Macroeconomia

As estatísticas da habitação no Brasil

19 fev 2020

O presente artigo atende ao convite feito por Manoel Pires em artigo intitulado “O shut down das estatísticas econômicas” publicado no Blog do IBRE  em 29 de janeiro, quando ele relata casos de descontinuidade ou de redução das bases de dados disponibilizadas pelo governo em diversas áreas. Seguindo sua sugestão, aproveitamos este espaço para registrar questões referentes às estatísticas voltadas à habitação: crédito e déficit habitacional.

É inequívoca a importância de dados para uma melhor compreensão acerca do setor habitacional: fundamental para o planejamento tanto do setor produtivo quanto das famílias, para o seu desenvolvimento e monitoramento das implicações para a economia e o emprego, dos riscos sistêmicos e sociais envolvidos.

Em primeiro lugar é importante enfatizar que historicamente (desde a extinção do BNH) esses dados encontram-se dispersos em distintas bases e formatos – Banco Central; FGTS/Caixa; Ministério (Cidades agora MDR), IBGE; além de bases privadas tais como Abecip, Anbima, B3 e Uqbar, nessas últimas, na maior parte dos casos, com acesso restrito a associados/assinantes. No tocante às bases públicas, ênfase será dada aqui às bases de dados das duas principais fontes de recursos – SBPE e FGTS – e, também, as relativas às famílias, produzidas pelo IBGE. 

As bases relativas ao SBPE e ao crédito habitacional divulgadas pelo Banco Central subdividem-se em:

  • Séries Temporais/Indicadores de Crédito[1]: conjunto bastante restrito de dados[2] com variáveis agregadas e apresentando apenas médias, em séries iniciadas em mar/2011, disponibilizado em formato xls ou csv para download;
  • Relatório de Poupança[3]: tabela xls contendo histórico mensal de captação líquida e saldo (estoque) das poupanças SBPE e Rural;
  • Censo de depósitos da poupança[4]: semestral, em tabela pdf, com dados agregados por faixas de saldo e consolidados para poupança rural e sbpe;
  • “Estatísticas do SBPE”, série importante, porém em tabelas PDF, com dados a partir de 2001[5], individualizados e constantemente atualizados (defasagem entre 2 ou 3 meses apenas).

As “estatísticas do SBPE” sofreram um apagão de 1 ano quando foram descontinuadas e completamente retiradas do ar em fins de 2018. Em outubro de 2019 retornaram com novo nome – “estatísticas do mercado imobiliário”[6] – e formato, mais amigável, oferecendo gráficos e possibilitando leitura direta por máquina. Um avanço, portanto.

Entretanto, as séries agora disponibilizadas são bem mais curtas, somente a partir de abril/2014 e algumas variáveis históricas e detalhamentos importantes não mais aparecem, tais como: aplicações em crédito por unidade da federação; tipo de aplicação para efeito de cumprimento da exigibilidade (crédito, FCVS, CRI, etc.) e distinção entre residencial e imobiliário não residencial; base de cálculo do direcionamento; tipo de crédito separado por “coditem”[7]; financiamento para material de construção;  número de contratos ativos;  situação de adimplência por tipo de operação; distribuição do número de contratos e valor de prestação.

Ainda inexistem estatísticas importantes a respeito dos valores de financiamento, renda familiar, taxas de juros praticadas segregando linhas e fontes (FGTS e SBPE), entre outras. As notas metodológicas continuam muito breves e pouco detalhadas, dificultando, em alguns casos, a exata compreensão dos dados apresentados. Espera-se, portanto, que o que está hoje no ar seja apenas a primeira parte de uma série estatística mais ampla, mais detalhada e acessível que as existentes até setembro de 2018.

Vale ressaltar que a agregação dos dados relativos ao “crédito imobiliário”, que inclui o não residencial, vai na contramão da prática internacional que é justamente a de individualizar as bases e análises segmentando o crédito HABITACIONAL, em reconhecimento às suas características absolutamente peculiares, com seus rebatimentos e riscos em muito diferenciados do setor imobiliário não residencial (corporativo, shoppings, galpões, etc.).

No caso do FGTS as poucas bases disponibilizadas estão também dispersas em diferentes links, sendo o principal o http://www.fgts.gov.br/. Dados de saques já se encontram bem detalhados[8], mas os dados referentes à arrecadação bruta mensal aparecem agregados e em formato PDF[9]. Ainda não há divulgação de informações periódicas sobre o Censo de contas e saldos do FGTS, tampouco das condições das operações: tais como o prazo dos contratos e valor de financiamento, quota de financiamento (LTV), sistema de amortização utilizado, comprometimento e renda dos mutuários. Mais grave ainda, contudo, é a atual defasagem na publicação de balancetes – último disponível é o de dezembro de 2018 – especialmente considerando que são a única fonte (ainda que pouco detalhada) que permite o acompanhamento das contas do Fundo, posto que as Demonstrações Financeiras anuais só são publicadas entre agosto e setembro do ano seguinte. São também escassos e em geral defasados os dados relativos às aplicações da carteira de títulos e valores mobiliários do FGTS – CRI, debêntures, LCI, FII e sobretudo do FI-FGTS, apesar da elevada participação desta modalidade nos ativos do Fundo.

Por fim, é necessário evoluir para dados abertos em lugar de consolidados e médios. A tecnologia disponível permite abrir os dados, deixando protegido o sigilo do informante e dos mutuários.

Em ambos os sistemas SFH e SFI e suas fontes, a compreensão do regramento vigente exige um extenso garimpo entre Leis, Resoluções, Normativos e Circulares, também dispersos em links e diferentes órgãos/sítios eletrônicos. A consolidação e sistematização do marco legal do crédito habitacional no Brasil constituem outro avanço importante a ser feito.

Mas as dificuldades não são relativas apenas às estatísticas de crédito. Mudanças e reduções nos dados pesquisados e disponibilizados pelo IBGE também estão afetando os estudos sobre as carências e a demanda habitacionais no país.  A principal base de dados para as estimativas de déficit habitacional sempre foi a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que a partir de 2015 deixou de ser anual. A versão anual trazia todas as variáveis para o cálculo dos componentes do déficit habitacional na metodologia estabelecida pela Fundação João Pinheiro. A primeira mudança deu-se ainda em 2015 com a variável coabitação involuntária, que deixou de ser pesquisada. A partir da PNAD contínua, deixou-se de ter a estimativa de famílias segundo os critérios adotados anteriormente pelo IBGE. Com isso, até mesmo a estimação direta da coabitação total, feita a partir do excedente de famílias com relação ao número de domicílios deixou de ser possível. O IBGE deixou de estimar também o número de domicílios improvisados, os quais correspondiam a cerca de 15% das moradias precárias do déficit habitacional segundo a estimativa baseada na última edição da PNAD anual, em 2015.  Para estimar o déficit nos anos seguintes, tem sido necessário buscar alternativas metodológicas para reconstruir de forma indireta os componentes do déficit que se encontram ausentes das bases de dados. No entanto, a correta dimensão das carências e da demanda habitacionais do país é fundamental para que as políticas públicas possam ser adequadamente desenhadas.

A Lei de Acesso à Informação[10] constitui, sem dúvida, um avanço importante, mas deve servir para consultas específicas, não substituindo a necessidade de ter os dados desse setor abertos e disponíveis, inclusive por requerer a abertura de um processo, impondo alguma morosidade ao acesso.

O acesso à informação confiável, de modo transparente e tempestivo, é imprescindível para o desenvolvimento de qualquer setor da economia e, principalmente, do setor habitacional. Inclusive, é fundamental para a atração de investimento. Além disso, estimula inovações, expande análises acadêmicas, embasa a construção de políticas públicas e calibragem de subsídios, subsidia o planejamento dos agentes produtivos e das famílias, além de viabilizar tanto iniciativas como a deste blog, quanto a participação do Brasil em portais de dados internacionais, tais como o HOFINET[11] e a Plataforma de Indicadores Habitacionais e Urbanos da América Latina/Uniapravi[12].

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV

Este artigo foi previamente publicado pelo Blog do POCH (Projeto do Observatório Brasileiro de Crédito Habitacional)


[1] https://www3.bcb.gov.br/sgspub/localizarseries/localizarSeries.do?method=prepararTelaLocalizarSeries

[2] Saldos de crédito, taxas de juros, prazo, spread, atraso e inadimplência.

[3] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/relatoriopoupanca

[4] https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/fgccensosemestral/FGCCON062019.pdf

[5] Entre 2001 e 2010 dados apenas do mês de dezembro e a partir de 2011, mensais.

[6] https://www.bcb.gov.br/estatisticas/mercadoimobiliario

[7] Código de identificação no SCR que permite o detalhamento agora indisponível, posto que agregado.

[8] https://webp.caixa.gov.br/portal/relatorio_asp/saques_nv.asp

[9] http://www.caixa.gov.br/Downloads/fgts-informacoes-diversas/Arrecadacao_Bruta_2000_2017.pdf

[10] http://www.acessoainformacao.gov.br/

[11] http://hofinet.org/

[12] www.indicadores.uniapravi.org

 

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