Emendas impositivas transparentes são boas

Não se devem confundir as emendas impositivas usuais, avanço democrático na discussão e execução do orçamento, com a distorção da falta de transparência. As emendas secretas são péssimas e as impositivas transparentes são boas.
Em minha coluna aqui no Broadacst de novembro de 2018, discuto as emendas impositivas. Mostro que emendas impositivas são mais eficientes para que a visão do legislativo sobre o orçamento prevaleça sobre a do executivo. Além de poder alocar recursos de uma forma descentralizada e potencialmente respondendo a demandas da esfera local, oferece retornos eleitorais por motivar a rede local de interesses engajada na reeleição desse parlamentar. Note-se que a iniciativa de propor o orçamento é exclusiva do executivo. Desta forma, o presidente da república já tem a principal influência no direcionamento das prioridades do orçamento.
As emendas impositivas evitam que o congresso fique 100% refém da presidência na determinação do destino dos recursos públicos federais. Há outros efeitos das emendas impositivas, como diminuir a influência direta do presidente sobre os parlamentares, mas este é um problema comum a todas as democracias presidencialistas. No artigo mencionado, mostro que a impositividade evita uma manipulação que sempre faz com que o executivo possa executar suas prioridades e só em condições muito especiais, em que haja uma arrecadação acima do esperado, a preferência do legislativo seria obedecida.
O motor por trás de tal problema é a possibilidade de contingenciamento da parte do orçamento que não é impositiva. As emendas que não são impositivas podem ou não ser executadas integralmente pela presidência. Cito aqui meu artigo de novembro de 2018, que explica por que as emendas não impositivas podem levar a uma distorção. “O que acontece na aprovação do orçamento? Temos o executivo de um lado e o legislativo do outro. O executivo tem o poder de gastar ou não nas emendas parlamentares. Desta maneira, os congressistas tentam sempre aprovar o máximo possível de emendas, pois sabem que têm grande chance de serem contingenciadas. Portanto, para que o congresso consiga aprovar mais recursos para emendas, há uma tendência a estimar de modo otimista as receitas (por exemplo, supondo que a arrecadação de um determinado tributo tenha aumento maior que o previsto pelo executivo).
A razão é simples: para caber mais despesas, como a LDO geralmente impõe parâmetros mínimos para o superavit primário, segue-se que é preciso haver maiores receitas tributárias. Por sua vez, o executivo sabe que o legislativo tende a ser otimista em suas estimativas de receita. Desta forma, ao enviar a lei orçamentária para aprovação do congresso, a presidência tende a enviar previsões conservadoras de receitas (ou seja, mais pessimistas). Ficamos assim num equilíbrio, que obviamente tem grande ineficiência alocativa dos recursos públicos. Como o executivo tem a palavra final em quais emendas vai pagar, esta situação pode até mesmo levar a uma aprovação de prioridades que não reflita a preferência do legislativo.” No artigo em questão, prossigo analisando uma situação em que acontece de o executivo gastar em um projeto de seu interesse, em detrimento de um projeto que é de maior interesse do congresso.
É importante entender a distinção entre as emendas impositivas que discuto aqui e as emendas secretas ou “pix” (emendas individuais de transferência especial). As emendas impositivas a que me refiro são aquelas que são discutidas durante a votação do orçamento, que têm um(a) parlamentar, ou um conjunto destes, responsável por propô-la e sua destinação conhecida. E posteriormente aprovadas na lei orçamentária. As emendas secretas ou as “pix” são emendas que têm recursos no orçamento, mas não têm transparência para identificar quem as defendeu e nem sua destinação precisa, pois não são aprovadas mediante a existência de um projeto com justificativas técnicas, o que permite um maior controle dos Tribunais de Contas.
Estas emendas secretas são uma distorção total do processo democrático e não deveriam existir. A execução orçamentária deve ser totalmente rastreável para que possa ser devidamente controlada e auditada, de modo que ninguém deva ter a possibilidade de gastar dinheiro público sem que seja possível verificar se o recurso foi utilizado de forma correta. Assim, quando discuto aqui as emendas impositivas, estou-me referindo apenas àquelas que são aprovadas com os critérios de transparência usuais em processos orçamentários organizados, que permitam auditoria.
Existe evidência robusta que emendas parlamentares são muito positivas para a população local que a recebe. Comento sobre “Pork is policy: Dissipative inclusion at the local level” de Frederico Bertholini, Carlos Pereira e Lucio Renno, publicado em 2018 na revista Governance. Observe que “pork barrel” é a forma pela qual os norte-americanos referem-se às emendas parlamentares que são direcionadas para uma localidade específica. Por isso, a palavra “pork” está no título do texto dos autores. Bertholini, Pereira e Renno mostram que no Brasil as emendas parlamentares que são direcionadas a uma localidade, em geral têm efeitos positivos.
Dois casos chamam a atenção: em diminuição da mortalidade infantil e em emprego. Os efeitos no emprego são duradouros. Os efeitos na taxa de mortalidade infantil duram 5 anos. Isto é, se as emendas são reiteradamente enviadas, a mortalidade infantil cai por cinco e depois não se altera mais. De qualquer forma, os efeitos são muito relevantes, sendo a comparação feita com municípios que não recebem emendas e são “similares”. Em suma, para a população de uma localidade, as emendas são muito importantes. A análise foi feita entre os anos de 2002 e 2009. Nesta época as emendas não eram impositivas. Apenas preservavam a rastreabilidade e obedeciam aos mesmos critérios de transparência usuais do orçamento. As emendas impositivas só foram criadas a partir de 2015 e as secretas e/ou não transparentes ainda mais tarde. Porém, o resultado em si apoia a ideia que as emendas que são feitas por parlamentares para beneficiar uma localidade específica é demandada e têm relevância para a população local. É óbvio por que isto acontece: os parlamentares sabem muito mais o que é necessário para sua população de eleitores que o executivo federal. Também deve ser claro que temos que balancear o custo e o benefício destas emendas, mas elas são positivas. O nível ideal com as despesas totais com estas emendas é outro assunto, que não cabe ser discutido aqui.
O STF está discutindo agora as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 7688 (proposta pela Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), 7695 (proposta pela PGR e 7697 (proposta pelo PSOL). O relator é o ministro Flavio Dino. É fundamental distinguir as emendas que sejam impositivas e tenham critérios de transparência das que não são. Estas últimas, que não são completamente rastreáveis, são uma distorção do processo orçamentário saudável de uma democracia, e têm de ser proibidas (assim como as emendas secretas que não sejam impositivas). Vamos cuidar para não confundir um avanço no processo democrático de discussão e execução do orçamento, que são as emendas impositivas usuais, com uma distorção do processo que é a falta de transparência. As emendas secretas são péssimas e as impositivas transparentes são boas.
Agradeço a Carlos Pereira pela referência e conversas sobre o assunto, além de sugestões que melhoraram em muito o texto. Obviamente, as conclusões que tiro de suas observações e do artigo da revista Governance são minhas, e ele não tem nenhuma responsabilidade por elas.
Este artigo foi originalmente publicado pelo Broadcast da Agência Estado em 12/08/2025, terça-feira.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.
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