Macroeconomia

Efeitos das mudanças no texto do repasse emergencial da União aos estados em meio a Covid-19

9 jul 2020

Aprovado no final do mês de maio, o repasse emergencial de R$ 60,2 bi aos estados e municípios (Lei Complementar 173/2020)[1] foi alvo de caloroso debate até a sua aprovação. Seu formato sofreu algumas modificações desde o primeiro texto aprovado na Câmara dos Deputados. Inicialmente, previa-se que a União transferiria aos entes subnacionais montante exatamente igual às suas respectivas perdas nominais na arrecadação de ICMS e ISS, em relação ao mesmo mês do ano anterior.

As alterações no texto feitas pelo Senado tiveram dois objetivos: restringir o impacto fiscal à União, já altamente endividada, e reduzir o favorecimento demasiado de estados e municípios mais ricos que a casa enxergava no texto da Câmara[2]. Importa entender se, até aqui, há cumprimento desses objetivos. Nossa análise será centrada nos repasses aos estados.

O primeiro objetivo das alterações – limitação do impacto fiscal – está sendo cumprido até aqui. A LC 173/20 fixou repasses de R$ 37,0 bi para os estados e R$ 23,2 bi para os municípios, através de 4 parcelas. O texto da Câmara previa recomposição das perdas nominais de arrecadação em relação ao período de abril a setembro de 2019, quando foram arrecadados R$ 248,7 bilhões. Dessa forma, os R$ 37,0 bi de repasse aos estados fixados na lei complementar equivalem a uma recomposição de 14,9% do valor arrecadado entre abril e setembro de 2019.

A arrecadação de ICMS de abril e maio de 2020[3], no entanto, já apresenta queda nominal de 17,7%, revelando que o novo texto rendeu, até então, economias à União. Se mantida a redução percentual de receita de cada um dos estados no mesmo nível até setembro, tais mudanças no texto geram economia de R$ 7,1 bi ao Governo Federal[4].

O segundo objetivo, de evitar um favorecimento demasiado de entes mais ricos, levou o Senado a modificar os critérios de rateio. Para os estados, foco deste texto, o rateio final foi definido da seguinte forma:

  • Ações de saúde pública e assistência social (R$ 7 bi): 40% pela taxa de incidência de Covid-19 e 60% pela população do ente.
  • Demais valores (R$ 30 bi): tabela divulgada na lei define a divisão por UF. Leva em conta a arrecadação de ICMS dos estados, população, cota-parte do fundo de participação estadual e valores não recebidos como contrapartida de tributos exportados. Vale destacar, no entanto, a ausência de maiores detalhes quanto aos critérios de distribuição desse montante.

O objetivo de reduzir favorecimento de entes mais ricos parece ser cumprido quando observamos grupos de estados mais ricos e mais pobres. São feitas estimações da participação desses grupos no total de repasses, fazendo uso da premissa de manutenção do mesmo nível de perda percentual na arrecadação para cada estado nos próximos meses. Além disso, assume-se que as taxas de incidência de Covid-19 se manterão, nos próximos meses, iguais às taxas utilizadas no cálculo da primeira parcela das transferências aos estados. Nesse cenário, como descrito na tabela 1, os estados mais ricos perdem participação nos repasses e os estados mais pobres ganham[5].   

Tabela 1: Participações Percentuais Estimadas no Total de Repasses previsto.
Agregação por grupos de Unidades Federativas (estados e DF) mais ricos
(maiores PIB per Capta) e mais pobres (menores PIB per capta)

Grupo de UF's

Participação Percentual Estimada no Total de Repasses

Texto da Câmara dos Deputados

Texto da LC 173/2020

Variação da Participação (p.p)

5 estados mais ricos

44,7%

38,6%

-6,1

10 estados mais ricos

65,3%

59,1%

-6,2

5 estados mais pobres

9,0%

9,7%

0,7

10 estados mais pobres

16,8%

22,1%

5,3

Fonte: Estimação própria, a partir de dados da CONFAZ, Lei Complementar 173/2020 e IBGE.   

Tal agregação esconde, entretanto, que os efeitos são heterogêneos para entes com perfil de renda similar. O Distrito Federal apresenta atualmente PIB per capta maior que qualquer estado da federação. O repasse previsto no texto final da LC 173/20 recompõe valor equivalente a 15,9% de sua arrecadação de ICMS entre abril e setembro do ano passado. No somatório de abril e maio deste ano, o DF teve perda de 15,3% em sua receita de ICMS em relação ao mesmo período de 2019. Ou seja, até aqui, as alterações com intenção de reduzir o favorecimento de entes mais ricos aumentaram os repasses ao mais rico dos entes analisados.

No outro extremo, os repasses a estados mais pobres, como Ceará e Piauí, também merecem atenção. A intenção de reduzir os repasses aos estados deveria ser proporcional, sendo, portanto, mais acentuada em estados mais ricos. No entanto, mantida a variação de arrecadação de ICMS nos próximos meses, a participação do Ceará no total de repasses reduziria drasticamente, de 4,5% (texto da Câmara) para 3,1% (texto final). O Piauí, por sua vez, também veria sua participação cair, de 1,48% para 1,34%. Ambos os estados estão entre os 5 mais pobres do país. Vê-se assim que, em alguns casos analisados, as alterações aprovadas na LC provocaram, na trajetória observada até aqui, discrepâncias sérias entre a intenção de menor favorecimento de estados mais ricos e o efetivo repasse.  

Problemas com critérios de distribuição dos recursos não se restringem ao socorro financeiro sob análise nesse texto, estendendo-se a outras medidas de apoio da União aos estados no combate à Covid-19. Nota técnica divulgada pela Instituição Fiscal Independente (IFI)[6] aponta que, na maioria dos cenários de perda de receita dos estados, o somatório do apoio do governo federal aos entes superará o somatório de perdas de receita dos entes. Mas, como tais medidas foram tomadas sem se levar em conta seu efeito conjunto, alguns estados terão recomposição acima de suas perdas, enquanto outros passarão por perda de recursos.

Isso pode ser mais um elemento na pauta do debate entre União e estados nos próximos meses. Notícias recentes já sinalizam que alguns secretários de fazenda articulam para que haja nova rodada de auxílios[7].

Como bem constatado pelo Senado Federal, a situação atual da União já é de elevado endividamento, além de também elevado déficit primário. Por isso, é ainda mais importante atentar para que novos repasses aos estados e municípios, caso ocorram, obedeçam a critérios de distribuição eficientes em combater as mazelas a que se propuserem, não permitindo anomalias como as vistas até aqui nos repasses a Distrito Federal, Ceará e Piauí.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.   


[2] Parecer do Senado sobre o Projeto de Lei Complementar (PLP 149/2019).

[3] Arrecadação de ICMS obtida no CONFAZ em 6 de julho de 2020. Dados são autodeclarados, o que pode gerar alguma diferença em relação ao que será publicado posteriormente no RREO dos estados.

[4] Sobre os próximos meses da arrecadação de ICMS, é difícil precisar sua trajetória no cenário atual de incertezas, gerado por um isolamento social necessário e sem data definida para acabar. O que se sabe é que declarações recentes de alguns secretários de fazenda sinalizam que a pior fase da arrecadação foi no mês de maio e já teria ficado para trás. Ver: https://glo.bo/3gBv1WQ . Em maio, houve queda de 22,8% em relação ao mesmo mês de 2019. Por outro lado, a arrecadação de abril é referente a fatos ocorridos em março, mês apenas parcialmente afetado pelas medidas de isolamento social, e registrou redução de 12,8%. Por isso, o retorno a uma queda mensal de arrecadação de ICMS como a que se observou em abril deve depender da possibilidade ou não de flexibilização do isolamento social em cada estado.

[5] Foi utilizado como critério para definição de estados mais ricos e mais pobres o seu PIB per capta (IBGE, 2017).

[7] Secretários de fazenda estaduais articulam solicitar nova rodada de socorro ao governo.  Fonte: https://oglobo.globo.com/economia/socorro-da-uniao-de-60-bi-nao-cobre-perdas-na-arrecadacao-em-13-estados-como-rio-sao-paulo-24479610

Agradecimentos a Juliana Damasceno pelos comentários.

Comentários

Rodrigo Vilela

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