacial.

Metodologia

A identificação baseia-se em uma estratégia de diferenças-em-diferenças (DiD) com dois passos. Primeiro, estimamos, na amostra de 2022T4 (suplementar), a probabilidade de um indivíduo trabalhar por aplicativo em função de atributos observáveis e fixos locacionais. Esses coeficientes são usados para gerar, em cada trimestre da PNADC regular, uma probabilidade predita de exposição para cada trabalhador. Em seguida, contrastamos a evolução de resultados de mercado de trabalho entre grupos muito expostos (probabilidade predita > 1%) e pouco expostos.

No primeiro estágio, estimamos um modelo de probabilidade linear apenas em 2022T4:

em que (Xi) inclui interações idade×sexo, escolaridade em faixas, raça/cor, situação urbano/rural e dummies de UF e de tipo de área (capital/RM/RIDE/restante). As dummies (δUF) e (δárea) capturam heterogeneidades fixas de contexto institucional e urbano-metropolitano.

A partir desse modelo, obtemos para cada indivíduo (i) uma probabilidade predita (pi). Essa medida sintetiza o grau de exposição potencial de perfis demográfico-geográficos ao trabalho por aplicativo, tal como observado na fotografia de 2022T4. Consideraremos uma variável de exposição binária, definindo muito expostos quando (pi>0,01).

O painel de tempo provém da PNADC trimestral de 2012 a 2024 (repetidas cross-sections). Em cada trimestre (t), calculamos pi para todos os indivíduos com base nos seus atributos (Xi). Essa abordagem permite comparar, ao longo do tempo, grupos com propensão intrínseca mais alta a ingressar em aplicativos, algo que se materializa a partir de 2015, quando plataformas de mobilidade/entregas se difundem no país.

No segundo estágio, estimamos efeitos DiD sobre outcomes (Yit) (emprego total, rendimentos do trabalho principal deflacionados, além de um indicador domiciliar de renda per capita < ½ SM). Nossa especificação básica, de event-study, é:

onde (AltExposiçãoi=1{pi>0,01}) e normalizamos os resultados para 2015 (τ0=2015). (μua) são efeitos fixos UF×Área e (τua⋅t) são tendências lineares específicas de UF×Área (área = capital/RM/RIDE/resto da UF), controlando diferenças seculares na trajetória local. Controlamos ainda por tendências paralelas prévias, e assim mapeamos a dinâmica dos efeitos após a difusão das plataformas. Erros-padrão são clusterizados por célula idade×sexo, refletindo a unidade de variação na construção do risco predito.

Uma limitação empírica é que a informação direta de trabalho por aplicativo só existe em 2022T4 e 2024T3. Para validar a proxy de exposição no período anterior, construímos um indicador de “ocupações-proxy”: conta-própria com atividade de transporte ou ocupações de condutor de passageiros. Ao dividir a amostra entre muito e pouco expostos (por pi), observamos um crescimento diferencial acentuado das ocupações-proxy no grupo mais exposto, enquanto em outros serviços as trajetórias são paralelas, um teste de especificidade do mecanismo.

Tendências de crescimento de trabalhadores por aplicativos e em outros serviços, por grupo de exposição

Fonte: Elaboração própria com dados da PNADC

Rendimentos são deflacionados por um deflator trimestral por UF, e restringimos a amostra a indivíduos com 14+ anos. Para resultados domiciliares (Meio Salário Mínimo per capita), agregamos rendimentos do trabalho no domicílio e dividimos pelo número de moradores.

Estimamos ainda versões do segundo estágio condicionadas à infraestrutura digital: repetimos as regressões apenas em estratos geográficos que, em 2016, apresentavam alta conexão domiciliar à internet (percentual acima de 75%). A hipótese é que a oferta/uso de aplicativos é mais elástica nessas áreas, de modo que efeitos sobre emprego/conta-própria/renda devem ser mais pronunciados. Mantemos os mesmos controles e tendências UF×Área.

Resultados

Os event-studies revelam uma clara ruptura entre o período pré e pós-pandemia. Nos anos iniciais de difusão dos aplicativos, os efeitos diferenciais para grupos mais expostos são pequenos e imprecisos, com coeficientes próximos de zero. Isso é consistente com uma fase de adoção ainda incipiente, com baixa demanda e oferta nas plataformas.

Resultados de alta exposição a aplicativos sobre diversos outcomes

Fonte: Elaboração própria com dados da PNADC

Após 2020, entretanto, os coeficientes mudam de patamar. A ocupação aumenta de forma diferencial entre os altamente expostos, atingindo cerca de 3 p.p. em relação aos pouco expostos. Esse ganho é particularmente nítido quando restringimos a amostra a áreas de alta conectividade, nas quais as estimativas são maiores e mais precisas. O perfil temporal sugere aceleração entre 2021 e 2023, com sinais de consolidação em 2024.

O mesmo padrão aparece nos rendimentos do trabalho. Para trabalhadores altamente expostos, o crescimento diferencial chega a aproximadamente R$ 300 por mês (a preços de 2025) no pico recente, novamente com efeitos mais pronunciados em localidades com maior acesso à internet. A trajetória é compatível com uma combinação de expansão de demanda (entregas, transportes e outros serviços mediados por app) e ganhos de eficiência no pareamento via plataforma.

Quando observamos o indicador domiciliar de renda do trabalho per capita abaixo de ½ salário mínimo, o efeito médio é nulo. Porém, nas áreas de alta conectividade, há um efeito negativo, ou seja, menor incidência de domicílios abaixo desse limiar entre os grupos mais expostos. Embora a magnitude seja modesta, o resultado é coerente com o ganho de ocupação/renda observado e sugere que os aplicativos podem funcionar como margem de ajuste para reduzir pobreza do trabalho em ambientes digitais mais desenvolvidos.

Um achado particularmente interessante diz respeito à volatilidade dos rendimentos. Usando a dimensão longitudinal curta da PNADC (cinco trimestres por indivíduo), o desvio-padrão da renda ao longo desses cinco trimestres cai no pós-pandemia para os altamente expostos. Isso contraria a narrativa de que a intermediação por aplicativos necessariamente amplifica a instabilidade. Os resultados sugerem que, pelo contrário, parte dos trabalhadores amortece choques aumentando a oferta de trabalho em momentos de queda, o que estabiliza a renda anualizada.

Discussão dos Resultados

Mecanismos plausíveis ajudam a interpretar o pós-2020. A pandemia expandiu fortemente a demanda por entregas e mobilidade sob demanda, elevando a densidade dos mercados de plataforma. Com mais usuários e mais trabalhadores, o matching ficou mais rápido e previsível. Além disso, multi-homing (trabalhar em mais de um app) e melhorias algorítmicas podem ter aumentado o aproveitamento de horas. Em paralelo, a conectividade domiciliar avançou, sobretudo em áreas urbanas, reduzindo fricções de entrada e de coordenação.

A heterogeneidade demográfica e espacial reforça essa leitura. Os ganhos concentram-se em perfis que já tinham alta propensão a atuar em apps (homens, 25-39 anos, capitais/RMs). A análise com a proxy ocupacional (conta-própria em transportes/condutores) mostra um crescimento diferencial vertiginoso no grupo muito exposto após 2015, enquanto outros serviços exibem trajetórias paralelas, um teste de especificidade que sustenta o mecanismo de aplicativos, e não uma tendência geral do setor de serviços.

A interpretação econômica dos ganhos de renda merece nuance. Parte do crescimento pode refletir mais horas trabalhadas (extensiva/intensiva) em vez de maior preço por hora; mesmo assim, do ponto de vista do bem-estar do domicílio, o aumento de renda e a queda de volatilidade são relevantes. Ao mesmo tempo, os efeitos médios nulos sobre a taxa de domicílios abaixo de ½ SM no agregado indicam que a margem de alívio se concentra em locais com boa infraestrutura digital, o que levanta a agenda de desigualdade territorial.

Os resultados encontrados seguem o que a literatura também aponta para países desenvolvidos. Primeiro, Chen, Feinerman e Haggag (2024) mostram, a partir de um experimento aleatório em escala nacional na Uber, que pagamento instantâneo (Instant Pay) eleva substancialmente o tempo trabalhado dos motoristas, com respostas maiores quando o contrafactual seria esperar mais tempo até o pagamento, padrão consistente com viés de presente. O desenho do RCT substitui um ciclo semanal de pagamento por retiradas “on-demand”, minutos após cada corrida, e documenta aumento de oferta de trabalho sem mudar o salário-hora, iluminando um canal de liquidez e sincronia esforço-remuneração que ajuda a interpretar nossa evidência de maior ocupação e de acréscimo de renda entre os mais expostos em áreas conectadas.

Em complemento, Denes, Lagaras e Tsoutsoura (2025) usam dados administrativos do IRS e mostram que trabalhadores de plataformas têm probabilidade maior de se tornar empreendedores, sobretudo entre jovens e de menor renda. Os autores encontram as firmas criadas surgem em setores próximos à experiência no app, sobrevivem menos, mas, condicional à sobrevivência, apresentam melhor desempenho, um padrão compatível com aprendizado em serviço e experimentação com risco controlado. Esses mecanismos ajudam a reconciliar nossos ganhos de renda/ocupação com trajetórias de médio prazo que podem passar pela trilha empreendedora, e não necessariamente por transições para empregos formais tradicionais.

Por outro lado, a literatura também alerta para limites à mobilidade para o emprego tradicional. Em um estudo de correspondência na Suécia, Adermon e Hensvik (2022) encontram que experiência em gig é melhor sinal do que desemprego, mas vale menos do que experiência tradicional para candidatos da maioria.

A interação entre infraestrutura digital e efeitos econômicos também ecoa a evidência internacional. A expansão de conectividade e de produtos de pagamento instantâneo eleva o aproveitamento de horas e reduz fricções de entrada nas plataformas (no caso de Uber, o cash-out imediato tornou-se rapidamente dominante após o lançamento). Nossos resultados, que mostram efeitos maiores em áreas de alta conectividade e queda do desvio-padrão da renda no pós-pandemia, são compatíveis com esse enquadramento: maior densidade digital facilita matching e permite suavização ativa da renda via ajuste de horas, mecanismo alinhado com o que se observa quando a fricção temporal entre esforço e pagamento é removida.

Por fim, vale notar que a escala da gig economy documentada em países desenvolvidos, tipicamente entre 1% e 3% do emprego, é da mesma ordem de grandeza que observamos no Brasil, reforçando a comparabilidade internacional, mas também indicando espaço para heterogeneidade contextual (regulação, cobertura de proteção social, estrutura urbana). Em conjunto, a literatura também aponta que plataformas ampliam ocupação e renda onde há densidade digital e instrumentos de liquidez; podem servir de trampolim empreendedor.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

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