Mercados e Inflação
Política Monetária

Estresse financeiro internacional é monetário, e não fiscal

6 out 2023

A despeito de muitos associarem as recentes turbulências financeiras internacionais a questões fiscais, o processo tem mais a ver com o andamento da política monetária nos EUA, cujos custos somente agora começam a aparecer.

Em artigo publicado no jornal Valor Econômico em 04 de outubro último, sob o título “A nova fase da política monetária”, argumentamos que, fundamentalmente, a alta recente dos juros longos nos Estados Unidos é fruto de um movimento deliberado do Fed, voltado para viabilizar o cumprimento do objetivo de levar a inflação americana para a meta.

Os dirigentes do Fed parecem convencidos de que, para terem sucesso na busca da inflação de 2,0% a.a., será preciso fazer pleno uso da política monetária. Em particular, será necessário apertar efetivamente as condições financeiras, ou seja, levá-las para território negativo, algo ainda não visto, desde o início do processo.

Em tese, o aperto das condições financeiras poderia ser conseguido mediante elevações adicionais da taxa básica de juros, a chamada fed funds rate (FFR). Mas já está claro que isto não tem produzido o desejado resultado. Resta, então, agir de maneira a provocar a alta das taxas longas de juros, as de dez anos em particular.

Os acontecimentos recentes têm deixado claro que isso pode ser conseguido mediante simples sinais de intenção de postergar o início do ciclo de baixa de juros nos EUA. Os juros de uma aplicação financeira num título de dez anos podem ser vistos como equivalentes aos juros de uma aplicação de prazo mais curto (um ano, por exemplo), reaplicada várias vezes, mais um prêmio de alongamento.  O mecanismo que faz com que essa equivalência seja observada é a chamada arbitragem financeira, ao longo da curva de juros. Parece claro que, num mercado líquido como o de Treasuries, os arbitradores atuam de maneira praticamente permanente, fazendo com que eventuais situações de “desarbitragem” tendam a ser rapidamente corrigidas.

Na fase atual, dois fatores têm provocado a alta dos juros de dez anos nos EUA. O primeiro relaciona-se com o possível impacto sobre o prêmio de alongamento dos preocupantes montantes (a curto e a médio prazo) do déficit público americano. O segundo tem a ver com as já mencionadas sinalizações do Fed de que pretende manter apertada a política monetária, por um bom tempo, ou seja, de que imaginam demorar para dar início a um ciclo de baixa dos juros. Revisões para cima de uma série de juros de prazo curto tendem a produzir a elevação dos juros longos. A nosso ver, o fator mais relevante tem sido este último.     

Por certo, cabe aqui a seguinte indagação: se é isso o que está acontecendo, por que motivo nada nesse sentido tem sido dito pelos dirigentes do Fed? De fato, em momento algum, os dirigentes do Fed têm esclarecido que pretendem apertar as condições financeiras mediante sinalizações claras de que desejam a alta dos juros longos, de dez anos em especial.

A resposta à questão acima parece simples. Juros de curto prazo, até dois anos, por exemplo, costumam depender bastante do nível dos juros de política monetária e das expectativas sobre o comportamento desses juros ao longo dos próximos trimestres. Contudo, juros de títulos de dez anos, por exemplo, são geralmente vistos com ativos de longo prazo, cujos preços são formados em mercado, de maneira mais livre. Certamente sofrem a influência dos juros de política monetária, mas em escala menor. Não cabe a um banco central explicitar eventual desejo de ver os juros de dez anos num determinado patamar. Algo nesse sentido seria equivalente a procurar mirar determinado nível para os preços de ações. De modo geral, bancos centrais não fazem isso.

Contudo, nada impede que o banco central tenha suas preferências. No caso atual, o Fed parece realmente interessado em promover um significativo aperto das condições financeiras, situação essa para a qual muito contribuiria a alta dos juros longos. Impossibilitado de ser explícito sobre suas intenções, o Fed tem emitido sinais, em geral sutis.

Talvez o primeiro sinal relevante no sentido aqui discutido tenha vindo na entrevista coletiva realizada logo depois da reunião do Fomc de julho. Perguntado sobre se conseguia conceber uma situação em que, ao mesmo tempo, os juros básicos estariam em queda e a política de redução do balanço do Fed persistiria, Jerome Powell respondeu que sim, pois são “duas coisas independentes”. Certamente não foi uma resposta coerente. Redução de balanço é uma política contracionista; juros básicos em queda é uma política expansionista. Que sentido faz pisar no freio e no acelerador, ao mesmo tempo? Como diminuição do balanço e nível dos juros de longo prazo são assuntos correlacionados, a interpretação que cabe para a resposta de Powell é a de um sinal de insatisfação com o patamar dos juros longos. Afinal, persistir na política de redução de balanço pode ser visto como equivalente a desejar a alta dos juros longos.  

Na conferência de Jackson Hole, realizada no final de agosto, Jerome Powell passou a mensagem de que o Fed estava “preparado” para elevar adicionalmente a taxa básica de juros e que teria confiança para começar a reduzir os juros somente após constatar que a inflação americana caminhava efetivamente para a meta, “de maneira sustentável”. Powell repetiu esse raciocínio no mês passado, no curto discurso que habitualmente faz imediatamente após a reunião do Fomc. Em suma, mostrou firmeza de critério (de critério rigoroso) para começar a reduzir os juros, mas não se comprometeu com novas altas da FFR.

Um terceiro sinal veio com a divulgação das estimativas individuais dos membros do Fomc a respeito do futuro da taxa básica de juros. No Summary of Economic Projections de setembro último, a mediana das estimativas da FFR para o final de 2023 indicava a possibilidade de mais um aumento de 25 pontos. Já a mediana da FFR para 2024 foi ajustada para cima em 50 pontos. Em suma, foi mais forte o sinal de desejo de ser mais contido na redução dos juros do que o sinal de intenção de elevar adicionalmente a taxa.       

De tudo isso se conclui que perderam relevância as discussões sobre eventuais novas alterações da FFR. Mais importante passou a ser procurar identificar quando terá início o ciclo de baixa, que seguramente virá, em algum momento.

A mensagem do artigo de início mencionado, reforçada pelo presente texto, é a de que, em essência, o stress recente experimentado nos mercados financeiros internacionais é algo que tem a ver com a política monetária, e não com questões fiscais. No fundo, o quadro resulta de sinalizações do Fed no sentido de que pretende realmente cumprir o seu objetivo de levar a inflação americana para a meta, algo que, em princípio, requer que se produzam condições financeiras apertadas.

Enquanto o quadro de condições financeiras apertadas não se materializa, os custos do combate à inflação não aparecem, ou não aparecem em toda a sua dimensão. É o que tem acontecido nos Estados Unidos, até agora. O grande teste da determinação dos bancos centrais em perseguir determinada meta de inflação ocorre justamente quando os custos mencionados se tornam fortes e claros. É difícil, portanto, saber se os movimentos ora em curso terão prosseguimento.

Por fim, para os que não se encontram convencidos de que a questão é de natureza monetária, e não fiscal, talvez caiba indagar o que aconteceria na hipótese de as pressões fiscais persistirem e o Fed, por alguma razão, passar a sinalizar pressa para reduzir a FFR. Muito provavelmente, os juros longos cairiam e o stress diminuiria, pelo menos até o momento de nova mudança de postura do Fed. Ficaria claro que a origem das turbulências não é fiscal.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV. 

Comentários

Eli Moreno
Por aqui, a turbulência pode vir do fiscal. A grande expectativa de que o Governo Central não consiga alcançar as metas fiscais, cria-se também uma expectativa de que o Copom não avance no mesmo ritmo de corte na taxa de juros, visto que a inflação de largo prazo se mantém resiliente. Pelas previsões do mercado (Focus), a ancoragem às metas do CMN ainda não será alcançada até 2026. A grande questão que resta é: Até quanto o BC poderá ajustar a Selic e que rítmo? E qual a influência do Governo Federal na política monetária? Uma coisa é certa: O Copom já se manifesta preocupado quanto à credibilidade de suas decisões (ultima ata).

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